No Direito e nas democracias que merecem o nome, sempre se convencionou que o cidadão precisa ser protegido da mão pesada do Estado. Por isso, criticar órgãos públicos e a maneira como são administrados sempre foi algo comum e salutar em países livres. A liberdade de crítica faz parte da essência da democracia.
Hugo Freitas Reis, mestre em direito, faz uma análise precisa do que está acontecendo no Brasil, onde agora existe até um “Ministério da Verdade” destinado a enquadrar os cidadãos que ousam tecer críticas ao todo-poderoso Estado.
O advogado-geral da União, Jorge Messias, declarou: “Tem causado preocupação a grande quantidade de fake news sobre o Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Determinei à Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD) que avalie a situação e atue de imediato na proteção dessa importante política pública para o país.”
Por “atuar”, Messias presumivelmente quer dizer processar pessoas — no cível ou, como assistente da acusação, no criminal 1 por duvidarem, falarem mal ou compartilharem inverdades sobre o SUS. Afinal, se o intuito fosse esclarecer a verdade, seria o caso de fazer determinação ao setor de comunicação — não à procuradoria.
Desde então, o órgão também já foi acionado contra o jornalista Alexandre Garcia por fala sobre enchentes no Rio Grande do Sul. O ex-deputado federal Jean Wyllys (PT) afirmou que seria imputada ao jornalista a prática de crime contra a honra (difamação), opinando que “o governo Lula tem o direito de se defender”.
O que é a Procuradoria de Defesa da Democracia?
A procuradoria mencionada por Messias (e rapidamente apelidada pela oposição de “Ministério da Verdade”) é, antes de tudo, um órgão dentro da Advocacia-Geral da União (AGU), cujo nome é autoexplicativo: da mesma forma que grande parte das empresas privadas têm o seu departamento jurídico, também a União (esfera federal do poder) mantém advogados seus empregados internamente, inclusive para processar indivíduos, quando houver interesse da União envolvido.
A questão toda diz respeito a quais interesses seriam esses. Um cidadão comum, por exemplo, tem o direito a não ter a imagem atacada injustamente, porque é um dos bens mais preciosos do ser humano. Mas o SUS não é humano. Nem “o governo Lula”, citado por Jean Wyllys.
No caso de empresas ou outras entidades privadas, até se admite essa possibilidade, apenas porque, como suas finanças dependem de transações voluntárias, um abalo à sua imagem (promovido de má-fé por um concorrente, por exemplo) pode trazer grandes perdas financeiras, que podem ser tratadas, então, como um dano moral ficto.
Mas, como já foi inclusive reconhecido pelo STJ, esta justificativa não existe no caso de um ente público. Isto porque o Estado não se sustenta por transações voluntárias, mas sim por pagamentos forçados — que independem do grau de estima que o pagador tenha pelo recipiente.
A antiga liberdade de falar mal do EstadoAo mesmo tempo, no caso do Estado, existem razões poderosas de filosofia política para proteger a liberdade de crítica: atacar a reputação dos órgãos de Estado ou da forma como são geridos é da essência da democracia.
Em 2013, por exemplo, no Recurso Especial n.º 1.258.389, o STJ disse não ao Município de João Pessoa quando ele pediu danos morais contra uma rádio local por ataques contra o governo municipal, que incluíram acusação de ilícitos. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, declarou que o STF nunca na história tinha admitido a possibilidade de o Estado deter direito de imagem ou honra, a ser respeitado pelos cidadãos. Declarou, ademais, que os direitos fundamentais existem para proteger os cidadãos contra o Estado, e que seria uma “completa subversão” da sua essência invocá-los para proteger o Estado contra os cidadãos.
E assim é.
A nova proibição
Mas tendências em contrário têm ganhado força nos últimos tempos. A prova mais eloquente desta transformação é que o mesmo ministro Luis Felipe Salomão, que defendera a antiga ideia de forma tão eloquente, mudou seu entendimento e, já em 2021, no TSE, ao ordenar a desmonetização de diversos canais de YouTube, justificou a medida atribuindo a eles a conduta de “atacar a imagem da Justiça Eleitoral“.
A tendência só se fez expandir. Ainda em 2019, o TSE editou nova resolução (a de n.º 23.610) reproduzindo o verbo usado na fundamentação do inquérito original do STF, passando a proibir qualquer candidato, em propaganda eleitoral, de “atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública” — regra que, em 2022, levou à punição de Deltan Dallagnol por criticar o STF e que, por sua temerária redação, poderia ser usada, em tese, para vedar críticas a qualquer outro órgão de Estado.
Intensificação no governo LulaAté 2023, a criminalização de se atingir a honra de órgãos públicos parecia estar tendo efeitos restritos à cúpula do Judiciário, que foi justamente onde nasceu este novo entendimento.
Mas, em 2023, assumiu o novo governo. Logo no primeiro dia de mandato, o presidente Lula assinou o Decreto n.º 11.328, e eis que lá esteve previsto um novo órgão dentro da AGU, com atribuição para atuar na Justiça “para defesa da integridade da ação pública e da preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais”; também “para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.
Por trás do opaco palavreado, a função prevista para o novo órgão, portanto, é processar pessoas que atinjam a honra ou imagem do governo, dos membros do governo, ou dos órgãos de Estado em geral. O governo Lula, assim, tenta institucionalizar definitivamente o novo regime jurídico onde, na feliz formulação do ministro Salomão, o direito não mais existe para proteger os cidadãos do Estado, mas sim para proteger o Estado dos cidadãos.
Orwellianamente, isto foi feito mediante a criação de um órgão batizado de Procuradoria de Defesa da Democracia. A palavra significa, etimologicamente, “poder do povo”, mas, qualquer que tenha sido o objetivo ao se criar o órgão, empoderar o povo é que não foi.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - IDEIAS
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