Armas existem para matar.
O metal de que é feita, a empunhadura, a
mira, o peso, o equilíbrio, tudo é planejado para permitir que o usuário
atinja com ela um único objetivo –
a morte. O argentino Jorge Luis
Borges é autor d“
O Punhal”, miniconto de 21 linhas incluído na
“Nova Antologia Pessoal” que parece ter sido escrito sob encomenda para
comentar o decreto que facilitou a posse de armas no país.
“Os que o vêem (o punhal)
têm de brincar um pouco com
ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o
punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na
bainha”.
Desde
sempre as armas exercem enorme fascínio sobre as pessoas. Meninos se
divertem com
facas, espadas, revólveres, rifles e metralhadoras de
brinquedo. Adultos acreditam que as armas os tornam poderosos e
invencíveis. Matar é ato instintivo de sobrevivência. Está no DNA do
homem desde o primeiro
neanderthal. Por isso os que olham uma arma não se
contentam em vê-la: querem tocá-la, empunhá-la. Se possível,
experimentá-la.
Armas querem “derramar brusco sangue”
“O punhal outra coisa quer. É mais que uma estrutura feita de
metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é,
de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em
Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar
brusco sangue”.
Armas buscam, desejam e existem para a morte.
Querem
“derramar
brusco sangue”. Não são inofensivas. São letais porque para matar
existem.
“Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas,
interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se
anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada
contato pressente o homicida para quem os homens o criaram”.
A existência de uma arma “pressente o homicida”
A facilitação da posse –
e futuramente do porte – de armas segue a mesma lógica. A simples
existência de
uma arma
“pressente o homicida” para a qual ela foi fabricada.
Exatamente por isso a cada chacina de um desses lunáticos que invadem
escolas e saem atirando e matando todo mundo, o governo norte-americano é
pressionado a dificultar sua liberal legislação sobre a posse e porte
de armas. Já outras instituições de lá como o
Clube do Rifle usam
o argumento de Bolsonaro, segundo o qual “
os cidadãos precisam de armas
para se defender”. No duro, facilitar ao cidadão a posse é uma safadeza
do governo. Como se dissesse ao cidadão: “
agora que nós te demos a
chance de ter tua arma, te vira! Não precisamos mais nos preocupar com
isso, agora é problema teu”.
Sensação de segurança é uma coisa. Garantia é outra
Posse e porte de armas dão apenas uma
sensação de
segurança, nunca sua garantia. Na ampla maioria das vezes o dono da arma
não sabe como usá-la numa emergência. Mesmo o treinamento oferecido nos
clubes de tiro não garante essa aptidão. No máximo, melhora a pontaria.
Deste ponto de vista os marginais estão mais preparados, pela prática
diária no uso de armas. E se o argumento do direito de se defender for
levado às últimas consequências então vamos liberar às crianças o
direito de dirigir carros, em respeito ao preceito constitucional que
garante a TODOS o direito de ir e vir. Ora, se para tirar uma carteira
de motorista é exigido um curso e uma série de provas e testes teóricos e
práticos, porque com armas deve ser diferente? A menos que se acredite
que manejar uma arma seja o mesmo que ligar um liquidificador, como diz
aquele ministro com nome de chuveiro.
A ocasião faz o ladrão. E também o assassino e o suicida
[A Human Righs Watch está colhendo assinaturas para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, proibindo em todo o território nacional a construção de viadutos e pontes - e os existentes serão destruídos.
Todos os edificios deverão ter grades de proteção a partir do primeiro andar e com isso haverá substancial redução no número de suicídios.]
Segundo o último relatório do
Human Righs Watch, “
O
Brasil bateu recorde de mortes violentas em 2017, com 63.880 casos”.
Mesmo que seja doloroso admitir, nós moramos num país homicida. E daqui
pra frente, com mais armas nas ruas e nas casas, será que se pode
esperar uma redução?
O raciocínio é muito simples: mais armas, mais
mortes. Em parte alguma do mundo essa afirmação foi algum vez
desmentida. [FALÁCIA: LEIA E COMPROVE -
Segundo dados do site GunPolicy.Org estima-se que
existam entre 2 milhões e 3 milhões de armas de fogo em mãos civis na
Suíça, cuja população é de pouco mais de 8 milhões de pessoas.
Proporcionalmente, esse país é um dos cinco mais armados do mundo.
Pois
bem, em 2015 a Suíça registrou apenas 18 homicídios por arma de fogo.
No caso do Paraguai, país vizinho, os números são igualmente
importantes.
O país tem quase 7 milhões de pessoas e mais de 1 milhão de
armas de fogo em mãos civis. Em 2014 o Paraguai registrou 318 mortes
por armas de fogo.
Proporcionalmente, há mais armas de fogo em mãos
civis no Paraguai do que no Brasil, porém há muito mais mortes por armas
de fogo no Brasil do que no Paraguai.]
“Às vezes dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis”.
Assim termina o miniconto de Borges. Uma lamentação irônica, pois,
se o punhal está esquecido por aí e não cumpre sua finalidade - que é
matar – torna-se um objeto inútil. Tal como a frustração de alguns
militares pela falta das guerras para as quais foram treinados. A
liberação da posse e uso de armas, é óbvio, só pode implicar em
crescimento da taxa de homicídios, suicídios, latrocínios e
feminicídios, e não na sua redução. Seres humanos são tentados a usar
armas pela curiosidade e atração natural que elas exercem. Tal como a
ocasião faz o ladrão, a disponibilidade de armas faz o assassino e o
suicida.
Vamos brincar de duelo?
Quanto ao argumento de que o povo condenou o Estatuto do
Desarmamento no referendo de 2005, vale lembrar que toda vez que ocorre
um crime hediondo o povo exige a instituição da pena de morte, desejo
expresso em pesquisas de opinião. Nem por isso ela chegou a ser
implantada. Mas, no ritmo em que as coisas andam, não demora e
avançaremos
(ou retrocederemos?) até lá. Enquanto isso, que tal brincar
de duelo e ver quem saca primeiro? Só que agora com armas de verdade,
balas de verdade, e mortes de verdade.
Congresso em Foco