Revista Oeste
Criminosos perdoados em 1979 só anistiam companheiros de seita
Num documentário sobre o episódio que assombrou o país de 4 a 7 de setembro de 1969, Franklin confirma, com a placidez de quem acabou de comungar, que estava pronto para o papel de carrasco. “Sempre entendi que, se não fôssemos atendidos, Elbrick seria executado”, admite sem vestígios de remorso. Como a junta militar que governava provisoriamente o país aceitou embarcar rumo ao México o grupo de 15 extremistas que incluía líderes estudantis presos um ano antes, o carcereiro foi dispensado de matar o refém.
Retomou a vida clandestina até concluir que seria menos perigoso expor em outras paragens seus quase 2 metros de altura. Morou no México, fez uma escala no Chile e estava em Cuba quando a anistia encerrou o banimento imposto a envolvidos em sequestros de embaixadores.
Com pouco mais de 30 anos, Franklin teve tempo para ganhar notoriedade como jornalista da Globo, infiltrar-se no alto comando do PT, tornar-se ministro das Comunicações no segundo governo Lula e fazer o diabo na luta pela adoção do “controle social da mídia”, outro codinome da censura à imprensa. Agora semiaposentado, trocou a discurseira agressiva por lições enunciadas com voz de avô que tudo vê e tudo sabe. Ultimamente, anda ensinando que as depredações ocorridas em Brasília no 8 de janeiro escancararam uma tentativa de golpe de Estado — e que lugar de golpista é na cadeia. Portanto, é preciso apoiar a palavra de ordem deste estranho verão: “SEM ANISTIA”.
Isso é coisa para a turma que recorreu à luta armada para chegar ao paraíso socialista sem perder tempo com escalas na detestável democracia burguesa.
Muito mais grave é a tentativa de golpe abastecida por vendedores de algodão-doce, concorda José Dirceu, uma das 15 moedas de troca incluídas na barganha que livrou da morte o embaixador Elbrick.
Presidente da União Estadual dos Estudantes, pai da ideia de realizar em Ibiúna o Congresso da UNE que destruiu a entidade, Dirceu voltou secretamente do exílio em 1973, com o nariz redesenhado por um bisturi, o codinome Daniel, um fuzil numa das mãos e, na outra, o diploma de guerrilheiro formado em Cuba.
Viu que a coisa estava feia, deixou para mais tarde a hegemonia proletária, mudou de identidade, apareceu na paranaense Cruzeiro do Oeste fantasiado de pecuarista, casou-se com a dona da mais próspera butique da cidade e não revelou quem era, mesmo depois do nascimento de um filho.
O guerrilheiro que só disparou balas de festim teria envelhecido por lá se a anistia de 1979 não o livrasse do medo, do casamento e da rotina tediosa. Com o nariz restaurado, desembarcou em São Paulo a tempo de participar da fundação do PT, eleger-se deputado, presidir o partido, comandar em 2002 a vitoriosa campanha de Lula, tornar-se o mais poderoso dos ministros e usar a faixa de capitão do time do presidente.
Por pouco tempo: o envolvimento em sucessivos escândalos custou-lhe a perda do gabinete no Planalto, do mandato parlamentar e da pose de comandante em combate.
Aos 77 anos, liberado pelo Supremo Tribunal Federal de mais sessões de fotos de frente e de perfil, desfruta da vida mansa que garantiu ao exercer o ofício de facilitador de negócios suspeitíssimos.
Sobra-lhe tempo para desfraldar, em palavrórios publicados por um site companheiro, a bandeira com a inscrição “SEM ANISTIA”.
“O que a sociedade quer saber”, comunicou Dirceu no artigo de estreia, “é se todos os implicados nesse crime de traição à Constituição e à democracia em nosso país, sejam eles civis ou militares, populares ou empresários, responsáveis pelas redes sociais, políticos ou não, vão ter as penas que merecem. Só teremos as respostas com a conclusão dos inquéritos e processos conduzidos legitimamente pelo ministro Alexandre de Moraes”.
O José Dirceu do século passado não tinha nenhum respeito por adversários.
Num comício em São Paulo, afirmou que o governador Mário Covas e seus partidários mereciam “apanhar nas urnas e nas ruas”.
A versão 2024 é menos belicosa: “O resultado das eleições deve ser respeitado”, anda recitando.
As reações do Partido dos Trabalhadores aos resultados das eleições presidenciais sugerem que a recomendação do guerreiro do povo brasileiro seja endereçada à sigla que abrigou toda a turma que a anistia de 1979 resgatou da cadeia, do exílio ou da clandestinidade. A intolerância rancorosa sempre foi a mais notável marca de nascença da seita que tem em Lula o seu único deus.
Derrotados, os devotos nem esperam a posse do adversário para tentar despejá-lo do cargo.
Em 1989, 1994 e 1998, gritaram Fora, Collor!, Fora, Itamar! e Fora FHC!. Em 2016 e 2018, berraram Fora, Temer! e Fora, Bolsonaro!
É verdade que poucos partidos sabem perder uma eleição com elegância. Mas o histórico das disputas escancara um segundo e ainda mais espantoso defeito de fabricação: além de não saber perder, o PT também não sabe ganhar.
Em vez de comemorar o próprio triunfo, o petista-raiz festeja a derrota do inimigo.
Em vez de celebrar a vitória dos seus candidatos, arma a carranca e sai por aí à caça de vencidos a espezinhar.
Transformado num viveiro de ressentidos sem cura, o ajuntamento esquerdista não consegue ser feliz.
Para gente assim, algum inimigo é o culpado por todos os problemas passados, presentes e futuros. Em 2003, por exemplo, Lula assumiu a Presidência grávido de ressentimento com Fernando Henrique Cardoso, que lhe impusera duas goleadas sucessivas ainda no primeiro turno. Só por isso fingiu não enxergar as transformações modernizadoras embutidas no legado que lhe caíra no colo.
O Plano Real, por exemplo, havia enjaulado a inflação selvagem.
O processo de privatização já exibia sua musculatura modernizadora e fixara-se um limite para a gastança.
Pois foi só FHC descer a rampa do Planalto para que Lula começasse a recitar a lengalenga da “herança maldita”.
A freguesia da “bolsa ditadura”, formada majoritariamente por anistiados de 1979, é engrossada pela ala da “anistia reflexo”, composta de parentes de supostos perseguidos.
E inclui o bloco que conseguiu a Declaração de Anistia, documento que isenta o portador de pagar o Imposto de Renda pelo resto da vida
O culpado da vez é Jair Bolsonaro. Foi ele o responsável no Brasil pelas mortes causadas em outros países por um vírus chinês.
Foi Bolsonaro quem ressuscitou a pobreza extinta por Lula e a miséria erradicada por Dilma.
Foi ele quem mandou matar Marielle Franco (e convém verificar se não estava em Santo André quando Celso Daniel foi assassinado).
Foi ele quem tentou exterminar os ianomâmis.
Evidentemente, foi Bolsonaro quem chefiou a tentativa de golpe de Estado ocorrida em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
Era previsível que o ex-presidiário que prometeu ao menos abrandar o clima de polarização política se engajasse com entusiasmo na campanha contra a decretação de uma anistia que encerraria o drama vivido por mais de mil brasileiros que não votaram no candidato do PT.
Em 1979, o regime militar liquidara a oposição armada, mas o estado de direito era ainda um brilho nos olhos dos democratas. O AI-5 fora revogado no fim do ano anterior, mas os governadores haviam sido indicados pelo governo federal, e só dez anos mais tarde o presidente da República voltaria a ser eleito pelo voto direto.
Ainda assim, a anistia foi um avanço e tanto.
Centenas de exilados foram festivamente recebidos no Aeroporto do Galeão, a libertação dos 53 condenados pela Justiça Militar esvaziou as celas antes atulhadas de sobreviventes da luta armada, as tensões se abrandaram imediatamente.
Só continuaram zangados os militantes que em 1980 se reagrupariam no PT — e zangados continuariam por quatro motivos.
Primeiro: embora nenhum dos grupos extremistas tenha atraído mais de cem militantes, todos se julgavam representantes de todos os brasileiros. Segundo: um soldado do povo não comete crimes, pratica ações revolucionárias; não mata seres humanos, executa inimigos dos explorados; não assalta bancos, expropria ícones do capitalismo selvagem. Terceiro: anistia só deve valer para quem contempla o mundo apenas com o olho esquerdo.
Quarto: faltava a indenização. Os perdoados que não perdoam deram-se por satisfeitos com a criação da Comissão de Anistia, o mais generoso e complicado monstrengo administrativo inventado desde 1500.
Criada em 2002 para consolar com indenizações e mesadas vítimas de perseguições políticas ocorridas entre 1946 e 1988, ninguém sabe direito onde fica a comissão, quem a dirige, quantos são os clientes, qual é o tamanho da gastança e quais são os critérios que regulam as enxurradas de reais.
A freguesia da “bolsa ditadura”, formada majoritariamente por anistiados de 1979, é engrossada pela ala da “anistia reflexo”, composta de parentes de supostos perseguidos.
E inclui o bloco que conseguiu a Declaração de Anistia, documento que isenta o portador de pagar o Imposto de Renda pelo resto da vida.
Os requerimentos (mais de mil por mês) são julgados pelos integrantes do Conselho da Comissão de Anistia, subordinado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O Orçamento de 2024 destinou cerca de R$ 180 milhões à comissão.
Nos últimos 20 anos, saíram por esse ralo quase R$ 7 bilhões.
O ranking dos milionários é liderado pelo jornalista Paulo Cannabrava Filho, que ingressou no clube dos indenizados em 3 de agosto de 2008. Segundo a Gazeta do Povo, até 2019 o campeão havia recebido R$ 4,7 milhões a título de indenização, fora os pagamentos mensais de valor ignorado pelos brasileiros que bancam a farra.
No blog em que segue combatendo os inimigos da democracia e defendendo os amigos dos pobres do Brasil, Cannabrava afirma que os presos do 8 de janeiro não são apenas golpistas.
São também terroristas. Devem, portanto, ser duramente punidos.
Que sobrevivam na cadeia ou atrelados a tornozeleiras.
Com ou sem julgamento. Sem provas de culpa. Sem anistia. E, claro, sem indenizações.
Ao saber que o Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro o incluíra numa lista de candidatos a indenizações, Millôr Fernandes exigiu a retirada do seu nome e desmoralizou a malandragem: “Pensei que era ideologia. Era investimento”. A mobilização dos perdoados incapazes de perdoar cabe em outra lição de Millôr: “Ditadura é quando você manda em mim. Democracia é quando eu mando em você”.
Como ensinou o grande pensador, “democracia é torcer pelo Vasco na torcida do Flamengo”.
Os que berram “sem anistia” sonham com um Brasil de torcida única e um time só. Qual seria?
O apontado pelo consórcio que junta o Supremo Tribunal Federal, o atual governo e a imprensa velha.
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
Com reportagens de Anderson Scardoelli e Cristyan Costa.
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