O Estado de S.Paulo
Não é esse o Supremo Tribunal Federal a que a Nação aspira e a Constituição prescreve
“No Supremo, não se faz justiça quando se quer, se faz justiça quando se pode”, Ministro Moreira Alves
“De todas as nossas paixões e apetites, o amor ao poder é o de natureza
mais imperiosa e insociável, pois a soberba de um homem exige a
submissão da multidão.”
A frase é do historiador Edward Gibbon
(1737-1794), autor da monumental obra Declínio e Queda do Império Romano
(Ed. Companhia das Letras, SP, pág. 93). Na doutrina da Igreja
Católica, soberba, ira, luxúria, gula, avareza, inveja e preguiça são
pecados capitais, manifestações de revolta contra Deus que provocam a
destruição moral do homem e a condenação ao inferno. Segundo o Moderno
Dicionário da Língua Portuguesa, Michaelis, por soberba entende-se a
manifestação ridícula e arrogante de orgulho ilegítimo, que tem como
sinônimos perfeitos orgulho, presunção.
Conquanto presente na vida privada, na qual se manifesta em ridículas
demonstrações de vaidade combinadas com mediocridade, a soberba é
encontrada mais frequentemente na vida pública, quando se projeta de
forma agressiva, sem disfarces, sob a proteção do espírito de corpo, da
vitaliciedade, do mandato, da toga. A Praça dos Três Poderes é cenário ideal para manifestações de soberba.
Poucos que a habitam conseguem escapar à atração do pecado. Por lá
também passaram homens e mulheres despidos de vaidade. No período em que
residi em Brasília, conheci exemplos de humildade e modéstia no
Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Não eram muitos. A fútil
sensação de estar investido do exercício do poder, e de que este é
infinito no tempo e no espaço, põe a perder boas vocações para a vida
pública, esquecidas de que do êxito ao exílio a distância é diminuta.
O Supremo Tribunal Federal (STF) permaneceu décadas protegido pelo manto
da discrição. Enquanto esteve sediado no Rio de Janeiro (1829-1960),
raros eram os brasileiros, alheios ao reduzido círculo das profissões
jurídicas, que o conheciam. Nomes de ministros permaneciam ignorados
pela maioria da população. Exceção feita a decisões de repercussão
histórica, como as encontradas na obra do ministro Edgard Costa Os
Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal (Ed. Civilização
Brasileira, RJ, 1964), debates entre ministros e intervenções dos
grandes advogados ficavam confinados às páginas do Diário da Justiça e a
repertórios de jurisprudência, não reverberando entre pessoas do povo.
Livros jurídicos sobre o STF proporcionavam limitadas edições, jamais
alçando à categoria dos mais vendidos. O regimento interno do tribunal
era assunto de pouco interesse, sendo raros os advogados interessados em
consultá-lo. O ministro Celso de Mello, decano da Corte, é autor do
opúsculo Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República),
radiografia gráfica que dá a conhecer as alterações de denominação do
órgão de cúpula da Justiça brasileira. O STF já se chamou Casa de
Suplicação do Brasil, instalada pelo príncipe regente dom João em
15/5/1808; Supremo Tribunal de Justiça, denominação adotada pela
Constituição de 1891; Corte Suprema, nome que lhe deu a Constituição de
1934; e, finalmente, Supremo Tribunal Federal a partir da Carta
Constitucional de 1937.
A vida recatada do STF sofreu brusca alteração após a promulgação da
Constituição de 1988, com o advento da TV Justiça e a transmissão ao
vivo das sessões. Não existem armas tão perigosas quanto o microfone e a
câmera de televisão. São mais letais do que o fuzil. Presidi o Tribunal
Superior do Trabalho (TST) antes da TV e da mudança para o prédio
projetado por Oscar Niemeyer, destinado a disputar com o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) em área construída e magnificência, como são
as obras do célebre arquiteto. Reconheço as diferenças.
Desde as greves de São Bernardo valorizo o poder da mídia. No exercício
da liberdade de que está investida, constrói e destrói reputações no
espaço de minutos. Já aposentado, foi-me concedida a oportunidade de
acompanhar as transmissões dos julgamentos pelo STF e de constatar como
senhoras e senhores que se deveriam resguardar sob a proteção da toga
aceitaram se envolver em exibições de poder e erudição e não vacilaram
nas manifestações de orgulho, rivalidade e ira.
Não sou eu quem o diz. Valho-me do livro Os Onze – O STF, seus
Bastidores e suas crises(Ed. Companhia das Letras), escrito pelos
jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, que põe a nu as entranhas do
Supremo Tribunal com impiedosa revelação da realidade camuflada por
expressões do tipo “eminente ministro” e “vossa excelência”. Reveladora é
a passagem em que o ministro Edson Fachin declara que, entre advogado,
professor e ministro, a diferença é “aquele paninho” ele tem “em cima
das costas” (pág. 129).
Mesmo para o cético observador é cruel saber que a guarda da
Constituição, promulgada sob a proteção de Deus para instituir um Estado
democrático destinado a assegurar a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, como diz o
Preâmbulo, está nas mãos de ministras e ministros conduzidos pela
soberba. “A vitaliciedade do cargo transforma os ambientes em cápsulas da
personalidade de cada ministro, os quais também impõem suas normas de
estilo ao gabinete” (pág. 50). Na visão dos autores de Os Onze, o STF
dos nossos dias se transformou em arquipélago de 11 ilhas
incomunicáveis, ou Estados autônomos e independentes, cada um deles
capaz de declarar guerra ao Estado inimigo – o colega ao lado –, fazer
sua própria política externa – com os outros Poderes – e pautar-se por
um regramento próprio (pág. 44).
Não é esse o Supremo a que o povo aspira e a Constituição prescreve. A
continuar assim, acabará por dar razão ao impetuoso deputado Eduardo
Bolsonaro, que ameaçou fechá-lo com um soldado e um cabo.
O Estado de S. Paulo - Almir Pazzianotto Pinto, advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do TST
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