Isto dito, a
questão que fica é: “E daí?” Bolsonaro está em guerra com o Supremo
Tribunal Federal, e usou as manifestações do 7 de Setembro para dobrar a
aposta. Disse, entre outras coisas, que o ministro Alexandre de Moraes
deveria deixar de ser “canalha”; também disse que o ministro deveria “se
enquadrar” ou, então, “pedir para sair”. Moraes e o STF, do seu lado,
continuam numa atividade frenética e diária contra Bolsonaro — prendendo
gente, bloqueando contas, mandando depor na polícia, e por aí afora. O
que muda nessa guerra, então, depois que a multidão foi para a rua? Para
Bolsonaro, muda uma coisa fundamental: o impeachment, única
forma indiscutivelmente legal de tirá-lo da Presidência, ficou muito
mais difícil do que já era. É a velha história: rua cheia, impeachment vazio. Já era muito difícil, antes do 7 de Setembro, reunir no Congresso os votos necessários para aprovar o impeachment;
agora, com centenas de milhares de pessoas manifestando seu apoio a
Bolsonaro em praça pública, ficou mais difícil ainda. Para o STF, vai
ser preciso concentrar a energia numa estratégia de jogar todas as suas
fichas no tapetão dos tribunais superiores; ou se derruba o homem ali, e
todo mundo aceita quieto, ou ele continua no governo.
O povo
esteve na rua, sem dúvida — e a queda de popularidade de Bolsonaro, que
vem sendo anunciada com tanta esperança pelos institutos de pesquisa,
foi desmentida em seu primeiro teste diante da realidade. É certo,
igualmente, que as tentativas da esquerda de concorrer no dia 7 com
Bolsonaro foram um fracasso miserável de público. Também fica com uma
fratura exposta o imenso esforço da mídia para dizer que as
manifestações foram antidemocráticas.
Como assim “antidemocráticas”, se a
população exerceu o seu direito de se expressar em público — por sua
livre e espontânea vontade, com bandeiras do Brasil e com crianças, sem
ônibus das prefeituras, sem lanche, sem nenhuma violência, sem uma única
vidraça quebrada?
Tudo bem, mas o povo na rua não vai fazer que o
ministro Moraes se “enquadre”, e muito menos que peça para sair;
não vai
fazer o STF menos hostil a Bolsonaro em suas decisões, nem levar ao
arquivamento do inquérito (este sim, ilegal e antidemocrático) conduzido
pelo ministro Moraes. O STF, com a massa na Paulista e tudo, sente que
tem a força da inércia a seu favor; parece determinado a levar adiante a
guerra.
Continua exatamente do mesmo tamanho, assim, o único
problema de verdade que existe hoje na política brasileira. Esqueça a
discurseira neurastênica que aparece dia e noite, em tempo real, em todo
o noticiário — anunciando calamidades imaginárias, golpes de Estado que
ninguém vai dar e “ameaças à democracia” descobertas debaixo de cada
cama pelo ministro Alexandre de Moraes e por seus colegas do STF, que
funciona cada vez mais, nestes dias, como uma delegacia de polícia.
O
problema que está realmente causando toda essa desordem é, muito
simplesmente, o presidente Jair Bolsonaro — ou, numa tradução mais
direta, o fato de que o atual presidente da República foi eleito em
eleições limpas com quase 58 milhões de votos, tem chances objetivas de
se reeleger para mais quatro anos e não é aceito, de jeito nenhum, pelo
Brasil que manda na política nacional, nas decisões públicas e na
máquina do Estado.
Bolsonaro, para esse Brasil, nunca poderia ter
sido candidato à Presidência em 2018.
Tendo sido candidato, não poderia
nunca ter ganhado a eleição — mesmo porque não tinha partido, dispunha
de tempo zero na televisão e foi excomungado desde o primeiro minuto
pela mídia, pelas elites e pelas classes intelectuais, do Brasil e do
mundo.
Tendo ganhado, não poderia nunca ter tomado posse.
Tendo tomado
posse, não poderia nunca governar.
O diabo é que foi acontecendo tudo
isso, já se passaram dois anos e meio e ele continua presidente.
Pior
que tudo, para quem não admite a sua existência na vida política
brasileira: pelo que se sabe, Bolsonaro quer continuar sendo presidente
do Brasil e conta, para isso, com a reeleição, através das próximas
eleições diretas, livres e constitucionais, com voto eletrônico e tudo.
Fazer o quê?
É uma sinuca de bico. Esse Brasil que quer Bolsonaro
fora do Palácio do Planalto, com ou sem a Paulista lotada, não admite um
dos mandamentos mais elementares da democracia: para tirar o presidente
que você condena, é preciso derrotar sua candidatura na primeira
eleição disponível, caso ele seja candidato, e esperar até o último dia
do seu mandato para colocar um outro no lugar. Se ele não for candidato,
vai ser indispensável, da mesma forma, aguardar o dia 1º de janeiro de
2023 — antes disso, e fora um dificílimo processo de impeachment,
não há o que se possa fazer, a não ser virando a mesa. Eis aí a questão
real: virar ou não virar a mesa. O clima entre os exércitos
anti-Bolsonaro, no momento, é cada vez mais agressivo. A frase mais
repetida, ali, é a seguinte: “Não dá para esperar a eleição”. É muito
usada, também, a sua irmã gêmea: “O país não aguenta até lá”.
Se não
querem que o homem fique até o fim do seu mandato legal, imagine-se,
então, o pesadelo que estão tendo com a possibilidade de um segundo
mandato de quatro anos; [SEM PANDEMIA, CRESCIMENTO DA ECONOMIA, SEM DESEMPREGO = o presidente Bolsonaro realmente governando e cumprindo suas promessas de campanha.] seria, na sua maneira de ver o Brasil, pura e
simplesmente intolerável. Sendo assim, “não pode” acontecer.
Nunca ocorre a nenhum deles que “a coisa” a fazer é seguir a Constituição
Conclusão,
entre as lideranças do Brasil que manda e os seus fiéis: não é possível
correr o risco de que Bolsonaro ganhe as eleições de 2022. Como se
resolve um embrulho desses? A maneira mais direta, eficiente e garantida
é dar um jeito, qualquer jeito, de não deixar que o presidente seja
candidato. É esse o começo, o meio e o fim do problema que existe na
base de toda a agitação política de hoje. A eleição presidencial não
pode ser suspensa por uma liminar do STF, nem por um
embargo-de-qualquer-coisa apresentado pelo PT-Psol-etc. — ou, pelo
menos, ninguém está propondo algo assim até agora. Nesse caso, é
simples: se tem eleição, não pode ter Bolsonaro. [teve colunista da mídia militante que expressou o desejo que o presidente morra e um outro que se suicide.]
É o que se diz todos os
dias, hoje, na confederação nacional antibolsonarista.
Não com essas
palavras, é claro — afinal, o catecismo mais repetido ali dentro, e dali
para fora, é que a democracia está acima de tudo.
Mas para haver
democracia no Brasil é indispensável eliminar o presidente que foi
eleito, dizem eles.
A democracia tem de estar acima da democracia,
entende?
Se não entendeu, tente o seguinte: a democracia é tão
importante, mas tão importante, que em certas horas é preciso ignorar as
regras democráticas para garantir a sua sobrevivência.
Afinal, não se
pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos, não é mesmo?
Não se pode
levar tudo a ferro e fogo, na letra exata da lei, não é mesmo? Etc. etc.
etc. O pensamento é esse, e nenhum outro.
As forças que não
reconhecem o direito constitucional de Bolsonaro à Presidência da
República, nem hoje e nem nunca, são a essência do que se chama de
elites — os grupos, tribos e seitas que sempre controlaram, de um jeito
ou de outro, o poder público no Brasil, através da privatização do seu
aparelho, da sua autoridade e dos seus recursos.
O Estado brasileiro não
é público; é privado, e os seus proprietários são a minoria de magnatas
que realmente toma as decisões do dia a dia, sempre, seja lá quem
estiver no governo. Sabe-se perfeitamente quem são. É o Brasil das
castas do alto funcionalismo, das empreiteiras de obras públicas e da
turma que tem férias de dois meses por ano, estabilidade no emprego e
aposentadoria com salário integral.
É o mundo de quem controla as
corporações, as federações e as confederações.
São os empresários que
tinham “acesso” ao governo — hoje estressados por não estarem mais no
centro das decisões, deslocados pelo comércio eletrônico, as empresas de
tecnologia de ponta e o agronegócio conectado aos sistemas mundiais de
produção.
São os banqueiros — alguns deles, imaginem só, já se dizem de
“esquerda”. É a mídia. São os donos das universidades públicas, que
ficam com a maior das verbas da educação.
São os que influem no
Orçamento. São os intelectuais, os artistas e a alta classe média que se
sente culpada por ser branca, pagar escola particular e andar de SUV.
É
o mundo do privilégio. É o oposto do mundo do trabalho. Não há um único
pobre aí dentro, nem um. Nunca houve, nem vai haver.
É essa a
gente que acha que “o Brasil não aguenta” — a turma do “é preciso achar
uma solução”, do “alguém tem de fazer alguma coisa” e por aí afora.
Nunca ocorre a nenhum deles que “a coisa” a fazer — a única coisa a
fazer — é seguir a Constituição, e não anular com truques legais os
votos de 58 milhões de brasileiros.
Não lhes ocorre, também, que a
maneira correta de substituir presidentes é a eleição livre, e não o impeachment
— a solução de que mais gostam, tanto que, dos cinco presidentes
eleitos neste país por eleições diretas nos últimos 30 anos, dois foram
depostos, Collor e Dilma, e um terceiro, Bolsonaro, está sendo
bombardeado por pedidos de impeachment desde o dia em que entrou no Palácio do Planalto. Pode ser normal um negócio desses?
O STF parece ter decidido que respeitar a lei terá as piores consequências
O
bonito dessa história toda é que os inimigos objetivos da democracia e
da obediência às suas regras para resolver conflitos são, justamente, os
que estão em estado de excitação extrema em “defesa da democracia” e
contra os “atos antidemocráticos” — a começar pelo STF, que deveria ser o
defensor número 1 da Constituição e hoje se transformou num comitê de
salvação pública, com poderes que nenhum órgão do governo brasileiro
teve desde o Ato Institucional Número 5. Como pensavam os governos
militares, a democracia, na visão dos 11 ministros que estão hoje no
Supremo, é “relativa”. Ou, mais precisamente, a obrigação do STF não é
interpretar as leis, tentando fazê-las fiéis ao que o legislador aprovou
— e sim aplicar a lei segundo as “consequências” que ela pode causar. A
lei, pelo ponto de vista predominante no STF atual, não é mais o que
está escrito — é a consequência, boa ou má, melhor ou pior, que a sua
aplicação vai trazer. A consequência é ruim? Então não se aplica a lei —
ou, em português claro, os fins justificam os meios. Como os ministros
deram a si próprios o direito de decidir quais são as consequências
desejáveis e quais as que não são, e ninguém fala nada, a lei passou a
ser o que eles querem.
No caso de Bolsonaro, o STF parece ter decidido
que respeitar a lei terá as piores consequências possíveis; dane-se a
lei, portanto.
Não é isso o que se entende por Estado de direito, e
nem por equilíbrio na vida política. Em ambas as situações, a solução
para remover um governo ruim é fazer eleição e colocar outro no seu
lugar. Ou não é? Talvez não seja. Eleições, argumenta-se há muito tempo,
não são um sistema eficaz para escolher presidentes. É claro: na
eleição ganha quem teve mais voto, e não quem é o melhor. Ou, de outra
forma: é a população que decide quem é o melhor, e a população pode
errar; talvez erre na maioria das vezes. No Brasil, por exemplo, o
eleitorado é notoriamente ruim para escolher presidente. Nas seis
eleições realizadas nos últimos 60 anos, foi capaz de eleger Jânio
Quadros, Fernando Collor, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro — para não
falar em Lula. Alguém acha que um sistema que produz esses resultados
está funcionando direito?
Alguém acha que um eleitorado em que dois
terços dos eleitores não têm capacidade para entender direito um texto
em português ou executar as quatro operações matemáticas elementares
está qualificado para eleger o presidente da República?
Tudo bem,
mas eleições em que todos votam, inclusive os analfabetos e menores de
idade, são o que a Constituição manda fazer. Não há outro jeito.
Bolsonaro é ruim, segundo o Brasil da elite, da esquerda e dos
jornalistas? Então é preciso arrumar um candidato capaz de ter mais
votos que ele nas eleições do ano que vem. Ou, então, reunir dois terços
dos votos dos deputados federais (342 em 513) e dos senadores (54 em
81) para aprovar o impeachment. Não há outra saída, dentro da
democracia — não importa a quantidade de gente que foi para a rua no 7
de Setembro e que pode voltar nas próximas manifestações, e nem o
governo paralelo do ministro Moraes e seus companheiros.
Leia também “Manual prático do golpe”
J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário