Monica de Bolle
Estamos prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Viveremos a tragédia em outro patamar
A
economia brasileira colapsou em 2020, já me apresso a dizer. O PIB não reflete
as mortes, o sofrimento de quem teve sequelas de Covid-19, que talvez tenha
ficado debilitado e não possa retornar ao mercado de trabalho. O PIB não
reflete as marcas que permanecerão depois de tantos óbitos, apesar de um
sistema de saúde que, mesmo subfinanciado, tentou dar conta daa que ações e omissões intencionais do governo federal deram uma
dimensão que não imaginaríamos um ano atrás. O PIB reflete o apoio à economia
que o auxílio emergencial representou. Ele mostra que o auxílio foi um dinheiro
da sociedade empregado em seu próprio proveito, apesar do atual governo antibrasileiro.
Sem ele, o “tombo”, como alguns se referem à recessão brutal, teria sido muito
maior. Esse é o passado que se desdobra no presente. Mas e agora?
No
presente estamos explorando as profundezas do colapso. De acordo com estudos já
publicados e outro prestes a ser publicado em formato preprint pelo
Observatório Covid-19 — rede multidisciplinar de cientistas a qual integro —, a
variante P1, que surgiu em Manaus ao final de 2020, é cerca [advérbio que justifica qualquer palpite e pode ser adaptado a realidade - o seu uso justifica qualquer excesso ou redução.] de duas vezes e
meia mais transmissível que as anteriores. Isso tem ao menos dois significados:
a curva exponencial de contágios é muito mais agressiva e a disseminação é de
magnitude mais elevada. Para que se tenha uma ideia, a P1 é duas vezes mais
transmissível que a variante viral que pôs toda a Europa em lockdown ao final
do ano passado. É provável que seja a propagação da P1 a responsável pelos
colapsos hospitalares que temos visto no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina,
no Maranhão, no interior de São Paulo, além de em várias outras partes do país.
[quando foi citado o observatório covid-19 e ser uma rede multidisciplinar de cientistas, entre eles a articulista, receamos a presença entre os cientistas de algum especialista em nada, cuja única função é a de arautos do pessimismo.
Só que a proposição do lockdown, especialmente em âmbito nacional, mostrou que estávamos errados: não tem apenas um que vai para a TV prever hoje o que aconteceu ontem, o cara de pau do especialista em nada, o observatório foi invadido, dominado pelos indivíduos citados.
Todos sabem, especialmente os cultores da ciência, que se lockdown resolvesse metade da Europa já estaria livre da praga.]
Diante
dessa variação do vírus, a pandemia brasileira entrou em sua fase mais crítica
desde que o sars-CoV-2 aterrissou no país em fevereiro do ano passado. Por esse
motivo, o Brasil tem sido manchete dos principais jornais internacionais —
como The Washington Post e The New York Times — desde o
último fim de semana. Em entrevista ao jornal O GLOBO no último domingo,
alertei para o perigo de que o Brasil se tornasse pária internacional, isolado
do resto do mundo, devido à pandemia descontrolada e ao laboratório de mutações
em que as ações e omissões do presidente da República [nota: ao presidente da República só cabe criticá-lo por eventuais ações, já que foi vedado de interferir no combate à covid-19 (vedação que o absorve de qualquer acusação de omissão) - os prefeitos e governadores receberam um mandado de agir como lhes aprouvesse e não souberam cumprir.] e outros de nossos
governantes nos transformaram. Somente as consequências disso para a economia
já seriam alarmantes. E a elas somam-se outras: a população que não conta com o
auxílio, as multinacionais que decidiram deixar o país, o desgoverno de
Bolsonaro.
O
que deveríamos estar fazendo agora? Primeiramente, um lockdown estrito,
sobretudo nas localidades mais afetadas, onde os hospitais já carecem de
leitos. Penso, inclusive, que o lockdown deveria ser decretado para o país
inteiro, mas sei que isso é esperar demais de um país em que muitos ainda
acreditam que saúde e economia não se misturam. Um ano não foi suficiente para
que entendessem que o colapso da saúde é o colapso da economia, algo que tenho
dito desde março do ano passado. A medida requer dar apoio material para que as
pessoas a observem.
Traduzindo,
não é possível instituir um lockdown sem que se tenha, ao mesmo tempo, a adoção
do auxílio emergencial no valor de R$ 600, o custo de uma cesta básica. Diante
da catástrofe anunciada, o término do auxílio só pode ser determinado pelos
dados epidemiológicos, aqueles que poderiam indicar a reabertura gradual e
lenta. Por fim, o Brasil deveria, sem esperar mais um minuto sequer, comprar
doses de todas as vacinas disponíveis nas quantidades que puder. É urgente que
se tenha vacinação e cobertura amplas para frear as cadeias de transmissão
dessa variante para lá de alarmante. Escrevo ciente de que nada disso será
feito, de que ninguém no governo entende a gravidade do que vamos atravessar e,
se entende, prefere nada fazer, mas faço questão de deixar essas palavras no
papel, para marcar o momento.
Estamos
prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura
iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Por certo teremos muitas
mortes evitáveis. Viveremos a tragédia em outro patamar. O colapso não é único,
não tem dimensão. O colapso tem tão somente o tamanho do descaso de um
governante em relação à população, inclusive aquela que o elegeu.
Monicade Bolle, pesquisadora do Peterson Institute, Economics,
professora da Universidade Johns Hopkins