Comovente uma cena comum entre nós leva a reflexões sobre a nossa
sociedade.
Num dia primeiro do ano, cedo, a maioria ainda dormindo, um
homem moço, com braços fortes, queimado de sol, de calção e camiseta
corre de uma lixeira à outra, rasgando sacos e deles retirando garrafas
plásticas, latas, papéis e outros objetos para carregar num carrinho
que quase desaparecia sob uma montanha.
Era um carro de duas rodas,
com dois varões horizontais paralelos unidos na frente por uma barra
transversal. Tal era o peso acumulado que parado se inclinava para trás e
os varões apontavam, como lanças, para o céu. O homem move-se com
desenvoltura, concentrado, nada desprezando. Depois de tudo ajeitado,
posiciona-se entre os varões, pula e alcança a barra transversal e
então, com seu peso, equilibra o carro que puxa com grande esforço,
arfante, músculos retesados, seguindo até novo achado onde recomeça.
Oprimido pelo mundo, não desiste e busca com esforço, com as próprias
mãos, retirar do lixo a sobrevivência. Com vontade digna de um deus
grego, um exemplo de fortaleza e caráter para ser cantado em versos e
que mereceria ser eternizado no bronze é, em sua fragilidade social,
um gigante, um centauro, um sobrevivente. Dos restos está, com esforço e
perseverança, arrancando seu sustento, e sabe lá de quantos.
Para alguns todas as chances, para outros o lixo! À tamanha disposição, se oportunidade fosse dada, a gratificação seria imensa.
Faz-nos
pensar, ao propiciarmos aos nossos todas as oportunidades, insistirmos,
brigarmos para que façam bem as coisas, estudem, se esforcem e que nos
respondem, às vezes, com indiferença e até desdém.
Um dia li
uma opinião clara de que, para resolver os problemas do tráfego,
dever-se-ia retirar das ruas as carroças, pois elas o atravancam., mas
esqueceu que todavia temos ainda conosco convivendo homens que não
atingiram sequer o estágio da tração animal e puxam eles próprios
seus pesados carros.
Sofisticamente, a opinião esquecia a luta hercúlea
que, com meios naturais elementares, mãos e força física, estão
travando estes nossos irmãos.
Merecem, sim, a nossa admiração e, ao
invés de execrá-los, deveríamos fazer esforços para trazê-los ao século
XXI em que a tração animal e, mais distante, a humana, seriam apenas
uma lembrança.
Não basta tirá-los simplesmente das ruas.