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domingo, 21 de novembro de 2021

O fim da segunda onda - Revista Oeste

Fábio Matos/Paula Leal 

De volta à vida

Com números em queda, a pandemia perde força e os brasileiros, enfim, voltam ao normal

 Boa parte dos brasileiros duvidou que a realidade tétrica enfrentada pela então desconhecida cidade chinesa de Wuhan chegaria aqui.  
Ruas desertas, rostos cobertos por máscaras faciais, médicos vestindo roupas de astronauta, comércio de portas fechadas, bares e restaurantes lacrados. O cenário apocalíptico parecia distante do Ocidente
No entanto, com a negligência da China e a conivência da Organização Mundial da Saúde em admitir a gravidade do Sars-Cov-2 quando os primeiros casos começaram a brotar, não demorou muito para a doença se espalhar pelos quatro cantos do planeta. 
Cada país escreveu sua própria história no enfrentamento da maior pandemia do século. No Brasil, o primeiro caso de covid-19 foi registrado em 26 de fevereiro de 2020. 
A primeira morte, em 17 de março. De uma hora para outra, o medo paralisou as pessoas, modificou rotinas, rompeu vínculos. Entramos em modo “pandêmico”.
Jogo do Brasileirão entre São Paulo e Flamengo, no Morumbi, em 14 de novembro de 2021 | Fotos: Paulo Pinto/saopaulofc.net
Jogo do Brasileirão entre São Paulo e Flamengo, no Morumbi, em 14 de novembro de 2021 | Fotos: Paulo Pinto/saopaulofc.net

Entre erros e acertos, os brasileiros viveram uma montanha-russa de emoções, agravada pela imposição de medidas autoritárias de políticos e gestores que desafiaram a lógica e a ciência. Chegamos a ser o epicentro do coronavírus no mundo. Mas não há mal que sempre dure. Depois de mais de 600 dias de angústia, a queda constante no número de casos e mortes por covid e o som pulsante das ruas dão sinais de mais uma vitória. Aos poucos, a vida retorna ao normal.

Há cerca de um ano, a pandemia deu uma trégua. Depois de um primeiro surto, o Brasil atravessou um período de aparente calmaria, com declínio de casos e de mortes pela doença. Parecia que tudo estava sob controle. Então os números dispararam e o país enfrentou uma crise sanitária ainda pior do que a primeira. O panorama, contudo, era outro. A vacinação ainda engatinhava quando o Brasil deparou com a P.1 (Gama) — uma variante do coronavírus que surgiu em Manaus e causou uma catástrofe, provocando colapso no sistema de saúde em várias cidades. A cepa é altamente transmissível e muito agressiva. Para ter ideia, ainda no mês de abril o Brasil ultrapassou o ano inteiro de 2020 no número total de mortes em razão do coronavírus.

Quando o país se recuperava do baque, aterrissou por aqui a Deltavariante originária da Índia —, responsável por uma avalanche de novos casos em países da Europa, Ásia e também nos Estados Unidos. Apesar de muito contagiosa, a Delta, comparativamente, é menos letal, e, no Brasil, não provocou uma piora nas contaminações, internações e mortes. Os números, ao contrário, não param de cair. Para o clínico geral Roberto Zeballos, doutor em imunologia, a P.1 pode ter oferecido um bloqueio biológico à Delta. “A cepa Gama fez um estrago, mas imunizou muita gente. Isso é algo que não ocorreu na Europa”, diz Zeballos. Ele ressalta que a imunidade natural da doença é mais longa e duradoura do que a oferecida pelas vacinas. “Enfrentamos dois surtos fortes e isso tem um ganho”, disse. “Toda vez que um paciente vence a doença, ele se imuniza. Quanto mais pessoas imunizadas, maiores as chances de alcançar a imunidade coletiva.” 

A circulação explosiva da variante Gama no início do ano, que resultou em um alto número de imunizados pela doença, somada ao avanço da vacinação ajudam a explicar por que a cepa Delta está se comportando de forma diferente no país. Nesta semana, o Brasil registrou cerca de 130 milhões de pessoas com o ciclo de vacinação completo o que corresponde a pouco mais de 60% da população brasileira — e já superou os Estados Unidos na proporção de pessoas totalmente vacinadas
A taxa de transmissão do coronavírus está no menor patamar desde abril de 2020. No Rio de Janeiro, o hospital de referência no tratamento da covid-19 deu alta ao último paciente internado com a doença — é a primeira vez desde o início da pandemia que a unidade não registra pessoas com covid. Algumas cidades já decretaram o fim da exigência do uso de máscaras. 
 
Doze Estados brasileiros não tiveram mortes relacionadas à covid-19 desde o último domingo, 14. Desde abril de 2020, a covid-19 era a principal causa de mortes no Brasil. Já não é mais.  
A doença foi superada por AVC (acidentes vasculares cerebrais), infartos e doenças cardíacas, segundo dados da Associação de Registradores de Pessoas Naturais referentes ao período de 16 a 31 de outubro. 
A média móvel para sete dias de óbitos, que elimina distorções entre dias úteis e fim de semana, ficou em 246. É o 15º dia seguido que o número fica abaixo de 300.

Novo fôlego para a economia
Se a ciência revela que a covid-19 caminha para ser controlada no país, o dia a dia cada vez mais próximo do normal é um dado da realidade perceptível a quem circula pelas cidades brasileiras. O movimento intenso em bares e restaurantes, a retomada das viagens, a reabertura de salas de cinema, teatros e casas de espetáculo e os preparativos para grandes eventos como o Réveillon e o Carnaval descortinam uma nova atmosfera — muito mais próxima daquela em que vivíamos antes de março de 2020. 

Os voos domésticos do país recuperaram cerca de 80% dos passageiros

Com a flexibilização das medidas restritivas, o setor de shopping centers registrou um crescimento expressivo nas vendas em outubro. Pela primeira vez em um ano e meio, as maiores operadoras de shoppings do Brasil venderam mais do que antes do início da pandemia. No mês passado, Multiplan e Iguatemi registraram altas de 10% e 15%, respectivamente, em relação ao mesmo período de 2019. E as perspectivas para o período de festas de fim de ano são animadoras. “Há uma expectativa mais positiva de vendas, com base nas últimas datas especiais do varejo, em que tivemos números acima do esperado”, afirma o diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping, Luis Augusto Ildefonso. “Isso deve trazer um Natal muito melhor do que o do ano passado, porque naquela época estava tudo fechado, com circulação pequena de pessoas.”

A crise provocada pelas restrições começa a ser superada também pelo setor de turismo. Segundo a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo, 36% das agências de viagem já alcançaram, em setembro deste ano, pelo menos 75% do rendimento obtido no mesmo período de 2019. Os voos domésticos do país recuperaram cerca de 80% dos passageiros em relação aos números de antes da pandemia. Os cruzeiros, por exemplo, estarão de volta, gerando 35 mil empregos e R$ 2,5 bilhões em receitas, segundo a Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos. 

Sem limitações, os bares e restaurantes voltaram a todo vapor. Estimativas da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) projetam um crescimento de até 3% neste segundo semestre, com a recuperação de 600 mil de mais de 1,3 milhão de postos de trabalho perdidos desde o ano passado. “Existe um cenário de confiança na retomada. Com os números da pandemia melhorando dia a dia e a vacinação avançando, há a volta da confiança do consumidor. Isso faz toda a diferença”, conta José Eduardo Camargo, líder de Inteligência e Conteúdo da Abrasel. 

Durante os quase dois anos de pandemia, o circuito de shows e eventos foi duramente afetado. Em São Paulo, a partir deste mês, já não há mais restrições para a lotação de público em casas de shows e são permitidos espetáculos ao vivo com as pessoas em pé. Nas grandes capitais, já há preparativos para as festas de Réveillon e Carnaval. A maior festa popular do país deve atrair 15 milhões de pessoas às ruas de São Paulo — até agora, mais de 860 blocos carnavalescos se inscreveram para desfilar entre janeiro (no “pré-Carnaval”) e março do ano que vem. No Rio, há mais de 600 inscritos. Os organizadores do “maior Carnaval do mundo” projetam um investimento de mais de R$ 45 milhões, entre dinheiro público e privado. Outro sinal emblemático de que, aos poucos, a covid-19 vai ficando para trás é a volta do público aos estádios de futebol. Em São Paulo, 100% da capacidade está liberada. Cada Estado tem autonomia para definir critérios de reabertura: além de São Paulo, a lotação máxima já é permitida em capitais como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia. 
A pandemia também comprometeu a educação de milhares de jovens que ficaram à deriva durante o isolamento. A duras penas — e muito tardiamente —, as escolas voltaram ao ensino presencial depois de meses fechadas.

Quarta onda na Europa e o dilema das vacinas

Mesmo diante das perspectivas animadoras de retomada, a pandemia ainda exige cautela. “O Brasil atravessou a segunda onda e ruma para o fim do ciclo pandêmico, exceto se surgir alguma nova variante atípica”, afirma o infectologista Francisco Cardoso. Estamos bem distantes do quadro devastador registrado em abril, quando o Brasil chegou a perder mais de 4 mil vidas para a covid-19 em 24 horas. Ao longo dos meses, os médicos aprenderam que a doença tem controle e tratamento, ainda mais quando feitos precocemente, como qualquer outra enfermidade cuidada pela medicina. 
 
No entanto, se vivemos uma onda de otimismo, não se pode dizer o mesmo da Europa que voltou a ser o epicentro da covid-19. A situação do Velho Continente acende uma luz amarela e mostra que o vírus continua entre nós.  
A explosão de casos em países europeus intriga especialistas e põe em xeque a eficácia da vacinação. A Alemanha, com quase 70% da população vacinada, bateu recorde de contaminações. A Holanda, com 73% de vacinados, vive um retrocesso com a volta de medidas restritivas e o aumento no número de mortos pela doença neste mês. O que se observa depois de cerca de 7,5 bilhões de injeções aplicadas no mundo é que as vacinas não são 100% eficazes para evitar contaminações pelo coronavírus. Mesmo assim, estudos indicam que pessoas vacinadas têm menor risco de contrair a doença e, ainda que sejam diagnosticadas, têm menos chances de evoluir para casos graves e mortes. “Um problema que vivemos é a ilusão de que as pessoas vacinadas não têm mais covid”, explica Raissa Soares, médica de família. “Muitos pacientes vacinados com duas doses contraem a covid e só buscam ajuda na fase mais grave da doença, pois eles têm a falsa sensação de que estão protegidos. Só que aí o tratamento é mais difícil.” Além do dilema das vacinas, segundo o médico Roberto Zeballos, na Europa as pessoas ficaram confinadas por mais tempo e, com o relaxamento das medidas de restrição, passaram a ter maior contato com o vírus, o que pode justificar o aumento de casos. “Lá, os lockdowns foram mais rígidos, não teve muita exposição”, lembra. “No Brasil, não houve lockdown de fato, as pessoas ficaram mais expostas ao vírus e foram mais contaminadas.”

É bom lembrar que as vacinas desenvolvidas no ano passado foram baseadas na versão “original” do coronavírus, quando ainda não havia novas cepas em circulação. Quando o vírus sofre mutação, algumas variantes podem escapar à proteção vacinal. “Um definidor para 2022 é quanto a gente vai conseguir atualizar as vacinas disponíveis para efetivamente combater melhor as variantes que se formaram ao longo desse tempo”, disse o virologista Fernando Spilki, coordenador da rede Corona-ômica do Ministério da Ciência e Tecnologia, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico. É bem provável que o novo coronavírus tenha vindo para ficar. Teremos de conviver com ele assim como vivemos com a influenza, o vírus da gripe. “Acredito que, a partir do próximo ano, a covid vai atingir o nível endêmico e se tornar uma doença como qualquer outra. Não vai haver mais elementos para manter o status de pandemia”, afirma Cardoso. Tomara. Enquanto a ciência continua buscando respostas para dúvidas que só serão respondidas com o tempo, o normal está de volta à vida dos brasileiros. 

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Fábio Matos/Paula Leal  - Revista Oeste


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