Editorial
Guardião da Constituição, STF deve zelar pela continuidade de suas normas, promovendo - e não dificultando - medidas que assegurem a responsabilidade fiscal
Na quinta-feira passada, formou-se maioria no Supremo Tribunal Federal
(STF) para declarar inconstitucional a permissão de diminuir a carga
horária com a proporcional redução de salários de funcionários públicos,
tal como previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal como forma de
enfrentar situações de grave desequilíbrio das contas públicas. Uma vez
que a Carta Magna não prevê expressamente essa possibilidade, a maioria
dos ministros entendeu que, por força do princípio da irredutibilidade
dos vencimentos, uma lei não pode criá-la.
O estranho nessa história é que não se pode nem mesmo dizer que a
posição majoritária entre os ministros do STF protege a Constituição. Ao
contrário, ela dificulta que sejam respeitados os limites previstos na
Carta Magna. “A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os
limites estabelecidos em lei complementar”, diz o art. 169 da
Constituição. Como limite máximo para o gasto com pessoal, a Lei de
Responsabilidade Fiscal determinou o porcentual de 60% da Receita
Corrente Líquida. Preocupada em assegurar que esse limite seja de fato respeitado, a
Constituição previu medidas drásticas para a União, os Estados, o
Distrito Federal e os municípios. Havendo risco de ultrapassar tal
limite, o ente federativo deverá – trata-se de uma ordem constitucional,
e não mera possibilidade – reduzir as despesas com cargos em comissão e
funções de confiança em pelo menos 20% e exonerar servidores não
estáveis. [a exoneração de servidores não estáveis é ponto pacífico., sem maiores complicadores quanto sua imediata aplicação;
quanto aos servidores estáveis 'escolhidos' para formar o percentual de 20% é necessário que haja norma definindo critérios para a escolha - sendo a lei o instrumento adequado para definir critérios, e legislar é atribuição do Poder Legislativo, não cabe ao Supremo ingressar na competência constitucional de outro Poder. [a exigência constitucional de "ato normativo motivado de cada um dos Poderes" torna a definição de critérios constitucional.]
Vez ou outra o STF exagera legisla e desrespeita a Constituição - sendo criticado - quando decide respeitar a Carta Magna, da qual é Guardião, também é criticado.
Se é dificil ser Supremo, enquanto colegiado, imagine monocraticamente - tentação a qual a maior parte dos ministros não resiste.]
Se essas medidas não forem suficientes, “o servidor estável poderá
perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes
especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa
objeto da redução de pessoal”. Tudo isso é texto constitucional,
incorporado à Carta Magna por meio da Emenda Constitucional (EC)
19/1998. Aprovada após a EC 19/1998, a Lei de Responsabilidade Fiscal previu uma
medida mais branda que a exoneração de servidores. “É facultada a
redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à
nova carga horária”, estabeleceu a Lei Complementar 101/2000.
Com isso se forneceu aos Estados e municípios mais um caminho para que
fosse respeitado o limite constitucional dos gastos com pessoal. Em
determinadas situações, já não seria necessário demitir servidores por
causa do desequilíbrio fiscal. Bastaria diminuir as despesas do ente
federativo mediante a redução temporária da carga horária, com a
correspondente diminuição do salário. Pois bem, a maioria do Supremo entendeu que tal redução de carga horária
é inconstitucional. Tem-se, assim, um sistema ilógico. Por uma questão
fiscal, pode-se demitir o funcionário público. Esse ponto não estava em
discussão, já que a Constituição o prevê expressamente. No entanto, para
a maioria dos ministros do STF, não se pode reduzir o salário, mesmo
quando se diminua a carga horária de trabalho.
O relator da ação, ministro Alexandre de Moraes, foi voto vencido. “Não
seria razoável impedir ao legislador a criação de um caminho
intermediário que preservasse a garantia maior, que é a estabilidade,
por meio de uma relativização temporária e proporcional de uma garantia
instrumental, a irredutibilidade de vencimentos”, lembrou o ministro
Alexandre de Moraes, cujo voto foi acompanhado integralmente pelos
ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes. A Constituição não é um conjunto desconexo de normas. Ela dá forma e
organiza todo o Estado. E, ao fixar os princípios que devem nortear o
poder estatal, a Carta Magna reconhece a importância fundamental do
equilíbrio das contas públicas. Como guardião da Constituição, o STF tem
o papel de zelar pela efetividade de suas normas, promovendo – e não
dificultando – a aplicação de medidas que assegurem a responsabilidade
fiscal. A permissão de redução da carga horária e, consequentemente, de
salários de servidores públicos prevista na Lei de Responsabilidade
Fiscal era uma clara ajuda para que o art. 169 da Carta Magna seja de
fato cumprido. Não faz sentido, portanto, declará-la inconstitucional.
Editorial - O Estado de S. Paulo
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