Roberto Romano
O apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço?
Em nota de repúdio às declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), os comandantes das Forças Armadas e o ministro
da Defesa o acusam de várias coisas. Na ética, a mais grave afiança que
Mendes falou de modo leviano. Para um juiz ou militar que se preze é essencial o recato da linguagem. O modelo do soldado virtuoso começa em Esparta. A vida silente encontra
seu elogio naquela cultura. Mesmo em Atenas, onde o cidadão assumia ao
mesmo tempo a guerra e a segurança interna, a fala excessiva não era
apreciada. Longos discursos seriam reservados para a Assembleia. Ali se
orientava o destino de todos, generais incluídos. A inflação das
palavras, no governo do Estado, foi combatida pelos políticos e
filósofos gregos.
Plutarco, de quem o mundo ocidental recebeu o maior contributo ético –
sobretudo em matéria de moralidade militar –, redigiu tratados sobre o
abuso das palavras e os danos que ele acarreta. No De Garrulitate e em
seu par, o De Curiositate, o pensador adverte – com base em fatos reais –
sobre os perigos da fala sem peias. Comandantes militares que
frequentam barbearias são avisados: a conversa descuidada com o fígaro
pode ser ouvida por espiões e arruinar a defesa coletiva. Guardar o
discurso sóbrio evidencia uma das mais celebradas virtudes militares.
Quando se aponta alguém como leviano é preciso que tal acusação seja
absolutamente certa e comprovada em fatos e lógica. Caso oposto,
trata-se de uma quebra perigosa da ordem pública e privada. O acusado é
atingido no fundamento da ordem civil: a personalidade reta. Em todas as Constituições, mesmo nas ditaduras que marcaram o Brasil no
século 20, a condição para exercer um cargo oficial e garantir negócios
privados reside na reputação ilibada. O leviano não tem tal direito.
Indicá-lo como irresponsável – é o centro da fala emitida pelo
comandantes e ministro da Defesa – significa dele extrair autoridade em
matérias de Estado e poder. Provada tal acusação, todos os atos do
indigitado perdem forca legítima em decisões que envolvem a cidadania.
Pensemos nas consequências: o Supremo Tribunal Federal é um corpo. A
personalidade de seus integrantes só pode viger de forma coletiva, cada
um deles responde pelo todo e vice versa. Se um ministro do STF for
leviano, o fato macula o colegiado. Logo, as decisões assumidas por ele
podem ser legais, mas sem legitimidade.
A fé pública exige decisões legais e legítimas. Sem fé pública o próprio
Estado é corroído. Antes de comunicar ao povo que um ministro da mais
alta Corte de Justiça é leviano, todo servidor do Estado deve refletir
várias vezes, pois se trata de minar a obediência civil, a lei e a
ordem. Tais imperativos valem para os militares que apoiam o governo.
Volto às nossas origens éticas e às virtudes militares ou civis. Somos
herdeiros da Grécia e de Roma. O Direito, a política, a vida militar não
fogem à regra. No Estado moderno, atualizando as formas romanas da vida
pública, as teses de soberania e majestade, contra o exercício
ditatorial ou aristocrático, aplicam-se à totalidade dos cidadãos.
Faltar com o decoro na fala e nos atos é destruir a fé pública.
Nenhum servidor do Estado, civil ou militar, tem o direito de ser
leviano. Seu ofício exige a ponderação, a gravitas. Para os romanos,
“falar ao público dizendo o que ele gostaria de ouvir é apanágio do
homem que se define ao redor da levitas. A gravitas comanda uma atitude
adequada que não se curva em proveito do sucesso político passageiro”
(Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince). A “leviandade consiste em obter o
favor do povo desconsiderando o bem geral” (Yavetz). O governante não
pode tratar os cidadãos como tolos ou crianças. Ele deve seguir a
gravitas dicendi (Hellegouarch’h, J., Le Vocabulaire Latin des Relations
et des Partis Politiques sous la République).
Perguntemos aos comandantes e ao ministro: dizer que uma pandemia que já
ceifou a existência de cerca de 80 mil brasileiros é como uma
“gripezinha” é próprio da gravitas? [Para muitos é; o general Heleno - para citar um idoso, faixa de idade que os 'especialistas' consideram grupo de risco - foi acometido da Covid-19 e não teve nenhuma complicação, em uma declaração ele disse que sua temperatura permanecer abaixo dos 36º (talvez oportuno os 'especialistas' observarem se todas as pessoas que vencem o vírus, sem dificuldades, possuem uma temperatura normalmente baixa?);
milhares de brasileiros, e em outros países, tiveram a covid-19 sem complicações.
Portanto, dizer que é uma gripezinha não caracteriza crime nem fere a gravitas.] Louvar certo fármaco para a cura de
tal moléstia, contra advertências de especialistas em medicina, é
próprio da gravitas? Zombar do sofrimento vivido por índios, abandonados
aos matadores ferozes e ao vírus, sem uma palavra de apoio, integra a
gravitas? Vetar o fornecimento de água e cuidados sanitários aos mesmos
indígenas integra a gravitas? Afastar dois ministros médicos da Saúde
porque não aceitaram propagandear a mezinha predileta do governante
integra a gravitas? Desafiar autoridades médicas e sem máscara reunir
multidões, apertar mãos de seguidores que exigem o fechamento do
Congresso e da Justiça integra a gravitas?
Muitas perguntas podem ser feitas sobre o tema. Apenas me dirijo com
respeito aos senhores militares: o apodo aplicado ao ministro Gilmar
Mendes não poderia ter outro endereço? [ainda que sem procuração dos destinatários da pergunta, respondemos: o ministro - na nota tratado como senhor, para desvincular o STF da questão - ofendeu o glorioso Exército brasileiro e por extensão as demais forças da prática de um crime repugnante = genocídio. O silêncio poderia alimentar novas e mais graves declarações - o caso do ex-deputado Márcio Moreira Alves se faz presente.] Decida a sua consciência. Na era
da imprensa livre e das comunicações acessíveis a todos, agir de um modo
e acusar outrem pelos próprios erros não é virtude. O nome da coisa é
diverso, muito diverso.
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