A Corte Internacional de Justiça (CIJ) declarou nesta sexta-feira que a operação militar de Israel
contra Gaza representa um risco plausível de danos irreversíveis e
imediatos à população palestina em Gaza, determinando que o Estado judeu
tome todas as medidas em seu poder para evitar violações da Convenção
das Nações Unidas sobre Genocídio, de 1948, e permita a entrada de ajuda
humanitária no enclave palestino.
A determinação não é um reconhecimento da prática de crime de genocídio
por Israel — o que poderá ou não ser determinado apenas ao fim do
julgamento do mérito do processo, que pode levar anos — e não atende à
principal medida cautelar solicitada pela África do Sul,
que pedia o fim da operação militar contra Gaza.
Apesar disso, as
medidas provisórias, que incluem o pedido para que Israel informe a
Corte em 30 dias sobre seus esforços para cumprir suas determinações,
pareceram uma repreensão para os israelenses e uma vitória moral para os
palestinos.
— O Estado de Israel deve, em acordo com suas obrigações sob a
Convenção Sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em relação
aos palestinos em Gaza, tomar todas as medidas em seu poder para
prevenir o cometimento de todos os atos descritos no Artigo 2º da
convenção — declarou a presidente da corte, a americana Joan Donoghue.
O artigo mencionado pela jurista na decisão define genocídio como os
seguintes atos, desde que cometidos com a intenção de destruir "no todo
ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso": a) matar
membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condição de
existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou
parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio
de grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para
outro grupo.
A corte também disse que estar "gravemente preocupada" com o bem-estar de mais de 200 pessoas feitas reféns pelo Hamas
durante os ataques de 7 de outubro de 2023, que deixaram 1,2 mil
mortos, e pediu sua imediata libertação. A resposta de retaliação de
Israel em Gaza já deixou mais de 26 mil mortos, segundo o Ministério de
Saúde de Gaza, território que é controlado pelo Hamas desde 2007.
Veja as medidas cautelares determinadas pelo CIJ a Israel:
- Tomar todas as medidas em seu poder para prevenir o cometimento de todos os atos descritos no Artigo 2º da convenção;
- garantir, imediatamente, que seus militares não cometam nenhum ato descrito como genocídio pela convenção;
- tomar
todas as medidas para prevenir e punir incitações diretas e públicas
sobre cometimento de genocídio em relação aos palestinos em Gaza;
-
tomar medidas efetivas para prevenir a destruição e garantir a
preservação de evidências relacionadas a atos de genocídio contra
palestinos em Gaza.;
- submeter um relatório à Corte, dentro de um
mês, mostrando o que fez para garantir que as medidas cautelares estão
sendo colocadas em prática.
Todas as medidas cautelares determinadas pela Corte foram alcançadas
por ampla maioria entre os juízes (por 16 votos a favor e 1 contra ou 15
a favor e 2 contra).
Para muitos israelenses, o fato de um Estado fundado após um genocídio
ser acusado de outro é um "baita símbolo", disse ao New York Times Alon
Pinkas, um comentarista político israelense e ex-embaixador.— Só o fato de sermos mencionados na mesma frase em que o conceito de
genocídio é citado, não mesmo atrocidade, força desproporcional, crime
de guerra, mas genocídio, é extremamente desconfortável — disse Pinkas.
Para muitos palestinos, apesar de a intervenção da CIJ trazer pouco
alívio prático, há um breve sentimento de validação à sua causa,
especialmente considerando-se que, sob sua perspectiva, Israel raramente
é obrigado a prestar contas de suas ações. — A matança e a destruição continuam — disse Hanan Ashrawi, uma
ex-autoridade palestina. — [Mas a decisão reflete] uma séria
transformação na forma de percepção e tratamento de Israel globalmente:
está prestando contas pela primeira vez, e perante a mais alta corte e
por uma decisão quase unânime.
Contudo, para muitos israelenses, o mundo impõe a Israel um padrão mais
alto do que à maioria dos outros países, com as determinações da CIJ
parecendo o exemplo mais recente de preconceito contra o país em um
fórum internacional. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, reagiu à decisão
classificando como "escandaloso" o caso de genocídio movido pela África
do Sul. "A acusação de genocídio levantada contra Israel não é apenas
falsa, é escandalosa, e pessoas decentes em todo o mundo deveriam
rejeitá-la", disse em um vídeo.
A liderança do Hamas classificou a decisão como "importante" e disse
contribuir para "isolar Israel e expor seus crimes em Gaza". A
Autoridade Nacional Palestina afirmou que a decisão da CIJ mostra que
"nenhum Estado está acima da lei". Os Estados Unidos, por sua vez,
reiteraram sua posição de que as alegações de genocídio são
"infundadas".
A África do Sul saudou as medidas provisórias ordenadas pela CIJ
chamando-as de "uma vitória decisiva para o Estado de Direito
internacional e um marco significativo na busca de justiça para o povo
palestino".
“Em uma decisão histórica, a Corte Internacional de Justiça determinou
que as ações de Israel em Gaza são plausivelmente genocidas e indicou
medidas provisórias com base nisso”, diz o comunicado. "A África do Sul
continuará a agir no âmbito das instituições de governança global para
proteger os direitos, incluindo o direito fundamental à vida, dos
palestinos em Gaza — que continuam em risco urgente, incluindo devido ao
ataque militar israelense, à fome e às doenças — e para obter a aplicação justa e igualitária do direito internacional a todos."
A acusação de genocídio contra Israel foi apresentada pela África do
Sul no ano passado e começou a ser avaliada pelo tribunal internacional
há duas semanas.
Pretória acusa o Estado judeu de violações à Convenção
sobre Genocídio durante a operação militar em Gaza.
Israel já
classificou o caso publicamente como difamação, e líderes políticos,
como Netanyahu, puseram em dúvida o cumprimento de uma eventual decisão
desfavorável. — Ninguém vai nos parar, nem Haia [sede da CIJ], nem o Eixo do Mal [Irã
e grupos e países aliados no Oriente Médio] nem ninguém — afirmou o
primeiro-ministro israelense em 14 de janeiro, dois dias depois de a
defesa do país apresentar seus argumentos na CIJ.
A equipe jurídica sul-africana apresentou a denúncia na sede do tribunal, em Haia, em 11 de janeiro.
O cerne da acusação foi demonstrar que o governo israelense teria
demonstrado "intenção genocida" ao lançar sua operação contra Gaza. Para
isso, os juristas apresentaram imagens da destruição e do impacto civil
provocado pelas forças de Israel em Gaza, além de declarações públicas
de autoridades do país que, sob a tese sul-africana, comprovam que houve
uma tentativa de desumanizar o povo palestino e de sinalizar sua
eliminação.
A África do Sul solicitou que a corte declarasse a suspensão das
operações militares israelenses "em" e "contra" Gaza; a garantia de que
os militares israelenses (ou quaisquer forças relacionadas) parassem as
operações ofensivas; o fim do assassinato e deslocamento do povo
palestino; a normalização do acesso a alimentos, água, infraestrutura e
saúde; e que Israel tomasse "todas as medidas razoáveis ao seu alcance"
para prevenir um genocídio.
Israel rebateu as acusações um dia depois
da apresentação do caso pela África do Sul. A defesa tentou
descaracterizar o argumento da acusação de que houve tentativa
deliberada de destruição do povo palestino, apresentando a tese jurídica
de que os impactos provocados por uma ação militar a civis não é o
mesmo que o crime de genocídio.
Na quinta-feira, o New York Times revelou que Israel, como parte de sua defesa, apresentou à CIJ mais de 30 ordens antes secretas dadas
por líderes governamentais e militares que, diz, mostrariam os esforços
do país para diminuir as mortes entre os civis no enclave palestino.
Além disso, a equipe israelense também exibiu imagens da violência
cometida pelo Hamas durante os ataques de 7 de outubro a Israel e acusou
a equipe sul-africana de apresentar uma visão "totalmente distorcida" e
manipuladora sobre os fatos ocorridos na região.
A decisão desta sexta-feira é apenas a primeira dentro de um processo
que deve se arrastar por anos. A CIJ ainda precisa julgar o conteúdo
material da acusação, ou seja, a suposta responsabilidade do Estado de
Israel em crime de genocídio, para além das medidas emergenciais pedidas
pela África do Sul.
De acordo com Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional
(TPI), também em Haia, há diferentes desafios das cortes internacionais
para determinar a responsabilidade em um caso de genocídio, em que a
intenção de dizimar um grupo precisa ser evidente.— Aquilo que no começo do conflito a gente já dizia que se tratava de
crimes de guerra, agora se alega que esses crimes de guerra têm um
objetivo genocida — explicou ao GLOBO Steiner, única brasileira a já ter
integrado o TPI. — Existem desafios de diferente natureza para provar o
genocídio em uma corte internacional. No TPI, o mais difícil é
determinar a responsabilidade penal individual, como o dolo e o nexo de
causalidade entre as ações e o resultado. Por outro lado, determinar a
responsabilidade do Estado, como a África do Sul está fazendo, é mais
fácil pelo número de provas que podem ser coletadas.
Em Mundo - O Globo - MATÉRIA COMPLETA
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