A adoção de pronomes neutros para agradar a uma minoria empobrece a língua portuguesa e já contamina parte da iniciativa privada
Edição de arte Oeste | Foto: Shutterstock
“Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do maride, e o
desespero daquele lance consternou a todes. (…) Só Capitu, amparando a viúve, parecia
vencer-se a si mesme. Consolava a outre, queria arrancá-le dali. A confusão era geral. No meio delu,
Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não
admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas… (…) Fiquei a ver as delu; Capitu
enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para
a amigue, e quis levá-le; (…) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunte, quais
os da viúve, sem o pranto nem palavras deste, mas grandes e abertos, como a vaga
do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadadore da manhã.“
Sob o argumento de que o idioma é machista e instrumento de perpetuação do poder do “patriarcado”, coletivos que garantem representar determinados públicos, como as feministas ou o antigo GLS — atual LGBTTTQQIAA — exigem, entre outras reivindicações, a transformação radical da fala, a chamada linguagem neutra. O primeiro parágrafo deste texto mostra como ficaria, por exemplo, um trecho do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, escrito com esta “neolinguagem”.
Nessa pseudolinguagem supostamente inclusiva, que alguns defendem que seja adotada como norma-padrão, o uso de pronomes, adjetivos ou substantivos “neutros” seria uma forma de acolher pessoas que não se identificam como masculino ou feminino, chamadas de “não binárias”, no-gender ou “gênero fluido”. Rosa Laura, autointitulada ativista “não bináris”, explica o dialeto. Segundo ela, os pronomes pessoais “ela” e “ele” têm de ser substituídos por “ile”. Já os pronomes demonstrativos “daquela” e “daquele” mudariam para “daquile”. Dir-se-ia, então: “ile é muito bonite”, em vez de “ela é muito bonita”; e “todes gostam de irmén e du amigue delu”, em vez de “todos gostam da irmã e do amigo dele”.
Esse foi um dos argumentos do governo da França, que proibiu a linguagem neutra. “Ao defenderem a reforma imediata e abrangente da grafia, os promotores da escrita inclusiva violam os ritmos do desenvolvimento da linguagem de acordo com uma injunção brutal, arbitrária e descoordenada, que ignora a ecologia do verbo”, informou o Ministério da Educação francês. “Essas armadilhas artificiais são inoportunas e atrapalham os esforços dos alunos com deficiência mental admitidos no âmbito do serviço público.”
EducaçãoApesar de absurda, a “novilíngua” já é realidade em escolas e universidades do Brasil e do mundo. Em setembro de 2020, circularam nas redes sociais imagens de uma aula sobre “pronomes neutros” em uma instituição particular do Recife (PE). Nos slides projetados, é possível observar neologismos como “obrigade”. O episódio foi registrado no Colégio Apoio e ocorreu em uma turma do 8º ano.
Dois meses depois, o Colégio Franco-Brasileiro, instituição particular na zona sul do Rio de Janeiro, resolveu “imitar” a concorrência e divulgou um comunicado aos pais informando que adotara estratégias para absorver a linguagem neutra nos espaços formais e informais de aprendizagem. “Renovando, diariamente, nosso compromisso com a promoção do respeito à diversidade e da valorização das diferenças no ambiente escolar, tornamos público o suporte institucional à adoção de estratégias gramaticais de neutralização de gênero em nossos espaços formais e informais de aprendizagem”, salientou a instituição.
Nem o ensino superior ficou blindado da prática. “Nesta segunda-feira, 3 de maio de 2020, serão iniciadas as atividades acadêmicas dos estudantes veteranes da UEMG Divinópolis. Sejam todes bem-vindes”, informou uma mensagem de boas-vindas publicada nas redes sociais da Universidade do Estado de Minas Gerais. O post ainda trazia uma imagem com os dizeres “Bem-vindes, estudantes veteranes”. Nos comentários, os internautas questionaram a atitude. Joanna Williams, em seu texto publicado nesta edição da Revista Oeste, relatou o caso de uma estudante de direito do Reino Unido que corre o risco de ser expulsa da universidade por ter dito, em um seminário de estudos de gênero, que mulheres têm vagina. “As universidades estão menos preocupadas com o ensino superior e mais com a doutrinação dos alunos na ideologia progressista”, escreveu Williams.
Caio Perozzo, especialista em linguagem e professor de literatura do Instituto Borborema, associação cultural sediada em Campina Grande (PB), acredita que as coisas chegaram a esse ponto devido a uma “crise da inteligência”. De acordo com ele, a linguagem foi submetida à ideologia e ao relativismo, que esvaziaram da fala e da escrita o propósito de descrição da realidade como ela é. “Há pessoas que percebem algo, mas se recusam a utilizar o termo adequado para representar aquilo porque viola um conjunto verbal e ideológico que ela já tem. A ideologia deixa sua inteligência deficiente”, observou o acadêmico.
EmpresasAlém da educação, a linguagem neutra contaminou a iniciativa privada. A rede de fast-food Burger King fez uma postagem no Twitter em alusão ao Dia Internacional da Luta contra a Homofobia e a Transfobia (17 de maio): “Bandeiras de Todes”. No post, a empresa mostrou coroas e imagens que representam diversas orientações sexuais. Depois de receber críticas, a companhia tirou a publicação do ar. Contudo, emitiu uma nota, que dizia: “Acreditamos que todas as pessoas são bem-vindas e fazemos questão de reforçar a necessidade e a importância de assuntos como esse para a sociedade. Consideramos e absorvemos todas as manifestações e agradecemos por elas. Quanto mais conhecemos e discutimos, mais aprendemos e mais informados estamos para lutar contra a LGBTfobia”.
Na mesma linha do Burger King, o aplicativo iFood decidiu “cancelar” nomes considerados preconceituosos. O novo termo de uso da plataforma vetou pratos clássicos de restaurantes, como “batatas ao murro”, considerado violento e machista. O mesmo ocorreu com “punheta de bacalhau”, iguaria tradicional portuguesa, por ser fálica demais. Os chefs reclamaram, sem sucesso. Observa-se com os casos descritos que o objetivo declarado de grupos como o que promove a linguagem neutra é um só: purificar radicalmente o discurso de qualquer palavra que possa ofender a alguém. Quando se abre a possibilidade de qualquer um reinventar o idioma, reescrever obras artísticas e policiar a cultura a pretexto de defender os direitos das minorias, entra-se num terreno perigoso.
No livro 1984, escrito pelo jornalista inglês George Orwell, o protagonista Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade. Contudo, sua função é adulterar registros históricos com a finalidade de moldar o passado à luz dos interesses de um presente tirânico que se impõe com a ajuda da chamada Polícia das Ideias. A entidade decide o que você deve pensar, escrever, falar e até como agir. Orwell descreve o drama dos personagens, que envolve a opressão física e, sobretudo, a mental. No desenrolar da história, é possível identificar uma das estratégias do Estado totalitário representado na obra: a mudança na linguagem mediante a manipulação do significado das palavras. Qualquer semelhança não pode ser interpretada como mera coincidência.
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Revista Oeste - Cristyan Costa