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quarta-feira, 4 de março de 2020

Motins estimulados pelo governo apontam politização dos quartéis - Folha de S. Paulo



Confraternização do chefe da Força Nacional com PMs no Ceará acende alerta nos estados

Desde que as Forças Armadas cristalizaram a aliança com Jair Bolsonaro, já com o segundo turno da eleição de 2018 em curso, o risco da militarização da política foi cantado em prosa e verso.  Se tal movimento é praticamente impossível de negar, apesar do esforço da cúpula do serviço ativo para tentar distanciar-se de seus inúmeros membros no primeiro escalão do governo, seu corolário ainda era visto mais como uma hipótese assustadora do que como realidade.

Até aqui. A mão inversa da politização dos quartéis parece ter virado uma avenida, e o ponto de inflexão é o empenho do governo no estímulo velado aos motins policiais. O tema estava na boca de governadores de estado ouvidos pela Folha nas duas últimas semanas, devido aos rumos da mobilização policial no Ceará —cujo saldo de 241 homicídios é um monumento à irresponsabilidade da gestão pública do país. [governos estaduais - cada estado é o responsável pela Segurança Pública, incluindo Polícia Militar e Polícia Civil.]

O malabarismo do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), que admitiu o óbvio (greve de policial é ilegal) para sapecar uma esperteza retórica (os policiais parados não seriam criminosos), acendeu luzes de alerta.  Elas se transformaram numa piscante árvore de Natal com o complemento feito pelo coronel Aginaldo Oliveira, da Polícia Militar do Ceará por origem, na chefia da Força Nacional por oportunidade.

Ele se esqueceu da distinção e chamou os amotinados de “gigantes” quando deveria estar enquadrando seus pares.  Oficiais da ativa e pelo menos dois governadores lembraram, nesta terça (3), que o último homem em missão semelhante que resolveu confraternizar com rebeldes acabou em desgraça — ninguém menos que o “general do Lula”.  Conhecido como G. Dias, o general Marco Edson Gonçalves Dias foi figura carimbada durante os oito anos de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Chefe da segurança presidencial, era boa-praça e chamava a atenção com sua lustrosa calva.

Após o fim do governo, ele foi chefiar uma tropa na Bahia. Em 2012, eclodiu um motim de PMs no estado. Num dado momento, na linha de frente, ganhou um bolo como presente de aniversário e resolveu bater um papo com a tropa aquartelada. Prometeu-lhes anistia, ganhou uma remoção para um cargo burocrático seguido de uma ida expressa à reserva. Como diz um general que acompanhou o episódio à época, foi feito de exemplo.  Eram outros tempos. Para piorar, Oliveira integra a animada corte do bolsonarismo federal. Casou-se recentemente sob os olhares de Moro.

De branco a seu lado, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), uma das expoentes da bancada do selfie que emergiu das redes sociais estridentes para o Congresso em 2018.  Alguém pode apontar que Oliveira não é um oficial das Forças Armadas, e sim um policial. Cabe lembrar: PMs são forças de reserva e auxiliares do Exército, como define o artigo 144 da Constituição.  O militarismo de sua estrutura não é um detalhe, é o seu DNA. E a empolgação dos sacerdotes de missa negra do bolsonarismo pelo ideário policialesco é vista por integrantes dos dois corpos (o policial militar e o militar) como uma forma de legitimação.

Muitos oficiais e, principalmente, os mais jovens consideram o “ethos” vigente uma resposta ao suposto desprezo pela autoridade policial por parte das forças de esquerda que governavam o país — todas egressas do combate à ditadura de onde o arcabouço filosófico da PMs surgiu. Nesse caldeirão, a frase de Oliveira com o beneplácito explícito de Moro e silencioso de outro superior, o secretário nacional de Segurança, general Guilherme Theophilo (aliás, ex-candidato a governador pelo PSDB do Ceará derrotado pelo petista ora sob pressão) soa natural.

Obviamente, não é, ou ao menos não deveria ser.  Se é verdade que a incompreensão da realidade dos policiais é uma marca registrada de partidos de esquerda, isso não significa que pessoas encapuzadas e armadas devam ser louvadas como meras trabalhadoras atrás de direitos.  Dois barris de pólvora se destacam: Minas Gerais, onde Romeu Zema (Novo) prometeu um aumento nababesco e inexequível de 41%, e Espírito Santo, terra em que Renato Casagrande (PSB) foi pela mesma linha.

Nos domínios capixabas, as feridas do motim de 2017 ainda não cicatrizaram, e o caso tem sido acompanhado com muita atenção em São Paulo.  No maior estado do país, o governo João Doria (PSDB) adotou uma retórica constante de valorização do trabalho policial —gerando inclusive as críticas previsíveis.  Por ora, a cúpula da segurança do estado vê a situação sob controle, mas há apreensão. Uma contaminação paulista do movimento nacional mudaria o status da crise.

Ninguém falará isso em público, mas entre aliados do tucano há o temor de que Bolsonaro busque desestabilizar o rival certo na eleição de 2022. A tensão segue, num momento em que a fase mais aguda do embate entre Congresso e Planalto parece estar cedendo —embora não se saiba ainda o que será feito do ato do dia 15 em favor do governo e contra o resto.  Mal parafraseando T.S. Eliot, essa é uma crise que, tendo começado com um estrondo na forma de dois tiros de amotinados no peito do senador Cid Gomes (PDT-CE), não parece caminhar para o fim apenas com um sussurro.

Igor Gielow, jornalista - Folha de S. Paulo





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