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sábado, 16 de outubro de 2021

Eles não querem que a pandemia acabe - Carta ao Leitor

Paula Leal e Silvio Navarro

Medo, politicagem, interesses econômicos, admissão de equívocos. Por que uma parte da sociedade não quer que a crise acabe?

Nesta semana, o Brasil atingiu a marca de 100 milhões de pessoas com o ciclo de vacinação completo. No Estado de São Paulo, 80% da população já recebeu ao menos uma dose. Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, 70%. Algumas cidades decretaram o fim da exigência do uso de máscaras.

Nas grandes capitais, já há preparativos para as festas de Réveillon e Carnaval. Aos poucos, o torcedor está voltando aos estádios de futebol. Com a taxa de transmissão do coronavírus no menor patamar desde abril de 2020, as tímidas manchetes escondidas na imprensa tradicional mostram que a pandemia pode estar perto do fim. Mas não para todos.

Provavelmente, o leitor deve ter deparado recentemente com dezenas de situações bizarras. 
O praticante de atividade física mascarado ao ar livre, em alguns casos até dentro de piscinas. 
Pais obrigando crianças a usar as proteções faciais na marra. 
O motorista solitário paramentado dentro do carro. 
O vizinho que se recusa a usar o elevador em companhia. 
E, claro, a clássica foto que inunda as redes sociais há dois anos: máscara no rosto (às vezes duas) e a camiseta com os dizeres “Vacina sim, ele não”, acompanhada de uma legenda sobre a importância de aceitar o “novo normal”, doa a quem doer. 
Mas o leitor normal pode se perguntar: quem definiu esse consenso?

De todos os itens da cartilha de bom comportamento dos pandelovers, o mais controverso atualmente é o uso infinito de máscaras. O governador João Doria (PSDB), amparado por seu ex-centro de contingência, rebatizado de “comitê científico”, disse algumas vezes que pretende manter o uso de máscaras obrigatório até 31 de dezembro. Mas já foi demonstrado diversas vezes durante a pandemia que a “ciência” que orienta as políticas de gabinete pode mudar de acordo com os interesses dos governantes.

A máscara como gesto político
Passados dois anos, a medida nem sequer é uma unanimidade entre médicos. “Em lugar fechado, transporte público, elevador eu ainda seguraria”, diz o clínico-geral e doutor em imunologia Roberto Zeballos. “Em locais abertos, não vejo a menor necessidade de máscara.” Para ele, o Brasil caminha para alcançar a imunidade coletiva ou de rebanho, porque o “país já enfrentou dois grandes surtos e todos que passaram por essa epidemia e a venceram já estão imunes.”

As máscaras devem se limitar a ambientes de alto risco de contágio”, afirma o neurocirurgião Paulo Porto de Melo. “Não tem cabimento manter o uso da forma como está, e, aliás, não foi o prometido. O anunciado era que, quando todos estivessem vacinados, seriam eliminadas as máscaras. Ou seja, foi estelionato.”

Cobrir o rosto tornou-se um gesto político em meio à crise sanitária. No Brasil, uma resposta possível é que, ao ostentá-la publicamente, se trata de uma resposta à conduta do presidente Jair Bolsonaro. Não à toa, ele é recordista em multas aplicadas por prefeitos e governadores de oposição nos passeios de moto. A última delas ocorreu em Peruíbe, no litoral paulista, onde foi cercado por apoiadores enquanto comia pastel.

Bolsonaro se recusa a usar máscara há dois anos. Mas, ainda que a figura do presidente seja deixada de lado por um instante, a inquietação não para por aí. O Brasil tem hoje seus patrulheiros anônimos da covid. São dezenas de caras de reprovação e nojo. Um verdadeiro tribunal do “cancelamento”.  É como se o mundo tivesse se dividido em dois tipos de cidadãos: de um lado, os nobres, que se preocupam com a saúde pública e querem salvar a humanidade. Do outro, os “negacionistas” irremediáveis. O mesmo se aplica ao questionamento sobre a potência das vacinas e a autonomia médica para receitar tratamentos. Entramos na era da “ineficácia cientificamente comprovada” e da tirania do passaporte sanitário. Ao final, trata-se muito mais de um debate sobre liberdades individuais do que sobre ciência.

O jogo da imprensa
Uma das grandes responsáveis pela interdição do debate e pela imposição da “verdade absoluta” é a velha imprensa e seus especialistas. Chegaram ao ponto de apresentadores de televisão se mostrarem escandalizados porque homens em fuga do Talibã despencaram da fuselagem de um avião sem máscara. Ou durante entrevistas realizadas pelo computador ou com o devido distanciamento em que apresentador e entrevistado cobrem nariz e boca — é o uso “pedagógico” da máscara. Ou a nova modalidade dos comentaristas esportivos, que reclamavam dos rostos sem proteção na final do torneio de tênis de Wimbledon e da Eurocopa. Fora os campeonatos de futebol no Brasil, onde, além dessas queixas, é exibido um placar de mortos pela covid na tela. Independentemente se a partida é no Rio ou no interior de Goiás.

As manchetes da covid também descobriram alguns fenômenos. No mês passado, o instituto Datafolha, do jornal Folha de S.Paulo, encontrou 91% de brasileiros favoráveis à manutenção da obrigatoriedade das máscaras nas ruas. Seguramente, não eram as multidões que caminham aos domingos pela Avenida Paulista, nem as que frequentam a orla de Copacabana.

Outro levantamento, da Confederação Nacional de Municípios, consultou gestores de cerca de 2 mil municípios e revelou que quase 64% pretendem manter o uso obrigatório de máscara mesmo que a população esteja totalmente imunizada. Ou seja, a intenção da maioria das autoridades públicas é manter a vida no “modo pandêmico” por mais um bom tempo. Quem sabe, para sempre.

A turma do pijama
Além da crise sanitária que se espalhou pelo mundo, um surto de pânico paralisou parte da população que ficou isolada e agora pena para voltar à vida normal. Como ressaltou o colunista de Oeste Dagomir Marquezi, “quem não escapou da covid quase morreu de medo”.

Mesmo com o avanço da vacinação e os números da pandemia em queda livre, a volta à rotina gera medo, ansiedade e falta de ar em quem não se sente preparado para o retorno. No exterior, ganhou até um nome pomposo — Forto (“fear of returning to the office”, ou “medo de voltar ao escritório”). Se há uma parcela da população com problemas reais de saúde mental, há outro tanto que simplesmente se acomodou com a vida caseira e desenvolveu uma forma de preguiça social. São os fanáticos pelo lockdown.

A principal estratégia dos gestores da covid baseou-se em provar que o confinamento da população iria deter o coronavírus

“No contexto da pandemia, as pessoas que se isolaram desde o início ainda têm se mantido seguras num comportamento de retroalimentação” — explica o doutor em psicologia pela PUC-Campinas Luiz Ricardo Gonzaga. “Ou seja, quanto mais elas se isolam, mais o comportamento delas se mantém.” Para uma minoria que pode fazer o isolamento caviar, regado a comida por delivery, compras on-line e home office, a vida durante a pandemia não foi um fardo. Mas tudo cobra seu preço, mesmo entre os mais privilegiados.

A especialista em inteligência emocional Gisele Finardi orientou um grupo de empreendedoras para dar apoio durante a pandemia. “Muitas mulheres ficavam de pijama o dia todo e se queixavam de desânimo, apatia e baixa produtividade”, conta a psicóloga. “Ao ficar em casa, é como se as pessoas parassem de ter regras de horário, de compromisso. Os dias da semana passaram a ser domingo e a produtividade consequentemente baixou. Quando estou de pijama, o que meu cérebro recebe de informação? Descanso. Ele não quer trabalhar.”

Sair desse looping vicioso em que alguns se meteram vai ser desafiador, mas fundamental para voltar à ativa. A principal estratégia dos gestores da covid baseou-se em provar que o confinamento da população iria deter o coronavírus. Não funcionou. Um estudo recente conduzido por pesquisadores da Alemanha mostrou que é possível manter a epidemia sob controle com estratégia, e não pela imposição de lockdowns sem respaldo científico.

Medidas como a realização de testes diagnósticos regulares, o rastreamento de contatos e políticas para isolar os infectados já se mostraram eficazes para conter o vírus em países asiáticos, como a China e a Coreia do Sul. O Brasil poderia ter aprendido com a experiência de outras nações. Mas aceitar essa linha da ciência seria admitir o erro de centenas de políticos que trancafiaram as pessoas em casa e estrangularam a economia como se essa fosse a única salvação para a crise.

A covid-19 continua ativa, é perigosa, e as medidas para evitar a contaminação devem ser levadas a sério. Mas quase dois anos depois, as justificativas da turma do #fiqueemcasa estão rareando. Se a tendência de queda nos números da covid se mantiver nos próximos meses, vai ficar cada vez mais difícil arrumar uma desculpa para não voltar ao convívio social.

Ao digitar a frase “quando a pandemia vai acabar”, o Google oferece quase 57 milhões de ocorrências. É sinal de que há interessados no tema. A pandemia criou labirintos, é fato. Mas, enquanto muita gente está em busca de saída, há aqueles que não pretendem procurá-la tão cedo.

Carta ao Leitor - Revista Oeste


quinta-feira, 24 de junho de 2021

Batalha da Hungria contra bandeira gay vai além de jogo da Eurocopa - VEJA - Blog Mundialista

Vilma Gryzinski 

O governo de Viktor Orbán tem o maior atrito com a direção da União Europeia por causa de lei que proíbe falar em homossexualidade nas escolas

Não teve bandeira do arco-íris na iluminação do estádio Allianz Arena, embora as cores do movimento LBGTI tenham pipocado por toda a Alemanha. Também não teve vitória da Hungria, com grande torcida contra o time por causa da decisão da Uefa de não acatar o pedido do prefeito de Munique, Dieter Reiter, de iluminar o estádio com as listas multicoloridas. [Agiu certo o prefeito de Munique: futebol é futebol, não pode,nem deve se envolver em discussões políticas.] Como explicação, a Uefa disse que não poderia agir movida por “uma decisão política”.

Apesar das antipatias despertadas, teve uma dose de razão: a iniciativa do prefeito foi feita em resposta a uma lei aprovada esmagadoramente  – 157 votos a um pelo Parlamento da Hungria na semana passada que proíbe falar sobre homossexualidade e questões de gênero nas escolas frequentadas por menores de 18 anos e em programas infantis de televisão. [também agiu corretamente o Parlamento húngaro: não é aceitável que questões como homossexualidade e de gênero sejam tratadas em escolas para menores de 18 anos e em programas infantis; são assuntos que devem ser discutidos entre adultos. São assuntos complexos e que só devem ser tratados por pessoas com um grau de amadurecimento não encontrado no público infantil,nem adolescência.]

O tema é, obviamente, incendiário, pois não existe consenso entre as diferentes camadas da sociedade sobre como deve ser tratado. Simplesmente ignorá-lo, abordá-lo de maneira neutra ou usar a influência da escola para promover a aceitação de diferentes comportamentos sexuais? 
Qual o limite entre combater o preconceito, atitude tão desejável e necessária, e o incentivo com selo oficial à experimentação sexual heterodoxa?

Os extratos mais conservadores ou apenas não antenados com comportamentos alternativos têm grande repúdio a que isso seja tratado na escola, por receio justamente de que a terceira opção seja a mais influente. É uma atitude refletida, inclusive, na última eleição no Brasil. E é um debate no qual Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro que encarna como nenhum outro político em atividade o conservadorismo mais assumido e articulado, se jogou de cabeça, sabendo muito bem que criaria mais um – talvez o maior de todos – ponto de atrito com a União Europeia.

“Esta lei húngara é uma vergonha”, fulminou Ursula von der Leyen, a alemã que preside a União Europeia, acusando a Hungria de “violar os valores fundamentais da União Europeia: a dignidade humana, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos”. Ela também desencadeou o burocrático processo da instituição para tentar cancelar a lei, com apelos ao governo húngaro.  As duas partes têm pleno conhecimento de que isso não vai acontecer. A próxima etapa, como pediram 14 dos 27 países europeus, pode ser levar a Hungria ao Tribunal de Justiça da UE. Parecer um guerreiro solitário que enfrenta potestades superiores para defender os valores tradicionais é um dos motivos da popularidade de Orbán. Na Assembleia Nacional, seu partido, o Fidesz, e um partido aliado têm 133 deputados do total de 199.

Orbán é primeiro-ministro desde 2010 e não parece minimamente ameaçado, apesar – ou por causa das antipatias que acirra entre progressistas, dentro e fora da Hungria, e dos muitos atritos com a União Europeia, inclusive por interferir na composição do judiciário. [os mandatos sucessivo a serem cumpridos pelo presidente Bolsonaro o levará, com as bênçãos de DEUS,  a superar a longevidade de Viktor Órban.] Os adversários mais inflamados do político húngaro dizem que ele gostaria de instaurar uma “ditadura putinesca”. Ele realmente cultiva uma relação especial com Vladimir Putin, embora muitos de seus discursos formidáveis se ancorem do espírito de resistência dos húngaros ao comunismo soviético.

Ao contrário de Putin, ele tem estofo intelectual  sólido e conhece melhor a Europa Ocidental. Chegou a ganhar uma bolsa para estudar ciências políticas em Oxford – ironicamente, a bolsa foi dada pela Fundação Soros.  George Soros, o multibilionário nascido na Hungria e radicado nos Estados Unidos, se tornou o mais conhecido inimigo ideológico de Orbán.

A batalha da bandeira gay torna o político húngaro mais conhecido, talvez pelos motivos errados. Orbán iria assistir o jogo com a Alemanha, mas cancelou a viagem. Poupou-se de ver o empate que desclassificou a Hungria – e talvez de ser vaiado, dependendo dos humores da plebe. A Hungria e a Polônia são hoje os dois países da União Europeia que mais assumem um papel combativo em relação às chamadas batalhas identitárias ou pautas sociais, insurgindo-se contra o casamento gay, a mudança oficial de gênero, o aborto, o progressivismo que grassa no mundo acadêmico e nas ONGs e a abertura de fronteiras para imigrantes de fora da Europa.

Ganharam a denominação de “democracias iliberais” O nacionalismo sem nenhuma atenuante, fortemente alimentado pelos períodos de perda de autonomia no passado distante ou recente, é a coluna de sustentação dessa linha. É claro que isso entra diretamente em confronto com as tendências dominantes. “A maior ameaça para a Europa não está nos que querem vir viver aqui, mas nas nossas próprias elites políticas, econômicas e intelectuais, obcecadas por transformar a Europa contra o próprio desejo dos povos europeus”, já disse Orbán. “Os partidos no governo na Polônia e na Hungria buscam o que consideram uma ruptura mais autêntica com a miragem da transição de 1989”, escreveu no Guardian o historiador americano Nicholas Mulder, referindo-se ao período atribulado do pós-comunismo.  “O nacionalismo antiliberal na Europa oriental é mais do que uma explosão de paixões incontroláveis. Têm em comum a crença de que receberam uma missão histórica e que o fim do comunismo foi apenas o começo do trajeto para a libertação nacional. O fato de que estas ideias tenham sido moldadas durante a década de transição também sugere que a democracia liberal é um projeto propositivo – não apenas algo reativo, mas sim dotado de seus próprios objetivos ideológicos”.

Dá para perceber que o assunto vai muito além da iluminação com a bandeira gay num estádio. E que o conflito com a direção da União Europeia vai esquentar.

Blog Mundialista - Vilma Gryzinski, jornalista -  VEJA

 

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Estádios da Copa, após dois anos, dão prejuízo aos governos



A Copa não acabou - Os estádios construídos para o evento dão prejuízos. Pior, boa parte é bancada com dinheiro público. Dois anos após o fim do Mundial, o cidadão continua a pagar por ele. E continuará a pagar por muito tempo 

[a melhor solução é implodir; implodindo se fica sem o estádio mas acaba a sangria dos cofres públicos que são obrigados a bancar ‘elefantes brancos’.
O Nacional de Brasília, mais conhecido como Mané Garrincha, construído pelo governador petista Agnelo Queiroz – que responde a vários processos por uso indevido e mesmo apropriação ilícita de dinheiro público -  se transformou em um grande criadouro do mosquito Aedes aegypti.] 

Faz dois anos que o alemão Mario Götze, aos oito minutos do segundo tempo da prorrogação, matou o cruzamento que veio da esquerda no peito e, quase dentro da pequena área, acertou o voleio que decidiu a partida. No Maracanã, a Alemanha bateu a Argentina e venceu a Copa do Mundo pela quarta vez na história. De lá para cá os argentinos jogaram – e perderam – mais duas finais em Copas Américas. Os alemães deixaram passar uma Eurocopa para, quem diria, Portugal. A Seleção Brasileira dispensou Luiz Felipe Scolari, o técnico do 7 a 1, recontratou e já demitiu Dunga, quem a fez cair na primeira fase da Copa América. Mas algo não mudou. O Brasil – mais especificamente, você, cidadão – continua a pagar a Copa.

Quando se fala em arena, ou em qualquer obra, uma coisa é a construção, outra é a operação. O Brasil já gastou bilhões de reais para levantar os estádios da Copa e as estruturas da Olimpíada no Rio de Janeiro. Isso não tem volta. O que você precisa considerar, agora e nos próximos anos, é quanto dinheiro ainda vai gastar com a manutenção dessas instalações esportivas. O custo do legado do Parque Olímpico da Barra passa de R$ 1,4 bilhão nos próximos 25 anos – voltaremos a este tópico na véspera da Olimpíada. O preço do legado da Copa está aberto. Aumenta a cada ano com os prejuízos anuais dos estádios. Abaixo, você vai descobrir qual é o quadro e, nos links, as situações individuais das novas arenas brasileiras.

ÉPOCA coletou nos últimos seis meses as demonstrações financeiras e os documentos de 15 novos estádios brasileiros, um legado deixado pela Copa. Além dos 12 que receberam jogos no Mundial, foram considerados Allianz Parque, do Palmeiras, Arena do Grêmio e Independência, todos reformados no mesmo período e nos mesmos padrões. A falta de transparência dificulta. Mato Grosso, Distrito Federal e Amazonas são três governos que informam apenas os dados referentes a 2015. Os números de 2014 e 2013, como estavam sob a batuta de outros governadores, sumiram. As empresas que gerem o Castelão, no Ceará, ignoraram os contatos feitos por três meses até que o governo cearense, a pedido de ÉPOCA, cobrou do consórcio o envio das informações solicitadas. Elas chegaram aos 45 do segundo tempo para fechar a reportagem.



domingo, 22 de fevereiro de 2015

Suleymane S., adotou um comportamento de confronto com uma torcida enlouquecida

Da marcha triunfal à rotina

Na França a associação de ‘ralé’ com ‘futebol’ tem causado um desconforto específico, mais autóctone

“Nenhum dos que estavam ali me defendeu. Mas, pensando bem, fazer o quê?” A pergunta que fica no ar foi feita por Suleymane S., protagonista da cena de racismo explícito ocorrida esta semana no metrô de Paris.

Ela durou pouco mais de dois minutos. Suleymane S., um franco-mauritano de 33 anos nascido em Paris, terminara o trabalho e aguardava na estação Richelieu-Drouot o metrô que o levaria de volta para casa. O trem chegou bastante lotado. Antes mesmo da abertura das portas, podia-se ouvir a cantoria de torcedores do time de futebol inglês Chelsea. Estavam a caminho do Parc des Princes para assistir às oitavas de final da Liga dos Campeões contra o Paris Saint-Germain.

Quando as portas do trem se abriram, só Suleymane andou em direção à muralha de hooligans para entrar no vagão. Os demais passageiros da plataforma preferiram aguardar. Foi ejetado pela linha de frente do bando aos empurrões e gritos de “Somos racistas, somos racistas, é isso aí”. Sem se alterar, tentou novamente cavar um espaço para entrar no vagão, mas justamente sua compostura calma parece ter exaltado ainda mais os ingleses. Foi expelido de volta à plataforma. Mesmo quem assiste ao vídeo no conforto de casa em outro país, outro continente, pode sentir o peso da humilhação pública daquele homem. Nenhuma das pessoas da plataforma fez qualquer movimento. Dos vagões adjacentes houve curiosidade, mas não reação.
 [RAW] Racist Chelsea Fans Prevent Black Man Boarding Paris Metro Train | VIDEO 

Sequer um impulso equivocado de solidariedade, como o apertar do botão de emergência.
É a vida que segue, um fait-divers desagradável. Não passaria disso não fosse o instinto do videojornalista Paul Nolan, que sacou o celular, filmou o essencial e o vídeo se tornou viral.
É provável que boa parte dos que presenciaram a cena estava entre os quatro milhões de participantes da marcha contra a intolerância e a liberdade de expressão do dia 11 de janeiro, em Paris. A comunhão nacional do “Nous sommes tous Charlie” ocorrera em repúdio a um duplo atentado terrorista que fizera 17 vítimas, enquanto no episódio desta semana não morreu ninguém, sequer ferimentos físicos houve. Mas 4.000.000 x 0?
[a comparação é desprovida de sentido:  o repúdio ao atentado terrorista contra o Charlie Hebdo é perfeitamente compreensível, já que a matança teve como motivo um comportamento jornalístico, de deboche  - portanto, inadequado - em relação ao islamismo.
Já a conduta dos torcedores do Chelsea, além de não representar crime na França, pode ser atribuída a um comportamento típico de torcedores fanáticos - inadequado,  mas que existe. Tanto que torcedores do Corinthians assassinaram, e permanecem impunes, uma criança boliviana em Orubo, Bolívia.
Convenhamos que  Suleymane S., adotou uma conduta de confronto com os torcedores ingleses - foi o único na plataforma a ter um comportamento belicoso contra os torcedores. Os demais passageiros preferiram esperar um outro trem - o que deixa evidente o caráter não racial da conduta dos ingleses.]


Poucos dias após a triunfal marcha de janeiro, o presidente François Hollande chegou a ser ovacionado de pé na Assembleia Nacional. Na ocasião, todos os deputados entoaram espontaneamente a “Marselhesa”, algo que não ocorria desde a assinatura do armistício que encerrou a Primeira Guerra Mundial em 1918. Desta vez, nenhum político francês de expressão se manifestou, nem era esperado que o fizesse. O episódio, além de corriqueiro, ficaria relegado à seção de Esportes na mídia.

De fato, ele foi considerado gravíssimo pelas instâncias mais altas do futebol mundial, engrossará a lista de crimes de xenofobia e violência racial no esporte e levará à nova revisão do rol de medidas coercitivas a hooligans. Ainda bem, pois a violência em campo, nas arquibancadas, no entorno dos estádios ou alhures só tem aumentado. Em Paris o caso Suleymane gerou a abertura de um inquérito por crime de “violência racial voluntária em um meio de transporte coletivo”, com a investigação a cargo do Serviço Transversal de Aglomeração em Eventos (STADE), uma unidade especial da polícia metropolitana. Os suspeitos já teriam sido identificados, todos convenientemente estrangeiros, hooligans e ralé.

Na França a associação de “ralé” com “futebol” tem causado um desconforto específico, mais autóctone, desde a publicação do livro “Racaille Football Club” , do jornalista Daniel Riolo. Nele, o autor disseca o DNA da seleção francesa que, em 2012, eliminada da Eurocopa, amargara o seu terceiro fracasso consecutivo em campeonatos de grande porte. 

O fracasso da equipe dos Bleus, formada à época por uma maioria de jogadores negros ou de origem árabe, vindos da periferia, levou o atual presidente da União dos Clubes Profissionais de Futebol da França, Jean-Pierre Louvel, a admitir: “Chega de hipocrisia. Todos os clubes adotam algum tipo de cota. Negá-lo seria absurdo”.

O dirigente reconhecia o que fora revelado pelo jornal eletrônico “Médiapart em 2011". Naquele ano, uma reunião da cúpula da Federação Francesa de Futebol discutira a adoção de cotas raciais nos centros de formação do país, com o objetivo de limitar o número de jogadores franceses negros ou de origem árabe. Para Laurent Blanc, à época presidente da federação e hoje técnico do PSG “se você tem 60% ou 80% de jogadores de origem africana, isso não é um mal em si... mas a vida social desse clube deixa de ser o que era”.

Um dos argumentos para justificar o projeto de cotas era a morfologia dos jogadores:  devido ao excesso de negros, considerados “mais altos, mais potentes e mais musculosos”, seria necessário abrir espaço para jogadores brancos, mais técnicos, de estatura mais baixa e mais ágeis.  Blanc acabou tendo de pedir desculpas e o projeto de cotas não se oficializou, mas, como admite o presidente da União dos Clubes, ele existe e negá-lo seria absurdo.

Souleymane S., o agredido no metrô, não é jogador de futebol. É contador numa firma e, por não falar inglês, não entendeu o que lhe gritavam os hooligans do vagão. “Só entendi que me repudiavam por causa da minha cor”. Em entrevista ao jornal “Le Parisien”, que o localizou no dia seguinte, contou não ter ficado tão surpreendido com o que lhe acontecera “pois vivo o racismo. Apenas nunca tinha me acontecido no metrô”.

Depois de agredido, aguardou o trem seguinte e foi para casa. Não contou nada à mulher nem aos três filhos. “Dizer o quê? Que o pai deles tinha sido ofendido por ser negro? Isso não leva a nada”, concluiu. Suleymane S. lembrava de uma pessoa que se aproximou dele na plataforma para dizer que ele fora corajoso. Mas lembra sobretudo que ninguém mais se mexeu. É a vida que segue, sem marcha republicana.

Por: Dorrit Harazim é jornalista - O Globo