É o que dá, quando se pensa um pouco nas coisas, contar com o ministro Moraes para tudo — uma hora, quando a escolha for entre o couro dele e você (você e todas as suas sagradas instituições), o homem vai saltar com o seu paraquedas. Mas isso já é uma outra história, que fica para uma outra vez.
O que interessa, neste caso concreto, é que Alexandre de Moraes deu uma ordem ao presidente da República e a ordem foi ignorada — e sua reação diante da desobediência foi de exatamente três vezes zero. Quer dizer que ele não manda em todo mundo, como os comunicadores (e ele próprio) garantiam que mandava? Pois é; não manda.
Manda prender o ex-deputado Roberto Jefferson, mas não manda prender o presidente.
É complicado, porque agora ficam as incertezas.
Moraes vai soltar outra ordem dessas e, mais uma vez, correr o risco de ver a sua ordem transformada num pedaço de papel inútil — ou vai baixar o facho?
Se não soltar um decreto igual, e não soltar depressa, é sinal que baixou; fica ruim.
E Bolsonaro: vai dizer de novo “chega, já deu, não perturba” para o próximo comando que receber dele?
Já se viu que não acontece nada quando o presidente manda o STF para o raio que o parta.
Não está claro por que ele faria diferente do que fez agora, na próxima vez que o mandarem depor numa delegacia de polícia.
É, em sua embalagem mais recente, a famosa “insegurança jurídica” que os ministros criam a cada um dos seus chiliques permanentes — só que, desta vez, conseguiram criar insegurança para si próprios.
A ordem foi dada, repetida e desobedecida
Não houve mal-entendido nenhum nessa história, como vão tentar dizer ao público que houve, nem “diferenças de compreensão”, nem “defeito de comunicação” e outras desculpas que dariam vergonha a um pano de estopa. Ao contrário: nada poderia ter sido mais claro. Moraes mandou Bolsonaro depor na sexta-feira, dia 28 de janeiro, às 14 horas, na Polícia Federal de Brasília; fez questão, inclusive, de confirmar sua ordem mais uma vez, no próprio dia do interrogatório, negando um pedido de “ausência” feito na última hora pelo Palácio do Planalto. Qual é a dúvida?
Não ficou dúvida nenhuma. A ordem foi dada, repetida e desobedecida. Não há jeito, agora, de Moraes botar a pasta de dente de novo “no dentifrício”, como diria Dilma Rousseff.
Ele tentou dar alguma explicação, é claro, como essa gente sempre tenta; como sempre, não adiantou nada.
Resmungou alguma coisa sobre “decisão no plenário”, algo jamais cogitado desde o início dessa comédia; também falou, naquele português miserável que usa em seus despachos, em “diálogo equitativo entre Estado-investigador e investigado na investigação”. Que diabo quer dizer um negócio desses? Moraes acha que é erudito. É apenas incompreensível. Sua última realização foi encaminhar à PGR uma notícia-crime contra Bolsonaro por ele ter faltado ao depoimento. Também não se sabe para o que vai servir essa coisa.
O STF piscou. E daqui para a frente? Vai piscar de novo?
A conversa do ministro não convence uma criança de 10 anos de idade, mas, no fundo, ele não precisa convencer uma criança de 10 anos de idade; basta convencer os jornalistas e demais influenciadores sociais, e esses ficaram convencidos em cinco minutos.
O depoimento de Bolsonaro na Polícia Federal foi uma estupidez, só isso — e quando as coisas acabam assim é melhor não ficar perguntando nem explicando muito, porque só vai aumentar o tamanho do prejuízo, e ninguém quer aumentar o prejuízo de uma estrela do STF, não é? Em suma: Moraes mandou Bolsonaro fazer uma coisa, Bolsonaro não fez e acabou não dando em absolutamente nada. Como poderia ter dado?
O ministro parece que só foi pensar nisso depois — você só pode dar uma ordem a alguém se tem certeza de que dispõe, no ato, dos meios indispensáveis para fazer com que a sua ordem seja obedecida. Moraes não tinha meio nenhum para fazer o presidente obedecer a coisa nenhuma; deu no que deu. O que ele poderia fazer?
Mandar a delegada de polícia que convocou para o seu serviço pessoal, e que tem o direito de andar de revólver na cinta para cima e para baixo, ir até o Palácio e prender o presidente da República?
Já que ele não vai à polícia, que tal mandar a polícia atrás dele? Não daria certo: a delegada de Moraes não passaria do porteiro do Planalto. Fora isso, o que mais? Chamar o Exército? Chamar a Interpol? (O ministro, em outra de suas ideias fixas no momento, já chamou a Interpol para prender o jornalista Allan dos Santos, alvo de inquisição no STF e hoje refugiado político nos Estados Unidos; sequer tomaram conhecimento do seu despacho.) Até o depoimento que não houve, porém, ele se achava muito bonitão na foto. Fazer o quê? É assim que a situação ficou. Moraes diz para os jornalistas publicarem que ele é o Rei da Cocada Preta e muito mais coisa ainda; os jornalistas publicam, encantados, e Moraes acredita no que mandou publicar. É o diabo. Quando a casa cai, ficam todos falando sozinhos. Desta vez ficaram.
Anos atrás o senador Renan Calheiros recebeu do STF a ordem de abandonar o cargo que ocupava; simplesmente ignorou os ministros e continua lá até hoje, pronto para fazer mais uma CPI e para receber mais uma medalha de Herói da Democracia, colocada em seu peito por quem queria vê-lo no olho da rua até anteontem.
[comentando: salvo engano, nos parece, que o ministro Moraes 'herdou' a pretensão de mandar o presidente da República depor em delegacia de polícia.
Tudo começou quando um outro ministro do STF, recém aposentado - o nome nos foge da memória, só lembramos não se tratar do ministro Marco Aurélio - decidiu que Bolsonaro teria que depor em delegacia de polícia, que oficiais generais teriam que comparecer para depor sob pena de condução debaixo de vara. Tal ministro, às vésperas da aposentadoria e do inevitável ostracismo, tentou reviver excêntricos, coercitivos e medievais procedimentos, buscando atrair atenções.
Por óbvio, resultaram em nada, não foram aplicados, sendo eles e o ministro devidamente esquecidos e a vida seguiu.
Deu ruim para o ministro Moraes, que herdou a encrenca e vai demorar alguns anos para se aposentar e o assunto cair no esquecimento. Coisas da vida.]
Ainda outro dia, a Câmara desobedeceu à ordem, dada pela ministra Rosa, de anular uma lei que havia acabado de aprovar — e que, é claro, beneficiava diretamente o bolso dos deputados. Ficou por isso mesmo. Só obedece ao STF, na verdade, quem tem de obedecer — nos casos em que a obediência é opcional, como acontece quando dão ordens sem ter cacife para se fazer obedecer, Moraes e os seus companheiros podem perfeitamente dançar. Desta vez dançaram. A acusação da qual Bolsonaro teria de se defender na polícia é um completo despropósito, como acontece em todos os surtos do Inquérito Perpétuo Para Salvar a Democracia que Moraes gerencia há dois anos — no caso não dá, sequer, para entender direito do que estão falando. Mas aí é que está: se fosse alguma acusação que ficasse de pé, e Bolsonaro dissesse que não ia do mesmo jeito, não iria mudar nada.
O STF piscou. E daqui para a frente? Vai piscar de novo? Ou vai olhar para o outro lado?
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