O Globo
O país do privilégio e a fraude na vacinação
Nada
mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos
estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas
que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para
garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia
que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada
um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.
[O poder do Exemplo: grande parte dos órgãos de imprensa tentam atribuir ao presidente Bolsonaro responsabilidade pela mortandade causada pela covid-19. Atribuem à loquacidade do presidente, que algumas vezes adentra à incontinência verbal, serve de exemplo aos brasileiros e com isso a pandemia avança.
Mas neste mau exemplo o STF se superou - assunto amplamente noticiado.
Se a Suprema Corte, tenta furar a fila de vacinação, que dizer dos 'apadrinhados' por prefeitos e governadores. O correto é que governador, prefeito, ou seus subordinados e aspones, flagrado furando a fila seja punido com rigor.
Felizmente, o STF desistiu de punir quem os que não aceitarem se vacinar. Seria uma medida absurda - especialmente pela não disponibilidade abundante do imunizante - e que iria resultar no CAOS CAÓTICO que predominou no combate à covid-19, decorrente da decisão que atribuiu aos governadores e prefeitos o protagonismo no combate ao coronavírus.
Ademais, nos parece não existir legislação estabelecendo punição - teriam que se valer do recurso de punir por analogia (seria algo do tipo: recusar a vacina contra a covid-19 é crime análogo ao .....'estupro', 'propagar doença contagiosa', 'racismo'... ) recurso não aceito em matéria penal e que seria implantado mediante decisão judicial = invadindo a competência privativa do Poder Legislativo.
Também seria uma bagunça, por abrir espaço para um governador proibir furar a fila e um prefeito permitir a prática e vice-versa.]
No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que
deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização
nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das
vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa
nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que
nem sabia o que era o SUS quando assumiu, cada dia cobra o pedágio em
mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que
deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da
pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.
O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos sete
estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de
autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que
estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de doses de vacina enviado para
cada município, a valorização do imunizante fez com que se criasse um
criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas
que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de
prioridades. [falando na lista, excelente que os profissionais de saúde, especialmente os da linha de frente - não apenas do front de combate à covid-19 e sim dos que tem qualquer contato com doentes (o profissional de saúde pode trabalhar na área de socorro a acidentados e encontrar um portador do coronavírus).
Felizmente desistiram, pelo menos por agora, de priorizar presidiários = estes não precisam de serem vacinados com prioridade, pelo simples fato de que sendo a lei cumprida, estão sujeitos ao isolamento compulsório - reclusão = regime fechado.
Outra prioridade indevida é a concedida a índios que vivem em aldeias e a quilombolas sem comorbidades; qual a razão da injusta concessão? índios que vivem em aldeias, se supõe que vivem isolados, convivendo apenas com os da aldeia!!!
- qual a razão de um quilombola, digamos com 62 anos, sem comorbidade, ter prioridade em relação a um não quilombola com 70 anos? pergunta válida para indígena que está sendo vacinado fora da aldeia?
A TV mostrou índios jovens, sem comorbidades, 'furando' fila com dezenas de profissionais de saúde sendo preteridos.]
Uma lista, aliás, que terá que ser refeita, pois não há vacinas para todo o
grupo, e alguns municípios estão distribuindo literalmente meia dúzia de doses
para os postos de vacinação. Centro da crise humanitária mais grave dessa
pandemia, Manaus teve que suspender a vacinação para reorganizar as
prioridades. As doses de Coronavac que chegaram ao estado nesta semana são
suficientes para vacinar somente 34% dos profissionais de saúde que atuam no
estado, que sofre há dias com a falta de oxigênio e de insumos para vacinação.
Mas as filhas do dono de uma das maiores universidades privadas de Manaus, no
Amazonas, já estão protegidas pela primeira dose, pois não apenas furaram a
fila, como exibiram seus troféus nas redes sociais. Médicas, foram contratadas
pela Secretaria de Saúde na véspera da vacinação começar.
Não foi nem preciso investigar, elas, como várias outras pessoas em diversos
estados, foram reveladas pelo próprio narcisismo, pois publicaram suas fotos
nos “Insta” da vida sem nem mesmo notar que estavam se autodenunciando por um
crime que deveria ser duramente castigado, assim como os responsáveis pela
liberação de tal privilégio.
A perda da noção de pertencimento a uma comunidade, que deveria vir sempre
antes da escolha individual, é um fenômeno da pós-modernidade, segundo o
sociólogo Zygmunt Bauman, e no Brasil ela é exacerbada pela síndrome do “você
sabe com quem está falando”, sobre o que escreve com maestria outro sociólogo,
o brasileiro Roberto DaMatta, que se espanta até hoje como os sinais de
trânsito não são respeitados nas ruas do país.
DaMatta escreve ensaios sobre nossas autoridades e celebridades que promovem
“um espetáculo deprimente de racismo, machismo, ignorância, arrogância e
injustiça por se considerarem superiores aos demais e, portanto, dispensados de
obedecer às leis e às normas da boa convivência social”. O livro, ampliado e
reeditado, continua contemporâneo, prova de nossa falência como sociedade.
Merval Pereira, jornalista - O Globo
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