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sábado, 6 de março de 2021

O colapso - Revista Época

Monica de Bolle

Estamos prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Viveremos a tragédia em outro patamar

A economia brasileira colapsou em 2020, já me apresso a dizer. O PIB não reflete as mortes, o sofrimento de quem teve sequelas de Covid-19, que talvez tenha ficado debilitado e não possa retornar ao mercado de trabalho. O PIB não reflete as marcas que permanecerão depois de tantos óbitos, apesar de um sistema de saúde que, mesmo subfinanciado, tentou dar conta daa que ações e omissões intencionais do governo federal deram uma dimensão que não imaginaríamos um ano atrás. O PIB reflete o apoio à economia que o auxílio emergencial representou. Ele mostra que o auxílio foi um dinheiro da sociedade empregado em seu próprio proveito, apesar do atual governo antibrasileiro. Sem ele, o “tombo”, como alguns se referem à recessão brutal, teria sido muito maior. Esse é o passado que se desdobra no presente. Mas e agora?

No presente estamos explorando as profundezas do colapso. De acordo com estudos já publicados e outro prestes a ser publicado em formato preprint pelo Observatório Covid-19 rede multidisciplinar de cientistas a qual integro —, a variante P1, que surgiu em Manaus ao final de 2020, é cerca [advérbio que justifica qualquer palpite e pode ser adaptado a realidade - o seu uso justifica qualquer excesso ou redução.]   de duas vezes e meia mais transmissível que as anteriores. Isso tem ao menos dois significados: a curva exponencial de contágios é muito mais agressiva e a disseminação é de magnitude mais elevada. Para que se tenha uma ideia, a P1 é duas vezes mais transmissível que a variante viral que pôs toda a Europa em lockdown ao final do ano passado. É provável que seja a propagação da P1 a responsável pelos colapsos hospitalares que temos visto no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Maranhão, no interior de São Paulo, além de em várias outras partes do país.

[quando  foi citado o observatório covid-19 e ser uma rede multidisciplinar de cientistas, entre eles a articulista, receamos a presença entre os cientistas de algum especialista em nada, cuja única função é a de arautos do pessimismo.
Só que a proposição do lockdown, especialmente em âmbito nacional, mostrou que estávamos errados: não tem apenas um que vai para a TV prever hoje o que aconteceu ontem, o cara de pau do especialista em nada, o observatório foi invadido, dominado pelos indivíduos citados.
Todos sabem, especialmente os cultores da ciência, que se lockdown resolvesse metade da Europa já estaria livre da praga.]

Diante dessa variação do vírus, a pandemia brasileira entrou em sua fase mais crítica desde que o sars-CoV-2 aterrissou no país em fevereiro do ano passado. Por esse motivo, o Brasil tem sido manchete dos principais jornais internacionais — como The Washington Post e The New York Times — desde o último fim de semana. Em entrevista ao jornal O GLOBO no último domingo, alertei para o perigo de que o Brasil se tornasse pária internacional, isolado do resto do mundo, devido à pandemia descontrolada e ao laboratório de mutações em que as ações e omissões do presidente da República [nota: ao presidente da República só cabe criticá-lo por eventuais ações, já que foi vedado de interferir no combate à covid-19 (vedação que o absorve de qualquer acusação de omissão)  - os prefeitos e governadores receberam um mandado de agir como lhes aprouvesse e não souberam cumprir.] e outros de nossos governantes nos transformaram. Somente as consequências disso para a economia já seriam alarmantes. E a elas somam-se outras: a população que não conta com o auxílio, as multinacionais que decidiram deixar o país, o desgoverno de Bolsonaro.

O que deveríamos estar fazendo agora? Primeiramente, um lockdown estrito, sobretudo nas localidades mais afetadas, onde os hospitais já carecem de leitos. Penso, inclusive, que o lockdown deveria ser decretado para o país inteiro, mas sei que isso é esperar demais de um país em que muitos ainda acreditam que saúde e economia não se misturam. Um ano não foi suficiente para que entendessem que o colapso da saúde é o colapso da economia, algo que tenho dito desde março do ano passado. A medida requer dar apoio material para que as pessoas a observem.

Traduzindo, não é possível instituir um lockdown sem que se tenha, ao mesmo tempo, a adoção do auxílio emergencial no valor de R$ 600, o custo de uma cesta básica. Diante da catástrofe anunciada, o término do auxílio só pode ser determinado pelos dados epidemiológicos, aqueles que poderiam indicar a reabertura gradual e lenta. Por fim, o Brasil deveria, sem esperar mais um minuto sequer, comprar doses de todas as vacinas disponíveis nas quantidades que puder. É urgente que se tenha vacinação e cobertura amplas para frear as cadeias de transmissão dessa variante para lá de alarmante. Escrevo ciente de que nada disso será feito, de que ninguém no governo entende a gravidade do que vamos atravessar e, se entende, prefere nada fazer, mas faço questão de deixar essas palavras no papel, para marcar o momento.

Estamos prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Por certo teremos muitas mortes evitáveis. Viveremos a tragédia em outro patamar. O colapso não é único, não tem dimensão. O colapso tem tão somente o tamanho do descaso de um governante em relação à população, inclusive aquela que o elegeu.

Monicade Bolle, pesquisadora do Peterson Institute, Economics,  professora da Universidade Johns Hopkins


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O SUS - Sistema Único de Saúde - Monica de Bolle

O Sistema Único de Saúde sobreviveu para lutar mais um dia neste governo de desmandos e descasos

O SUS, de fora, é visto com certa estupefação. Como um país de renda média como o Brasil conseguiu construir um sistema tão abrangente e que funciona para todos? O feito é incomum em países com características econômicas semelhantes às nossas. O feito não foi realizado nos Estados Unidos, onde, na pandemia, há muita gente desassistida, ou, quando assistida, quase falida. Aqui nos Estados Unidos a saúde é praticamente toda privada, e quem não tem plano de saúde, ainda que possa ser atendido nas emergências dos hospitais, depois recebe contas astronômicas a pagar. As falhas do sistema de saúde norte-americano, há muito debatidas, ficaram inteiramente visíveis agora, durante a crise da Covid-19. Embora os descasos brasileiro e norte-americano tenham sido semelhantes, no Brasil contivemos algumas mortes por causa do SUS. E a epidemia está longe de acabar.

Bolsonaro e Guedes tentaram passar um decreto, o infame 10.530 de 27 de outubro, que previa possíveis alterações consideráveis nas unidades básicas de saúde (UBS). O decreto mencionava estudos para avaliar a viabilidade de parcerias privadas nas UBS, ainda que não chegasse a falar em privatização. Contudo, esse é o governo do Estado mínimo. Difícil imaginar que alguma intenção privatizante não estivesse ali escondida. As UBS são a base articuladora do SUS; se privatizadas fossem, desapareceria o SUS. Não de supetão, mas penso que dá para ver o ponto.

O decreto Bolsonaro-Guedes não foi apreciado pelo Ministério da Saúde, tampouco pelo Conselho Nacional de Saúde, órgão do Ministério responsável pelas políticas de saúde pública. Não foi apreciado por órgãos fundamentais do Ministério da Saúde porque Bolsonaro-Guedes decidiram que não era relevante que opinassem sobre o documento e seu conteúdo. Evidentemente, algo que é da competência da área de saúde só pode mesmo ser apreciada, quando não elaborada, pelo Ministério da Economia. No governo de balão de ensaio de Bolsonaro-Guedes essa abordagem faz todo sentido — esse é o mesmo governo que já lançou o programa Renda Brasil, o programa Renda Cidadã e disse que o Brasil crescerá 46% de agora até 2031. Só para que os leitores não se confundam, não existe nem Renda Brasil, nem Renda Cidadã. Quanto ao crescimento de 46%, difícil opinar, já que dizer algo sobre isso necessariamente significa levar a sério o que é dito por Guedes.

O decreto não foi a lugar algum. Sob intensa pressão da sociedade, de várias entidades, dos conselhos das secretarias municipais de saúde — todas as UBS são geridas pelos municípios, que tampouco foram consultados —, o presidente o revogou. O SUS sobreviveu para lutar mais um dia nesse governo de desmandos e descasos. [o decreto pode até ter sido um balão de ensaio;

Mas teve uma utilidade honesta: serviu para destacar o SUS - a maior parte da imprensa passou a defender o SUS e na defesa apontar vantagens, o desempenho excelente, a dedicação dos que lá trabalham = mostrando que o SUS é insubstituível.]

Contudo, os desafios do SUS são de tal ordem que faltam adjetivos para descrevê-los. O Brasil caminha a passos largos para enfrentar uma segunda onda da pandemia, como já se vê mundo afora — aqui nos Estados Unidos estamos já na terceira onda. Para além disso, há a sobrecarga de pacientes com sequelas da Covid-19, sobre as quais escrevi esta semana em artigo para o Estadão. Por fim, há o enfrentamento do teto de gastos que, do jeito que está, não permitirá que qualquer centavo seja direcionado ao SUS em 2021.

O SUS. #DefendaoSUS.

Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins