O castelo de areia das grandezas do lulopetismo está desabando ao
sopro da crise econômica e da Lava Jato, como tantas vezes escrevi. Em
meio ao desmoronamento, o lulopetismo procura embaçar a vista de quem
assiste à sua queda dizendo que tudo não passa de uma trama “da direita”
para desacreditá-lo por ser “de esquerda”.
Para desmontar a farsa vale a pena ler a entrevista dada às páginas
amarelas da revista VEJA, na semana passada, por José de Sousa Martins,
importante sociólogo e insuspeito de ser “de direita”. Martins diz que,
no caso do PT, a dicotomia direita/esquerda provém da metamorfose do
pensamento católico, que separa os bons dos maus, os fiéis dos que não
creem. Há na matriz do petismo um reducionismo que transforma os
adversários em inimigos e tem dificuldade de lidar com nuances de
opinião. É a essa matriz que o lulopetismo busca retornar, agora como
farsa.
Sobre a “esquerda” e a “direita” no Brasil, há anos eu repito a frase
que ouvi do historiador Sérgio Buarque de Holanda quando examinava uma
tese de livre-docência sobre a política brasileira no Império. No
trabalho, o autor confrontava o pensamento liberal, o conservador e o
progressista. Sérgio, referindo-se a um personagem simbólico de nossos
conservadores naquele período, perguntou com certa ironia ao candidato:
você acredita que Bernardo Pereira de Vasconcelos lia Edmund Burke (um
clássico do conservadorismo inglês, que via com maus olhos a Revolução
Francesa)? Não, respondeu o próprio Sérgio, ele não era um verdadeiro
conservador, não defendia ideias; ele era apenas um “atrasado”. Boa
parte dos atuais lulopetistas tampouco são de esquerda, defendem ou
creem apenas em noções atrasadas.
Mas a disputa política não é uma batalha para ver quem são os mais
bem informados. Ela sempre envolve percepções. Assim, o chavão dos
“pobres versus ricos”, por mais que seja tosco, pode funcionar. Do mesmo
modo pode aliciar muita gente o embuste de que a Lava Jato seja uma
manobra para perseguir os deserdados da fortuna em favor dos poderosos,
como se os poderosos nos últimos 13 anos não tenham sido eles, em
ligação corrupta com parte da elite econômica e política.
Por isso cabe aos políticos de oposição, na luta ideológica,
continuar a desmantelar as fortalezas do atraso. Além de desmontar o
argumento da “armação jurídica”, é preciso reduzir ao ridículo a
ladainha de que a crise atual decorre de fatores externos. Vejam só,
dizem eles, estávamos certos, foram as ondas externas (não mais marolas,
mas tsunamis) que nos afetaram. Tão certos pensam que estavam que, ao
derrubar o ministro Joaquim Levy, renasceu a esperança do “mais do
mesmo”, ou seja, mais crédito e mais consumo (por quem já está
endividado, muitas vezes com menos renda e não raro sem emprego).
O que está claro para quem tem alguma noção das coisas e da História
pode ser turvo para o cidadão comum. Por isso a repetição petista de uma
argumentação descabelada pode parecer inútil, mas não é: é uma
tentativa de preservar a imagem de que só o PT defende os pobres e só
ele se opõe ao capitalismo desumano. Convém persistir em mostrar que o
que foi feito na política econômica petista não foi obra do inevitável,
mas produto de erros crassos.
Erros que não remetem à divisão esquerda/direita, mas se explicam
pelo atraso na compreensão da política econômica e pelo interesse em
manter o poder e os bolsos dos partidos e de alguns de seus dirigentes
recheados com dinheiro alheio, dinheiro do povo. Que medida no presente
pode ser mais “de esquerda”, mais progressista, do que recuperar o
emprego e o poder de compra da maioria da população? E como fazer isso
sem debelar a inflação? E como debelar a inflação sem ajuste fiscal? E
como garantir o emprego futuro sem reconquistar a confiança do setor
privado, já que o Estado sem os capitais privados não pode assegurar a
retomada do investimento?
Qual a alternativa “de esquerda” a essas medidas? O novo “pacote de
crédito público”, versão envergonhada da política que pedalou a ilusão
da prosperidade em 2013 e 2014 rumo à reeleição e resultou em mais
dívida para as famílias e mais desarranjo das finanças públicas, essa
preocupação “de direita” que obceca os “neoliberais”?
Houve quem escrevesse, e o fez em inglês, que às vezes há uma
confusão no senso comum entre os conceitos políticos de esquerda e de
direita (right) e as noções corriqueiras de certo (right) e errado. As
políticas de crescimento econômico do lulopetismo não foram “de
esquerda”, mas certamente foram erradas.
É importante repisar isso para mostrar que as políticas de
distribuição de renda precisam ser sustentáveis para produzir resultados
duradouros. Muito do que foi conquistado desde o Plano Real está hoje
ameaçado. Para amenizar o drama da terrível crise atual é preciso manter
a rede de proteção social que foi tecida em meu governo e reforçada no
governo Lula. Mas é urgente corrigir os desatinos fiscais do
lulopetismo, desaparelhar o Estado, reconquistar a confiança da
sociedade e retomar a agenda de reformas que o lulopetismo abandonou em
favor de anabolizantes pró-crescimento que produziram medonhos efeitos
colaterais para o país.
Só assim será possível retomar a trajetória que
corresponde às aspirações da Constituição de 1988, contra a qual o PT
votou, por julgá-la conservadora: um Brasil democrático, não apenas mais
desenvolvido, mas, sobretudo, socialmente mais justo. Há forças capazes de corrigir os desatinos cometidos. Para isso é
preciso que lideranças não comprometidas com o lulopetismo, apoiadas
pelos grupos sociais que nunca se deixaram ou não se deixam mais seduzir
por seu falso encanto, assumam a sua responsabilidade histórica, dentro
da Constituição, para fazer o certo em beneficio do povo e do país.
Por: Fernando Henrique Cardoso, Estadão