Hoje não é diferente.
Recentemente, surgiu toda uma imensa e inesgotável bibliografia que tem se dedicado ao tema.
De todo modo, o conteúdo teórico dessas obras é muito bom. Utilizando a teoria exposta por esses autores é possível realizar nossa própria análise dos fatos e examinar uma ameaça específica à democracia: a captura das Cortes de Justiça.
Com efeito, a democracia é, basicamente, um procedimento pacífico, regrado, institucionalizado e razoavelmente competitivo para formação de governo.O que a literatura tem percebido com cada vez mais vigor e clareza é que há medidas que, embora não representem uma quebra súbita da ordem democrática, levam a uma perda de vitalidade e qualidade da democracia. A esse processo se costuma dar o nome de erosão democrática.
Esse processo, basicamente, atinge mecanismos de accountibility. Um termo em inglês que fundamentalmente indica um conjunto de práticas de governança, visando à prestação de contas, ao controle e à responsabilização dos atores institucionais. Com isso, o processo leva a uma consolidação do poder em um grupo e consequente perda do caráter competitivo dos processos eleitorais e de formação governamental.
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Um dos instrumentos que podem ser utilizados para promover esse processo de erosão e redução da accountibility é exatamente a captura política das Cortes Superiores. E esse é um risco que me parece que deve ser examinado com maior atenção no Brasil.
Em artigo que trata de espécies de falhas de processo político, o prof. da Universidade da Califórnia Stephen Garbaum aponta que um deles ocorre exatamente quando grupos políticos “miram e capturam instituições projetadas para serem independentes do controle político (…), como tribunais, promotores e comissões”. Esse foi um procedimento fartamente utilizado por governos chavistas na América Latina.
Continuando na exposição das lições do autor mencionado, essa espécie de captura tende a reduzir o nível de accountibility do grupo que obtém sucesso na cooptação e como isso tende a consolidar poder em suas mãos, o que “mina a estrutura constitucional da democracia representativa”. Segundo ele, “o novo e corrompido processo político resultante é qualitativamente diferente e muito menos ‘confiável’ do que um baseado em uma maior dispersão de poder e instituições mais robustas de prestação de contas.” Ele faz uma interessante comparação com o mercado: se a democracia é um mercado de vários players buscando ampliar sua autoridade política por meio da obtenção de apoio (uma espécie de conquista de mercado pela adesão de clientes), a captura de instituições independentes funciona como a implementação de um monopólio de poder pela manipulação das ações do órgão antitruste.
Os mecanismos de accountibility pode ser organizados em três grupos:
- accountibility horizontal: exercida pelo Parlamento, bem como pelos demais poderes e órgãos independentes como o Ministério Público;
- accountibility diagonal: efetuada pela media e sociedade civil organizada;
- accountibility vertical: realizada pela competição eleitoral e partidária.
Quanto às duas primeiras formas de accountibility (horizontal e diagonal), é viável a leitura de que várias medidas adotadas pelo STF tem o potencial de enfraquecê-las.
Primeiramente, quanto à accountibility horizontal, percebe-se que por meio do ativismo judicial, o STF constantemente esvazia ou invade atribuições do Legislativo e do Executivo, muitas vezes manipulando a jurisdição constitucional para impor pautas e agendas de grupos políticos vistos como alinhados com parcela majoritária dos ministros.
Isso, por óbvio, concentra poderes nas forças ideológicas que dominam a cúpula do Judiciário, impedindo a dinâmica desembaraçada da democracia, na qual há alternância e experimentalismo. Tais medidas ainda reduzem a capacidade dos demais poderes de realizar suas funções constitucionais de opor freios e contrapesos ao ramo judicial do Estado.
Também temos presenciado a interferência constante na Polícia Federal, com a distribuição de inquéritos sem a observância dos critérios objetivos e pré-definidos, além dos recentes atos de assédio contra o Ministério Público, buscando minar-lhe a autonomia quando o órgão por razões jurídicas não concorda com as medidas de perseguição ao presidente da República ou a grupos de seus apoiadores. Ao mesmo tempo, a Corte tem politizado perseguições criminais, impondo medidas cautelares gravíssimas a partir de pleitos de parlamentares de oposição e valendo-se exclusivamente de notícias de jornalistas igualmente opositores, os quais além da parcialidade inerente à sua condição falecem de legitimidade processual, segundo a lei processual penal.
Tudo isso se revela bastante preocupante, em especial em vista do contexto da América Latina. Saliente-se que não é necessário que haja a intenção de juízes destinada deliberadamente a deteriorar a democracia. A simples ocorrência factual de fenômenos dessa espécie e mesmo a mera percepção de setores da sociedade nesse sentido é o suficiente para desgastar os níveis de confiança nas instituições e na capacidade do Poder Judiciário de atuar de modo imparcial e independente. Várias pesquisas mostram que isso já vem ocorrendo no Brasil.
André Uliano - Procurador da República. Mestre em Direito e em Economia.- Coluna Gazeta do Povo - VOZES
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