Cristiano Romero
Mais de 600 mil negros foram assassinados desde 2000 no Brasil
[triste concluir que mesmo sendo o valor da vida de um negro exatamente igual ao valor da vida de um não-negro, a matéria deixa transparecer que fosse o número de vidas de negros ceifadas igual ou inferior ao de vidas de não negros os números perderiam destaque, haveria uma igualdade que deixaria satisfeitos os que teimam em apresentar os negros como vítimas de uma desigualdade, de um racismo que não existe.
Muitas vidas negras foram tiradas por não negros e também por negros; muitos não negros perderam a vida assassinados por não negros e também por negros.]
Uma
das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil
é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de
mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos,
que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território
que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se
estima que mais de 600 mil pessoas morreram.
Entre
1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível,
1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”,
elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios
tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram
assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018,
57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há
quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).
Alguém
notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017,
65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo
(71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no
ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode
mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.
O
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a
única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade
metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é
alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados
tem caído de forma assombrosa. “Entre
2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada)
aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a
ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI,
das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos
cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de
9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz
o último “Atlas da Violência 2020”.
No
total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não
sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja
existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas
como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como
indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na
estatística MVCI.
Pesquisa
feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima
que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios
ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco
território pode ser até 20% superior ao número informado.
Definitivamente,
no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos
de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e
pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em
2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo.
Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de
assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.
Mais
uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados
no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos
está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade
indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%,
segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os
números mostram, tem aumentado de forma veloz.
Apenas
em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE)
representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100
mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos,
amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada
indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.
Da
mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres
assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de
5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras.
“Este
cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da
violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de
homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não
negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de
homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6%
menor”, informa o Atlas da Violência.
O
Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a
humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais
do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão
chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade.
Aqui, a guerra civil nunca acabou.
Valor Econômico