— Mestre, o que essa gente toda está fazendo na rua?
— Deu problema em Brasília, gafanhoto.
— Que problema, mestre?
— Tentaram uma malandragem na surdina, gafanhoto.
— Que malandragem, mestre? Que surdina?
— Tentaram enterrar uma reivindicação da sociedade ao apagar das luzes, gafanhoto. No afogadilho.
— O que é afogadilho, mestre?
— Procura aí no dicionário, gafanhoto.
— Já achei. E por que fizeram isso, mestre?
— Porque democracia é muito complicado, gafanhoto. Tem que dar satisfação pra muita gente. Então tem uma turma boa lá no Congresso que tá preferindo resolver tudo entre quatro paredes.
— Simplifica, né?
— Muito.
— Então qual é o problema, mestre?
— O problema é pra quem tá de fora das quatro paredes, gafanhoto.
— É muita gente?
— Bastante. Você e eu, por exemplo.
— Mas não tem o voto que a gente dá pra eles fazerem lá o que a gente quer que seja feito?
— Aí é que tá. O pessoal da planície quer ter certeza de que o voto foi pro candidato certo, mas o pessoal do afogadilho acha que não precisa.
— Acha que não precisa votar? Ou que não precisa ter certeza de que o voto foi pra pessoa certa?
— Dá no mesmo, gafanhoto.
— E conseguiram enterrar essa reivindicação lá no Congresso, mestre?
— O funeral tava pronto, aí deu ruim.
— “Deu ruim”? Nunca te ouvi falando assim, mestre.
— É que tô meio sem saco pra esses picaretas.
— Entendo. E deu ruim como?
— O povo rugiu aqui do lado de fora e os deputados que ainda têm vergonha na cara suspenderam o funeral.
— E agora, mestre?
— Agora é isso aí que você tá vendo, gafanhoto. Essa gente toda na rua.
— Será que os coveiros vão recuar?
— Isso é problema deles. Essa sua pergunta reflete um dos males da humanidade.
— Pois é, gafanhoto. Contando ninguém acredita.
— Desculpe, mestre. Como assim?
— “Será que eles vão recuar?” “Será que eles vão deixar?” “Será que vai dar?” E por aí vai. No dia em que os indivíduos largarem essa mania de fazer previsão e levarem os seus intuitos até o fim, o mundo será outro.
— Não tinha pensado nisso.
— Então pensa.
— E quem foi que montou o funeral do projeto de verificação do voto?
— Projeto do voto auditável.
— Ah, tá. O que é auditável?
— Procura no dicionário.
— Achei. Voto impresso, né?
— Não tem nada a ver uma coisa com a outra.
— Ué, eu busquei aqui por voto auditável e apareceu logo voto impresso.
— É uma confusão que os próprios defensores da medida ajudaram a criar.
— Os próprios defensores, mestre?!
— Exatamente, gafanhoto. Confundir é muito mais fácil que explicar.
— Assim fica difícil mesmo.
— Bota difícil nisso. Impresso é só o comprovante do voto eletrônico, justamente para que se possa auditar a eleição. Aí eles saem defendendo o voto impresso e os picaretas dizem que é pra voltar ao sistema de voto em cédulas de papel, que é um retrocesso, etc. Entendeu?
— Se não estivesse ouvindo da sua boca eu não acreditaria, mestre.
— Pois é, gafanhoto. Contando ninguém acredita.
— E como os picaretas conseguiram montar o enterro de uma medida de segurança eleitoral que tanta gente quer?
— É uma longa história, gafanhoto.
— Resume, mestre. Quem não sabe resumir não pode ser mestre.
— Agora eu gostei de te ouvir, gafanhoto.
— Obrigado. A minha paciência também está acabando, que nem a sua.
— Até que enfim.
— Estou esperando o resumo.
— O resumo é o seguinte: representantes do Poder Judiciário, que por coincidência são os árbitros da eleição e reabilitaram um criminoso para disputar essa mesma eleição, meteram o bisturi nos partidos e operaram a comissão do voto auditável.
— Eles são cirurgiões?
— Sim. Especialistas em transplante de consciência.
— Explica melhor, mestre.
— Os deputados da comissão que votariam a favor do voto auditável foram transplantados por deputados que se dispuseram a votar contra.
— Caramba! Isso é mais complicado que cirurgia pra mudança de sexo.
— Muito mais. Mas pode ficar simples se você tiver bons instrumentos cirúrgicos e pacientes dóceis.
— Deixa eu olhar aqui no dicionário o que são pacientes dóceis, mestre.
— Larga esse dicionário e vai à luta, gafanhoto.
Leia também “Se as eleições fossem ontem”
Guilherme Fiuza, colunista - Revista Oeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário