VEJA teve acesso às quatro mil páginas da apuração em torno de um personagem que guardava segredos valiosos e foi abatido numa ação ainda cercada de dúvidas
MISTÉRIOS - Adriano: detalhes intrigantes, eventos estranhos e perguntas ainda sem resposta sobre o crime (Cristiano Mariz;/Reprodução)
O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega ganhou notoriedade nacional depois que se descobriu que ele chefiava o chamado Escritório do Crime — um grupo de matadores de aluguel que atuava no Rio de Janeiro a serviço de bicheiros e milicianos.
Ficou mais famoso ainda quando se soube que ele também tinha uma estreita ligação com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro. Por anos, a mãe, a mulher e um dos melhores amigos do policial, o também ex-PM Fabrício Queiroz, foram assessores do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em 2019, acusado de homicídio e com a prisão decretada pela Justiça, Adriano fugiu. Um ano depois, foi morto.
Esse é o ponto de partida do capítulo final de uma história que reúne ingredientes de um thriller de ação.
Havia gente importante entre os “clientes” do Escritório do Crime que torcia para que o ex-capitão nunca mais aparecesse.
Havia gente influente ligada às vítimas que queria localizá-lo a qualquer custo.
E havia gente poderosa que temia a revelação de segredos capazes de fulminar biografias e destruir certas carreiras — políticos, inclusive.
O destino de alguém com um perfil tão singular assim era previsível.
Adriano foi localizado no interior da Bahia. A polícia realizou uma gigantesca operação para capturá-lo, usando drones, aeronaves, equipamentos de geolocalização e armamento pesado.
No dia 9 de fevereiro de 2020, o ex-capitão foi cercado no município de Esplanada, a 165 quilômetros de Salvador.
Estava sozinho e, segundo a versão oficial, armado.
Ao perceber a chegada dos policiais, reagiu e foi abatido com dois tiros.
A família afirma que foi uma execução sumária, uma queima de arquivo planejada para evitar que ele comprometesse aquela gente importante, influente e poderosa, incluindo políticos.
A suspeita se sustentava diante de fatos que ocorreram antes, durante e depois do suposto confronto.
Quatro anos depois, o Ministério Público finalmente concluiu a investigação sobre o caso. VEJA teve acesso às mais de 4 000 páginas de documentos, perícias, depoimentos, fotografias e relatos de testemunhas que ajudaram a reconstituir os últimos instantes de vida do ex-capitão.
O trabalho, porém, não foi capaz de elucidar definitivamente o mistério. Ainda há muitos detalhes intrigantes e perguntas que ficaram sem respostas.
A OPERAÇÃO ESPLANADA
Depois de fugir do Rio de Janeiro, Adriano perambulou durante meses por fazendas no interior do Nordeste.
A polícia passou a monitorar os passos dele através de seus familiares e amigos.
Em janeiro de 2020, após receber uma visita da esposa, o ex-capitão foi cercado pela primeira vez na Costa do Sauípe (BA), mas conseguiu escapar. A sorte o abandonaria poucos dias depois. Escondido na chácara de um amigo na área rural de Esplanada, o miliciano sabia que os policiais estavam em seu encalço e tinha tudo pronto para deixar o país.
O plano de fuga elaborado contava com um resgate de helicóptero patrocinado por um grupo ligado à contravenção do Rio.
Não deu tempo. A polícia interceptou a viúva em uma blitz, e o motorista dela deu pistas sobre a localização do novo esconderijo. A Secretaria de Segurança da Bahia preparou então uma das maiores ações de captura já realizadas pela polícia baiana. Foram mobilizados setenta homens, além de um drone, um helicóptero, veículos táticos e armamentos pesados.
Para evitar vazamentos, os policiais convocados para a missão só souberam a identidade do alvo às 23 horas da véspera, quando também foram advertidos sobre a destreza do ex-capitão: ele havia sido o primeiro colocado em treinamentos de tiro e sobrevivência na mata, tinha amplo conhecimento operacional e dificilmente se entregaria, disseram os comandantes.
EXECUÇÃO OU CONFRONTO?
(...)A CENA DO CRIME
Um dos procedimentos elementares que qualquer policial aprende na academia é sobre a necessidade de preservar a cena do crime. Os PMs que alvejaram o miliciano admitiram em depoimentos que não houve essa preocupação.
Os projéteis, por exemplo, são provas importantes para determinar se realmente houve troca de tiros, o tipo de armamento envolvido, o trajeto e a distância dos disparos.
Um dos laudos elaborados pela Polícia Federal destaca que foram encontradas apenas três cápsulas da pistola que teria sido usada por Adriano, apesar de ele ter supostamente disparado sete tiros.
Os peritos levantaram a hipótese de uma mesma bala ter ricocheteado, mas, ainda assim, a conta não fechou.
Seria esperado, segundo eles, que fossem encontradas de cinco a sete cápsulas detonadas.
A ausência delas, porém, não prova que o confronto não existiu, já que elas podem simplesmente ter sido subtraídas por alguém que entrou na casa após o crime — e muita gente entrou. Aliás, as cápsulas das balas usadas pelos PM também não foram localizadas.
(...)
Ao longo da investigação, o Ministério Público solicitou sucessivas vezes que a Polícia Federal prestasse apoio técnico para novas perícias. Além da reconstituição e da exumação, os promotores solicitaram uma “missão exploratória” para sanar dúvidas técnicas que os peritos baianos e fluminenses não conseguiram.
Por considerar que a cena do crime já havia sido completamente devassada, a PF nunca atendeu ao pedido.
Em resposta a um dos ofícios, os federais ainda destacam um fato grave que impedia o trabalho: a arma supostamente utilizada por Adriano — uma pistola Glock, calibre 9 mm — havia desaparecido. Soube-se que ela fora recolhida pela PM baiana após o confronto, tendo reaparecido tempos depois em posse da Polícia Civil do estado.
(...)
Em Esplanada, a situação se inverteu. Adriano era o bandido. O tenente e os dois soldados que localizaram o miliciano garantem que o objetivo era prendê-lo, mas ele resistiu e provocou o confronto.
Adriano era um exímio atirador, mas errou todos os tiros, mesmo estando a uma distância de menos de 5 metros dos alvos.
Em poucos segundos, o temido chefe do Escritório do Crime caiu morto.
O registro da pistola que teria sido usada por Adriano, a que sumiu e reapareceu tempos depois, estava parcialmente raspado.
Policiais disseram que o ex-capitão estava de bermuda e calção quando o Bope entrou na casa. Os médicos, por sua vez, relatam que ele chegou seminu ao hospital.
A estranha queimadura no peito, um indício de tortura, também vai continuar sem explicação. Segundo um dos peritos, ela pode ter sido produzida “por um instrumento de bordas circulares, aquecido” — o cano de uma arma, por exemplo. Mas essa é apenas uma hipótese sem nenhuma comprovação. Adriano morreu da mesma maneira que matava. Caso encerrado.
Publicado em VEJA, edição nº 2875 de 12 de janeiro de 2024,
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