“Fique em casa”? Como alguém que precisa trabalhar todos os dias para
sustentar a si ou à sua família pode “ficar em casa”? É um dos grandes
clássicos de todos os tempos em matéria de atitude elitista diante da
vida: “Vamos adotar a regra que seja melhor para nós; fora do nosso
mundinho não existe nada, nem ninguém, que possa interessar.”
É a
convicção religiosa, arrogante e autoritária de quem se dá ao direito de
decidir sobre a vida social no Brasil de hoje — com o apoio quase
integral da mídia, das classes intelectuais e de tudo o que descreve a
si próprio como “campo progressista”.
Mas as pessoas que não pertencem à
elite, essa elite que já está com a vida ganha, simplesmente não podem
ficar em casa: não podem, ponto-final.
São obrigadas a utilizar
diariamente o transporte público;
só em São Paulo, e só no sistema de metrô e de trens metropolitanos,
são cerca de 8 milhões de passageiros por dia. Precisam abrir seus
negócios para sobreviver, para pagar aos funcionários e para pagar as
verbas rescisórias quando são obrigados a demitir esses funcionários.
Precisam, em resumo, ir ao trabalho —
inclusive para fornecer à minoria
que tem o privilégio de fazer “distanciamento social” a alimentação, os
remédios, os serviços de água encanada, luz elétrica e gás de cozinha, o
delivery e tudo o mais que a elite confinada precisa e deseja 24 horas por dia.
Desde o primeiro decreto que os governadores e prefeitos, mais os seus secretários, médicos-burocratas e gerentes de marketing,
baixaram na sua tentativa de “gerir” a covid, tudo foi feito para a
minoria que forma a elite.
Você sabe muito bem quem são eles — os ricos
em geral e a classe média alta das cidades, em primeiro lugar.
A maioria
dos 12 milhões de funcionários públicos.
(Os policiais, enfermeiros ou
agentes da alfândega, por exemplo, continuam pegando no pesado todos os
dias; para eles, e muitos outros, não há os luxos do home office.)
Executivos de multinacionais, de bancos e de grandes empresas.
Professores públicos e particulares.
Cem por cento dos intelectuais,
políticos e magistrados. Em suma: todos os que não precisam comparecer
diariamente ao local de trabalho para ganhar salário ou prover a própria
renda.
É neles, e só neles, que as “autoridades locais” pensam dia e
noite; são eles o público-alvo, e único, das entrevistas coletivas quase
diárias que os governadores, os prefeitos e os seus “cientistas” dão em
seu cenário de máscaras fashion e adereços variados de
propaganda — tudo pago com o dinheiro da maioria, por sinal. (Só o
governador João Doria, até agora, deu 200 entrevistas sobre o assunto;
São Paulo, com 85 mil mortes, é o maior cemitério da covid em todo o
Brasil, até porque é o Estado mais populoso.)
Para a elite que vai de luva ao supermercado e está preocupada em
pegar covid no botão do elevador, as “autoridades locais” garantem que
estão cortando o transporte público, para ver se forçam a pobrada a
viajar menos; em São Paulo, já conseguiram eliminar 40% da frota de
ônibus. [em Brasília, o secretário de uma tal de mobilidade urbana, palavra que define a mobilidade que não se move, indagado pela imprensa como impedir aglomeração no transporte público, apenas respondeu: "a população deve evitar o transporte público". Lógico que o ENGANÊS, alcunha merecida do ainda governador do DF, ,pelas promessas não cumpridas do DF, pensou em demiti-lo. Desistiu - poderia até perder o cargo...E, agora os marajás do metrô do DF, o metrô que consegue gastar o maior valor no planeta Terra para transportar passageiro x km2, criaram uma greve.
Descobriram que tem uns horários e trechos em que os passageiros estão desobedecendo a regra primeira: fique em casa, mas sempre que possível se aglomere, especialmente no transporte coletivo.]
Asseguram que a polícia está em cima da lojinha de bairro que
pode, quem sabe, carregar o vírus até as coberturas. Os fiscais também
estão ligadíssimos a tudo — aliás, esta é uma época de ouro para os
fiscais, e para os chefes dos fiscais.
Mandam prender, algemar e agredir
quem vai à praia; querem reprimir o ar livre. Vendedor ambulante, que
não tem onde cair morto? Nem pensar. Cogitam em cortar a venda de carvão
para impedir o churrascão na laje — e, com isso, evitar que o vírus
viaje até os bairros bons. Proíbem a venda de vassouras, panos de prato e
raladores de queijo nos supermercados, e dizem que assim haverá menos
gente disputando espaço nos corredores com a turma do “trabalho a
distância”. Vetam a entrada do povo nas cidades: para eles, só quem tem
casa de praia e de campo precisa ir do ponto “A” ao ponto “B” e, neste
período em que a elite consciente, a favor da vida e socialmente
responsável está evitando “deslocar-se” (ou permanece trancada nos
lugares para os quais se mudou), o povão não tem nada de ficar andando
de um lugar para o outro. As escolas têm de continuar fechadas para
proteger a saúde dos professores e funcionários. E por aí vamos, até o
infinito.
O estado da arte em matéria de incompreensão sobre como vive o Brasil
real é a obsessão dos governadores, dos prefeitos e de seus comissários
pelo “trabalho remoto”. Todas as vezes em que falam da epidemia,
insistem na necessidade de valorizar o “escritório virtual” e de
trabalhar “em casa”; não conseguem mudar de ideia nem de assunto. Não
lhes ocorreu até agora, com um ano e tanto de covid, que a imensa
maioria da população brasileira simplesmente não pode fazer home office — tem
de guiar ônibus, pendurar-se no poste de luz, carregar batata para o
mercado, atracar navios no cais do porto e um milhão de outras coisas.
Ou se faz isso, ou o país morre. Não entendem, de jeito nenhum, que o
Brasil não é a Holanda; não admitem que é impossível fazer aqui
exatamente o que se faz lá.
Nas periferias, não há entrevista com “cientista” nem editoriais contra o “genocídio”
É extraordinário que o comissário-chefe da covid em São Paulo tenha
dito, na frente de todo mundo, que não estava “satisfeito” com a conduta
dos cidadãos em matéria de transporte público — disse, com todas as
letras, que há gente “demais” no metrô. Estão de tal forma fanatizados
pelo “distanciamento social” que nem percebem mais quanto o seu discurso
está ficando elitista, irreal ou apenas estúpido quando falam na
epidemia. Tanto não percebem que deram, ultimamente, para jogar em cima
da população a culpa por ficar doente.
As pessoas não deveriam se
aglomerar. Teriam de ficar mais “em casa”. Deveriam usar duas máscaras
ao mesmo tempo, uma em cima da outra.
Após mais de 350 mil mortos e com taxas de infecção cada vez mais
altas, as “autoridades locais” continuam convencidas, desesperadamente,
de que o confinamento radical e o “fecha tudo” são as respostas mais
corretas para a covid; quanto mais os seus métodos dão errado, mais elas
insistem em continuar repetindo o que fazem. Como pode dar certo, se
aplicam métodos iguais na esperança de obter resultados diferentes?
O
ciclo é aquilo que os norte-americanos chamam de no win situation.
Fecham cada vez mais. Morre cada vez mais gente. Fecham mais ainda. É,
também, a melhor tradição da elite brasileira — a mesma que faz o país
combater a seca com um Departamento Nacional de Obras contra a Seca, ou
tratar o desastre mortal da educação pública dando cada vez mais
dinheiro às universidades. É muito simples: veja, em todas as soluções
preferidas pelos governos, quem ganha e quem perde. Só ganham os ricos,
os aproveitadores do atraso e os ladrões de dinheiro público. A “gestão”
da covid não é nem um pouco diferente.
O “distanciamento social” em São Paulo, para ficar na calamidade
número 1 da epidemia no Brasil, só dá certo nos Jardins, em Higienópolis
e no Itaim. Funciona também no Morumbi, é verdade, mas atenção — só na
parte boa do Morumbi. A 100 metros das casas e dos apartamentos da
classe média alta (e dali para cima), entre os 100 mil cidadãos que se
aglomeram na favela de Paraisópolis — uma das concentrações demográficas
mais altas do Brasil — o pau canta.
Ali não há governo. Não há
entrevista com “cientista” nem editoriais contra o “genocídio”. O
“distanciamento social”, tão precioso na hamburgueria da Faria Lima, é
equivalente a três vezes zero.
É assim ali e é assim nas quebradas da
São Paulo real, onde vivem 70% dos 12 milhões de habitantes do município
e onde os sermões sanitários, morais e cívicos do comissariado de
vigilância da quarentena não querem dizer nada.
A título de ilustração,
sugere-se uma visita ao Rodoanel, um favelaço contínuo e a olho nu que
se estende, quase sem interrupção, por mais de 130 quilômetros nos dois
sentidos da estrada — através de 16 municípios da área metropolitana,
nos três trechos que foram construídos até agora. É lá que está a São
Paulo de verdade — não a São Paulo de Doria, dos seus gerentes de covid e
dos seus especialistas em comunicação social.
Os governadores e prefeitos, como sempre, não levam em conta ao
baixarem as suas ordens que a maioria absoluta da população brasileira é
pobre. Por que iriam perceber agora, se nunca perceberam? Receberam
todo tipo de poder possível para combater a epidemia — inclusive o
direito de expropriar imóveis, o de suprimir as liberdades de reunião,
de ir e vir e de comércio, o direito de fechar igrejas e o de fazer
compras sem licitação.
Não foram incomodados, nem por um minuto, pela
mídia ou pelo Ministério Público nos escândalos de corrupção que pipocam
sem parar desde que receberam do STF a autonomia completa no trato da
covid, sem nenhuma interferência do governo federal. Há mais de um ano,
aliás, esse governo só serve para liberar verbas — que podem ser gastas
sem prestação de contas pelas “autoridades locais”. Por que elas iriam
querer outra vida?
É justamente nisso, por sinal — comando total, responsabilidade zero
—, que está uma das marcas mais agressivas do elitismo radical que torna
a vida pública no Brasil a calamidade que ela é.
Plenos poderes para os
governos estaduais e municipais quer dizer, na prática, plenos poderes
para a elite.
O que existe de mais elitista no Brasil do que uma
“autoridade local”? Pense dois minutos no governador Doria, naquele
outro que escolhe o que a população pode comprar no supermercado, ou nos
senhores de engenho que governam os Estados do Nordeste.
Mais elite que
isso?
Ou, fazendo outra pergunta: quanto, exatamente, você confia nessa
gente? Acha, mesmo, que eles têm competência para tomar decisões que
podem arrasar com a sua vida?
O fato, impossível de ser negado em qualquer sistema lógico de
pensamento, é que a covid foi a primeira ameaça real, direta e imediata
que a elite brasileira viveu em seus 520 anos de história.
Saúde
pública, até então, era problema do povão, só dele — portanto, que se
danem o problema e o povão, como ficou provado pelo estado lamentável
apresentado no início da pandemia pelos hospitais que se destinam a
atender 90% da população do Brasil. Saúde pública?
O que a elite
protegida por planos médicos privados tem a ver com isso? E, se a elite
nunca deu a mínima para a questão, por que raios algum governo, local,
nacional ou universal, haveria de dar?
O resultado é que, ao tornar-se
um problema para os ricos e para a classe média, a covid passou a ser
tratada como prioridade sacrossanta — e com soluções voltadas unicamente
para o interesse das elites. Os demais que se arranjem — e os que não
conseguem se arranjar, na cabeça dos “gestores” da epidemia, podem ir
para o diabo que os carregue. É o Brasil da covid. É o Brasil de sempre.
[duas notas: surpresas podem surgir onde menos são esperadas. A CPI da covid, criada por determinação expedida por um ministro do STF mandando o presidente de um dos Poderes da República, tinha um alvo.
Só que se esse alvo escorregar e outros forem alcançados?
Quanto a conceder poderes totais as autoridades locais para combater à covid, é a porta principal para compras sem licitações, contratações de 'institutos' para gerir o combate à pandemia = ainda que metade dos gastos totais seja apenas para gerir os tais institutos.
E qual a razão de na metade do fim da 'primeira onda' da covid-19, começarem à desativação dos 'hospitais de campanha'?agora, estão sendo montados com o dobro do tempo e de custos.
Pessoal, tudo isso pode ser investigado e muitas vezes uma CGI custa menos e é mais rápida que uma CPI.]
Leia também “Loquidau, a hipnose”
J. R. Guzzo, jornalista - Coluna na Revista Oeste
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