O Estado de S. Paulo
Discursos demagógicos não têm efeito sobre os cidadãos, que sentem a ameaça próxima
A pandemia, o isolamento e o medo põem questões que vão mais além das
relativas a como levar uma vida “normal”, por produzirem indagações
sobre o próprio sentido da vida. Em situações normais, as pessoas estão preocupadas com as atividades
profissionais e domésticas, tal como acontecem no dia a dia.
Preocupações básicas são as que regem este tipo de condição:
a renda, a
escola das crianças, a sociabilidade profissional e a familiar, o amor, a
amizade, o ir às compras.
Já em situações como esta que estamos
vivendo, as preocupações são de outra ordem: a doença, o medo da morte, a
possível falta de mantimentos, a manutenção do emprego, a redução da
renda, o isolamento, a pergunta pelo amanhã.
Uma analogia possível é com a condição de guerra. Nesta, a saída abrupta
da normalidade é imediatamente sentida: a existência humana é mostrada
em sua fragilidade, a emergência toma conta do dia a dia. A morte
abrupta surge para cada um como uma realidade, seja ela militar, seja
civil. No entanto, os sentimentos e emoções daí resultantes não são
necessariamente os mesmos, pois as pessoas não se isolam, mas vêm a
cumprir uma função social junto ao Estado, sob a forma da defesa da
pátria. A morte ganha, nesse aspecto, sentido.
A morte é uma questão existencial primeira da condição humana, essa que
coloca o homem diante do nada, do limite da condição humana. Ela é o
horizonte de cada um, por mais que pensemos nela ou não. A significação
da morte no fim da vida faz com que as pessoas se preparem para isso,
tanto individual quanto familiarmente. Retiram-se progressivamente,
planejam pelo testamento a sucessão dos bens, acostumam-se à ideia.
Alguns recorrem à religião, acreditando em outra vida. No caso de a
morte acontecer numa guerra, ela adquire a significação de que o
indivíduo é membro de uma comunidade, sendo assim compreendida pelo
Estado e pelos seus próximos. No momento, porém, em que a redução do
ciclo natural se dá sob a forma de uma doença coletiva, é como se o sem
sentido ganhasse a forma do absurdo.
Uma significação que surge no contexto de pandemia é a de a pessoa
sentir-se abandonada pela vida, abandonada por aqueles que com ela
conviviam, salvo os que terminam compartilhando a mesma reclusão. Uma
expressão do abandono é a solicitude e a introspecção. O mundo torna-se
uma ameaça. Há formas de mitigação, como o telefone e as redes sociais,
que tornam viável um modo de substituição da presença física. Mas há
algo aqui que faz enorme diferença: a presença física do outro, o olhar,
o toque, a expressão física do sentimento. O beijo e o abraço
desaparecem.
As pessoas reclusas sentem necessidade dos seus. Algumas ficam mais
vulneráveis por viverem sozinhas, outras se agrupam em seus núcleos
familiares mais próximos, em todo caso o seu número deve ser
necessariamente reduzido. Outras que vivem na miséria têm esses
sentimentos ainda mais potencializados. O contato presencial das
pessoas, para além desses núcleos, é rompido. Em seu lugar surgem outros
instrumentos de comunicação, as redes sociais obtendo aí protagonismo
maior. Acontece, contudo, que a comunicação virtual entre as pessoas
passa a ser mediada por outro tipo de comunicação, a social/digital, que
se faz por notícias e informações.
Do ponto de vista da informação, tudo vale nas redes sociais, notícias
verídicas como falsas. As redes podem, assim, tornar-se instrumentos
poderosos de desinformação, divulgando o que se denomina fake news,
tendo como objetivo aumentar a insegurança das pessoas, tornando-as
ainda mais vulneráveis. O descontrole pode adquirir uma conotação
política, alheia à saúde pública.
A faceta política do medo da morte e do abandono consiste numa presença
maior do Estado como provedor da segurança perdida, enquanto possível
solução de uma morte prematura e do abandono. Numa situação de epidemia,
as pessoas tendem a pedir a intervenção do Estado, fornecendo-lhes
condições de existência. Na guerra, o Estado toma a decisão de atacar
outro país ou de se defender; na epidemia, a sociedade é atacada por um
inimigo invisível, sem que o Estado nada tenha podido fazer.
O coronavírus, nova versão, é um inimigo que se expande, se infiltra e
ameaça a vida de cada um. Desconhece fronteiras e não aceita nenhum
controle estatal. Não tem medo de nada, embora faça medo a todos. Tem a forma do invisível, que só é sentido quando toma conta do corpo
das pessoas. Palavras não têm sobre ele nenhum efeito, apenas medidas
concretas.
Eis por que discursos demagógicos não têm sobre ele nenhum efeito,
tampouco sobre os cidadãos, que sentem a sua ameaça próxima. Leem e
escutam sobre o número crescente de mortos, de infectados, e se
perguntam se não serão eles os próximos. Não podem, evidentemente,
compreender que se possa tratar de uma “histeria”, de uma “fantasia”,
pois a presença do inimigo invisível é real. Discursos técnicos,
sensatos, de combate à doença tomam o lugar da demagogia, por serem
eficazes nesta luta, os cidadãos podendo neles se reconhecer.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia - O Estado de S. Paulo
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