Luciano Trigo
A espada simboliza o poder de coerção: é um sinal de força, que indica que a Justiça pode impor à sociedade as suas decisões. Não fosse assim, seria difícil garantir a ordem, pois sempre haverá um lado descontente com o resultado de qualquer julgamento. Se dependesse do consentimento do julgado para fazer valer uma sentença, um juiz jamais conseguiria condenar alguém. Até aqui tudo bem.
A venda, como se sabe, representa a imparcialidade que se espera dos juízes, que não devem fazer distinção entre aqueles que são julgados. É o que afirma, aliás, o Artigo 5º da Constituição: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O mesmo artigo afirma ser livre a manifestação do pensamento e inviolável a liberdade de consciência; diz também que ninguém pode ser privado de direitos por motivo de convicção política.
(Sobre um terceiro símbolo, ausente na escultura, além da venda e da espada, falarei no final do artigo.)
O pluralismo político, por sua vez, aparece como fundamento da República já no primeiro artigo da Constituição, ao lado da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Pois bem, à luz da Carta Magna, uma conclusão necessária do que foi exposto acima é que ministros do Supremo Tribunal Federal – que são, afinal de contas, os supremos juízes da nação – têm o dever de ser cegos a diferenças não apenas de gênero, raça e credo religioso, mas também a diferenças de alinhamento político: ninguém deveria ser tratado de forma diferenciada pela Justiça por apoiar tal ou qual partido ou governo, da mesma forma que ninguém pode ser tratado de forma diferenciada por ser pobre ou rico, homem ou mulher, homossexual ou heterossexual, negro ou branco.
Não aplicar e não estender o dever de isenção e neutralidade à convicção política dos cidadãos é jogar na lata de lixo um dos pilares da República, o pluralismo político citado na Constituição. É trabalhar para a construção de um país politicamente hegemônico, como nas ditaduras: e um país onde só a esquerda (ou só a direita, não importa) é reconhecida pelo poder Judiciário como legítima não é uma democracia.
Citando Rosa Luxemburgo, aliás uma comunista, “a liberdade é sempre a liberdade para quem pensa de modo diferente do nosso”. A frase, escrita em 1918 em um contexto de crítica a Lênin e aos bolcheviques, permanece atualíssima: “A liberdade apenas para os partidários do governo, apenas para os membros de um partido, por muitos que sejam, não é liberdade”, Rosa conclui. Porque respeitar a liberdade de quem pensa como nós é fácil; difícil é conviver com a diferença. Mas, sem diferença, não há democracia.
Um cidadão comum tem o direito de achar inadmissível que Bolsonaro seja presidente. Ele pode até pensar que Bolsonaro deve ser derrubado, ou impedido de ser reeleito, por qualquer meio necessário. Esta é uma opinião, e ter opinião não é crime, ainda que seja uma opinião assustadora ou antidemocrática.
Por óbvio, um ministro do Supremo não pode achar nada disso, e muito menos se comportar como se achasse: a natureza de seu cargo exige neutralidade e imparcialidade. Ele não pode aderir à “resistência” de quem acha que Bolsonaro representa uma ameaça para a sua existência.
Mas, para o cidadão comum, não comprometido com partido ou ideologia, é o que parece estar acontecendo: aos olhos desse cidadão – mesmo que ele não tenha votado em Bolsonaro – já há tempos o STF vem atuando abertamente para atrapalhar, sabotar e criar problemas para o presidente escolhido pela maioria do eleitorado. Não há mais sequer a preocupação de aparentar neutralidade.
O que pensa hoje o cidadão comum diante do noticiário? Que a condenação do deputado Daniel Silveira foi apenas o ápice desse processo; e que, já há muito tempo, o Supremo vem se comportando como se fosse um partido de oposição. Ora, o Supremo não pode se comportar como se oposição fosse, pelo simples fato de ele ter o poder de interferir no processo eleitoral – e um processo eleitoral contaminado se torna ilegítimo e perverte a democracia.
O cidadão comum pensa também que o decreto do presidente concedendo indulto individual ao deputado foi uma resposta justa e necessária à extrapolação recorrente do órgão supremo do Poder Judiciário na sua relação com os outros Poderes. “Se nem um deputado, que tem a prerrogativa da imunidade parlamentar, pode falar o que pensa, imagina um cidadão indefeso”, ele raciocina.
Aliás, é talvez esse cidadão comum, não comprometido de antemão com qualquer partido ou candidato, quem decidirá o resultado da próxima eleição. Ou seja: mesmo como estratégia de partido de oposição, o comportamento do Supremo pode ter o efeito inverso ao esperado.
Porque o cidadão comum há de concordar com as justificativas apresentadas no decreto que indultou o deputado: a liberdade de expressão como pilar essencial da sociedade; a manutenção do mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes; e a comoção legítima de parte da população diante de uma prisão percebida como arbitrária. De certa forma, o STF levantou a bola para Bolsonaro cortar.
Para concluir: é sintomático, revelador e sugestivo que falte à escultura da Justiça em frente ao prédio do STF um terceiro símbolo, além da venda nos olhos e da espada. Um símbolo universalmente presente em todas as representações artísticas da Justiça, desde a Grécia antiga (como demonstram as estátuas da deusa grega Têmis): a balança, simbolizando a ponderação e o equilíbrio na hora de julgar, nivelando por igual o tratamento jurídico concedido a todos.
O que a balança simboliza é o que vem faltando aos ministros do STF, pensa o cidadão comum; porque, se a prisão de Daniel Silveira fosse justa, até por isonomia muita gente teria que ser presa antes dele. O que não falta neste país, inclusive no Congresso e na mídia, são ataques às instituições.
O cidadão comum reflete, coça a cabeça e conclui: o Supremo não deveria ter lado.
Luciano Trigo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES