Pedro Cafardo
Avanço
da vacinação concentrado nos países mais ricos vai estimular o aumento das
desigualdades e dos conflitos sociais no mundo
Logo
no início da atual pandemia, em março do ano passado, o secretário-geral da
OCDE, Ángel Gurría, conclamou as principais economias do mundo a promover ações
conjuntas com ambição de um Plano Marshall. Cada vez mais, a recomendação se
justifica. Para
quem não se lembra ou nunca leu a respeito, vale explicar o que foi o Plano Marshall.
Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, em 1945, os grandes países da Europa
e o Japão estavam destruídos. As perdas mais terríveis eram humanas, com cerca
de 60 milhões de mortos entre civis e militares. Ferrovias, portos, pontes,
casas e a infraestrutura em geral haviam sido arrasados pelos bombardeios.
Estima-se que 40% das habitações foram destruídas na Alemanha, 30%, no Reino
Unido, e 25%, no Japão.
Temia-se,
então, que pudesse se repetir o que havia acontecido depois da Primeira Guerra
Mundial (1914 a 1918), quando o Tratado de Versalhes (1919) estabeleceu que os
países derrotados deveriam pagar vultosas quantias a título de reparação de
guerra aos vencedores. Isso provocou desemprego, hiperinflação e o
fortalecimento de governos nacionalistas e totalitários que acabaram levando à
Segunda Guerra Mundial.
Nos
EUA, a situação era completamente diferente. Além de ganhar a guerra e apesar
das perdas humanas - morreram 300 mil soldados dos 12 milhões alistados -, os
EUA tiveram um grande impacto econômico positivo. O
esforço de produção bélica promoveu recuperação plena da economia, que saiu
definitivamente da grande depressão dos anos 1930. O desemprego foi extinto
pela criação de 16 milhões de vagas, o que exigiu a incorporação inédita de 6
milhões de mulheres ao mercado de trabalho, por força da escassez de mão de
obra. Em 1950, o PIB americano estava 80% acima do nível de antes da guerra, em
1938.
O
grande ganhador da guerra, portanto, tinha a obrigação de sustentar a
recuperação da economia mundial. E o fez por meio do Plano Marshall, que tem
esse nome em homenagem ao general George Catlett Marshall, idealizador do
programa, que havia lutado nas duas guerras mundiais e ocupara cargos de secretário
de Estado e da Defesa dos EUA. O
plano forneceu US$ 13 bilhões, em valores de época, para reconstrução e
recuperação de 16 países da Europa Ocidental e do Japão. É difícil avaliar, aos
olhos trilionários de hoje, o valor real dessa ajuda. Mas foi extraordinária.
Representava, por exemplo, cerca de 20 vezes o valor do PIB brasileiro da
época.
O grande economista John Kenneth Galbraith (1908-2006) estimou que
metade desses recursos foi destinada a alimentos e matérias-primas, 17%, a
combustíveis, 17%, a máquinas e equipamentos, e 7%, a transportes. Isso forjou
a chamada “Era de Ouro” do capitalismo, um período de grande expansão econômica
no pós-guerra, que se estendeu até o início dos anos 1970, quando veio a
primeira crise do petróleo. Recursos
do Plano Marshall foram oferecidos também à União Soviética, mas Josef Stalin
não os aceitou e impediu a adesão ao programa dos demais países do bloco
socialista europeu. Até porque o plano se inseria na estratégia da Doutrina
Truman, do presidente Harry Truman, cujo objetivo era barrar o avanço comunista
da União Soviética no pós-guerra.
Galbraith
estimou que, durante os três anos e meio de operações do plano, o PIB total dos
16 países assistidos cresceu 25%. A produção industrial aumentou 64%, e a
agrícola, 24%. Houve muita discussão acadêmica sobre o real impacto do plano, e
muitos economistas consideraram que teria havido crescimento com ou sem ele.
Mas, segundo Galbraith, seus efeitos são irrefutáveis. Flávio Azevedo Marques
de Saes e Alexandre Macchione Saes, em “História Econômica Geral”, observam que
a recuperação econômica nos anos pós-guerra não pode ser atribuída unicamente
ao mercado. Deve-se também a ações deliberadas para reconstrução das economias
mais seriamente atingidas pela guerra.
Toda
essa explanação sobre a grande operação que levou à “Era de Ouro” se justifica
porque, assim como na guerra, a atual pandemia já promoveu uma enorme
destruição global. As perdas humanas são muito menores do que na Segunda
Guerra, quando morreram 2,6% da população mundial da época. Hoje, até agora, os
mortos da pandemia, cerca de 2,2 milhões, representam 0,03% da população.
A
destruição econômica, porém, é talvez comparável em razão das perdas de
empregos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, só no ano passado
foram eliminados 255 milhões de empregos no mundo, levando-se em conta o
critério de horas perdidas no trabalho. Diferentemente
da Segunda Guerra, não há nesta pandemia um grande ganhador, como os EUA em
1945. Agora, os americanos foram fortemente afetados, tanto em perdas humanas
quanto econômicas. Por mais irônico que pareça, porque foi lá que nasceu a
pandemia, a China parece estar entre os vencedores. Foi a única das grandes
economias com crescimento do PIB em 2020 (2,3%) e está em firme recuperação,
com previsão de expansão de 9% neste ano.
Um
novo Plano Marshall é necessário porque inúmeros governos estão sem recursos
para estimular a recuperação econômica. Não há espaço para fiscalismos
retrógrados. [Leia espetacular artigo de
André Lara Resende no Valor de sexta-feira - url.gratis/rd711]. Os
gastos governamentais são inevitáveis neste momento também para tentar evitar o
erro da Primeira Guerra, quando se cobrou a conta pela destruição dos perdedores.
Diferentemente de 1919, temos hoje instituições internacionais que podem ter
grande importância no recolhimento e na distribuição de recursos.
Um
problema é o avanço atual da vacinação, concentrado principalmente nos países
desenvolvidos, que aponta para uma recuperação desigual da economia na era
pós-pandemia. Os países mais pobres, vão ficando para trás no processo de imunização, o que
tenderá a estimular o aumento das desigualdades e dos conflitos sociais no
mundo. Outro
problema é a existência de pouquíssimos ganhadores. Teria a China interesse em
evitar o efeito devastador do erro pós-Primeira Guerra, que estimulou o
surgimento de governos totalitários?