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quinta-feira, 22 de junho de 2023
Estado Excepcionalíssimo de Direito - Flávio Gordon
Gazeta do Povo - VOZES
Censura
A ministra Cármen Lúcia, do STF - Foto: STF
“Não
há nada mais permanente que um programa temporário de governo”,
costumava dizer o economista liberal Milton Friedman.
A frase serve não
apenas para programas governamentais, mas para decisões do Estado em
geral, sobretudo quando esse Estado envereda pelo totalitarismo, como é o
caso presente do Estado brasileiro.
Por aqui, não há nada mais
permanente, por exemplo, do que a censuratemporária.
Com efeito, desde ao menos o dia 20 de outubro de 2022, quando a ministra Cármen Lúcia acompanhou a maioria de seus colegas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e censurou o documentário do Brasil Paralelo sobre a facada em Jair Bolsonaro, o país trocou oficialmente o assim chamadoEstado Democrático de Direito pelo Estado Excepcionalíssimo
de Direito.
Na ocasião, com semblante grave, Cármen Lúcia afirmou que
“não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no
Brasil”.
Ato contínuo, foi lá e fez justamente o que dissera não se
poder fazer: permitiu a volta da censura no Brasil – segundo ela, apenas
naquela situação “excepcionalíssima”, pré-eleitoral, de modo a impedir
“o comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo
eleitoral e dos direitos do eleitor”.
Ou, traduzindo: para impedir que o
material pudesse prejudicar o sucesso do candidato Luiz Inácio Lula da Silva,
o preferido das autoridades eleitorais. Diante dessa missão
excepcional, que mal haveria em mandar às favas o §2.º do artigo 220 da
Constituição Federal, não é mesmo?
Missão dada,
missão cumprida. Mas, obviamente, a cada momento surgem novos desafios
excepcionais, que exigem flexibilidade hermenêutica dos intérpretes da
Constituição e próceres do Estado Excepcionalíssimo de Direito.
Foi
seguindo essa mesma linha, então, que Alexandre de Moraesdeterminou a censura de todas as redes sociais de Monark, apelido do
influenciador digital Bruno Monteiro Aiub, acusado de “subversão da
ordem”. Sim, Moraes usou essa expressão típica da ditadura militar.
Escreveu o censor em sua decisão inconstitucional: “Em face das
circunstâncias apontadas, imprescindível a realização de diligências,
inclusive com o afastamento excepcional de garantias
individuais que não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo
protetivo para a prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento
para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por
atos criminosos, sob pena de desrespeito a um verdadeiro Estado de
Direito”.
Desde ao menos o
dia 20 de outubro de 2022, o país trocou oficialmente o assim chamado
Estado Democrático de Direito pelo Estado Excepcionalíssimo de Direito
Uma dessas críticas partiu de Lygia Maria, colunista da Folha de S.Paulo. No artigo “Quando a exceção vira norma”, a autora denuncia o perigo de se usar o medo coletivo (de futuros “ataques à democracia”,
por exemplo)para justificar medidas excepcionais, à margem da
Constituição, como têm procedido ministros do STF e do TSE desde, ao
menos, o período eleitoral, e notadamente no caso da censura a Monark
por conta de suas opiniões. “Não estamos numa ditadura, por óbvio, mas
infringir a liberdade de expressão
a partir do medo de uma abstração não é uma ferramenta democrática”,
diz Maria. E conclui: “O medo gera a excepcionalidade, e sempre há o
risco de o excepcional virar a norma”.
Confesso não
ter entendido o porquê de a colunista enxergar como tão óbvia a
afirmação de que não estamos numa ditadura, tendo em vista que a
infração da liberdade de expressão a partir do medo é uma das
características essenciais de toda ditadura, caracterizada justamente
como um estado de exceção.
Ora, se a autora admite que, sob o
pretexto de salvaguardar a democracia,magistrados das nossas altas
cortes têm posto entre parênteses uma cláusula pétrea da nossa
Constituição– tanto mais em época de eleição, quando a liberdade de
expressão é ainda mais vital –,por que ainda falar em “risco”?
Parece
óbvio que, no Brasil contemporâneo, o excepcional já virou a norma, e só
o comprova a frequência com que essa palavrinha tem aparecido em
decisões que violam reiteradamente direitos individuais fundamentais.
Crítica semelhante apareceu recentemente noEstadão, agora sob forma de editorial. Intitulado “Não se defende a democracia com censura”,
o texto afirma: “Tem sido frequente – e não apenas da parte do sr.
Alexandre de Moraes – ignorar essas exigências constitucionais sob o
pretexto de proteção do bem maior, condição de todos os outros, que é a
democracia (...) O argumento segundo o qual, na proteção de um bem muito
importante, não deveria haver limitações para a atuação estatal foi o
que o regime militar sempre utilizou em suas violações dos direitos
humanos e das garantias fundamentais. A Constituição instaurou uma
lógica muito diferente, que é a do Estado Democrático de Direito (...)
Quando a Constituição proíbe a censura, não é mera sugestão, a depender
das circunstâncias. É norma que obriga a todos, sempre”.
À
primeira vista, como já sugeri, tem-se a impressão de que a censura ao
Monark despertou a consciência desses veículos sobre a importância da
defesa desse pilar da democracia que é a liberdade de expressão.
Mas
confesso não estar convencido. E saiu no próprioEstadãoum texto que atiçou a minha desconfiança. Trata-se da coluna de Pedro Doria,
na qual, como que encarnando o verdadeiro espírito desses jornais, o
articulista parece trair sua ambiguidade em face do tema. Vejamos.
Numa
camada mais superficial do texto referido, Doria defende a liberdade de
Monark para “falar bobagens”.
Segue nisso o teor do editorial, para o
qual o influenciador digital também diz bobagens,como quando afirma que
o TSE tentou manipular as eleições por meio da censura ou que Moraes
prendeu pessoas sem base legal.
Curiosamente, assim como o ministro do
STF se abstém da necessidade de demonstrar o crime de Monark, o
colunista e o editorialista do Estadãose furtam a justificar
seu juízo sobre o teor das opiniões do fundador do Flow Podcast. Cheios
de condescendência, limitam-se a dizer que, apesar de serem “bobagens”
(tidas por autoevidentes), Monark tem o direito de as manifestar.
Depois
de muitos outros arbítrios cometidos por agentes do Estado, reivindico o
direito de suspeitar desse súbito escândalo diante do Estado
Excepcionalíssimo de Direito que jornais e jornalistas ajudaram a
legitimar
Mas
uma segunda camada do artigo de Pedro Doria revela mais sobre o que a
grande imprensa em geral tem pensado acerca da liberdade de expressão e
de outros direitos fundamentais.
Doria afirma não haver mais sentido em calar Monark, porque, afinal, as eleições já passaram.
Em outras palavras:embora termine o artigo sublinhando a vedação à
censura no texto constitucional, o articulista concorda indubitavelmente
com a suspensão excepcional da liberdade de expressão, nisso
concordando com o argumento dos magistrados censores.
Para Doria, não
foi certo calar Monark agora, mas foi certo calar um monte de gente –
sobretudo aqueles estigmatizados como“bolsonaristas” – durante o
período eleitoral. Sua defesa da liberdade de expressão é puramente
casuística.
Aliás, sua opinião não surpreende,pois o articulista é reincidente na defesa da censura excepcional àqueles que enxerga como adversários políticos.
É preciso nunca esquecer que quando, em 2020, o Twitter e o Facebook decidiram censurar a matéria verdadeira do New York Post sobre o laptop de Hunter Biden, contendo revelações que poderiam prejudicar a corrida eleitoral de Joe Biden contra Donald Trump, Pedro Doria aplaudiu a decisão, qualificando-a como “corajosa”. Em artigo publicado no jornal O Globo em 15 de outubro de 2020,
escreveu ele: “O que Facebook e Twitter fizeram quarta-feira, nos
Estados Unidos, é histórico. Cercadas por críticas justas relacionadas a
suas condutas em inúmeras eleições – incluindo as que levaram à
presidência Donald Trump, em 2016 –, as duas plataformas agiram com
incrível coragem numa decisão particularmente difícil (...) Do ponto de
vista jornalístico, porém, uma decisão indubitavelmente correta. Uma
decisão que também levanta o debate a respeito da fronteira entre
imprensa e redes sociais”.
Fica claro
que, para Pedro Doria e a maioria de seus colegas de “consórcio”, o excepcional
já é a norma.
O que, aliás, é perfeitamente justificável, quando se trata de
impedir os terríveis efeitos colaterais da democracia, a exemplo da eleição de
Trump ou de Bolsonaro.
Eis por que os veículos que hoje afirmam ser preciso
tolerar as “bobagens” de Monark,tenham calado ou aplaudido as medidas
excepcionais que têm sido adotadas no país desde, ao menos, 2019, com a
abertura do primeiro dos inquéritos“do fim do mundo”.
Quando se trata de
atingir os alvos certos, e na ocasião adequada, que mal há nisso?
Quando, por exemplo, a Polícia Federal
entrou na casa do jornalista Allan dos Santos e apontou uma arma para
sua mulher grávida, esses jornais calaram ou aplaudiram.
Fizeram o mesmo
quando da busca e apreensão na casa de empresários por conta de
mensagens privadas em grupo de WhatsApp.
Quando prenderam Daniel Silveira,
Roberto Jefferson, o cacique Serere, o humorista Bismarck, do canal
Hipócritas, e tantos outros.
Quando censuraram centenas de pessoas de
direita, incluindo muitos jornalistas.
Quando censuraram a Jovem Pan.
Quando bloquearam as contas bancárias e cassaram o passaporte de Rodrigo
Constantino e Paulo Figueiredo.
Quando aposentaram compulsoriamente a
juíza Ludmilla Lins Grillo etc.
Enfim, depois de tudo isso, e de muitos
outros arbítrios cometidos por agentes do Estado, reivindico o direito
de suspeitar desse súbito escândalo diante do Estado Excepcionalíssimo
de Direito que esses jornais e jornalistas ajudaram a legitimar.
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