Quando os primeiros casos de covid-19 surgiram,
na China, há dois anos, o mundo assistiu espantado às medidas radicais
adotadas pelo regime comunista, herdeiro de um longo histórico de
coletivismo e abuso estatal: em nome da saúde pública, as autoridades
chinesas não hesitaram em trancar as pessoas em casa, fechar indústrias e
escolas e restringir severamente as viagens internas.
Pareciam cenas de
uma distopia. Mas, com uma velocidade estonteante, medidas semelhantes
passaram a ser adotadas por países que, até então, eram tidos como
exemplos de respeito às liberdades individuais. E, como o caso do
tenista sérvio Novak Djokovic deixou claro na última semana, a Austrália
talvez seja um dos exemplos mais extremos dessa mudança.
Em uma escala de 0 a 100, o índice da Freedom House — mais respeitado
termômetro da democracia no mundo — dá uma nota 97 à Austrália (a da
Suíça é 96 e a dos Estados Unidos, 84). O Brasil aparece com 74 e a
China, com 9). É de esperar que, em uma democracia praticamente perfeita
como a australiana, direitos individuais básicos sejam respeitados. Mas
esta não é a realidade em 2022. Durante uma semana, o tenista número 1
do mundo foi detido, exposto à execração pública e impedido de exercer
sua profissão. Tudo porque, plenamente saudável e aos 34 anos de idade,
optou por não tomar (ainda) a vacina contra a covid-19.
Djokovic nasceu na Iugoslávia comunista. No livro em que conta sua
trajetória, ele descreve como, desde cedo, desenvolveu um ceticismo em
relação às autoridades — de qualquer tipo. A lógica, na visão dele, se
aplica às grandes indústrias farmacêuticas. Adepto de uma dieta com zero
glúten e de métodos pouco convencionais para a manutenção da saúde, o
sérvio costuma rejeitar medicamentos e tratamentos que enxerga como não
naturais. A postura dele pode ser debatível do ponto de vista da
medicina, mas não é um crime. Ou não deveria ser.
O calvário de Djokovic começou logo após ele desembarcar na
Austrália, no dia 6 de janeiro. Àquela altura, havia obtido uma
autorização dos organizadores do Aberto da Austrália, um dos torneios
mais importantes do mundo. O documento garantia a ele o direito de
participar do torneio, apesar da falta de um comprovante de vacinação. O
sérvio tinha exames mostrando ter contraído a covid-19 (duas vezes), o
que lhe assegurava uma imunidade natural ao vírus.
O Aberto da Austrália é o torneio mais importante do ano para
Djokovic. Dos quatro principais campeonatos de tênis do planeta
(chamados de Grand Slam), a competição australiana é aquela em que o
sérvio tem mais conquistas: nove, inclusive os troféus de 2019, 2020 e
2021. Ninguém possui mais títulos do torneio do que ele. Esta edição
seria ainda mais especial para o atleta. Uma vitória em 2022 tornaria
Djokovic o recordista mundial em títulos de Grand Slam, à frente de
Rafael Nadal e Roger Federer. Hoje, os três possuem 20 troféus do tipo.
Ao chegar ao aeroporto, na madrugada de 6 de janeiro, entretanto,
Djokovic teve uma surpresa: sua entrada no país fora negada por causa da
ausência do comprovante de vacinação. Como a chegada aconteceu pouco
depois das 5 horas, ele pediu mais tempo para consultar sua equipe e
entrar em contato com os organizadores do torneio. Em princípio, os
oficiais australianos concordaram em esperar até as 8h30. Entretanto, as
autoridades australianas mudaram de ideia rapidamente. Por volta das
6h15, Djokovic foi informado de que uma decisão final já havia sido
tomada. Ele insistiu em apelar. E, enquanto aguardava o recurso, foi
obrigado a ficar em um hotel usado pelo governo para manter imigrantes
ilegais sob vigilância enquanto decide se concede a eles o direito de
permanecer no país. O tenista passou quatro noites no Park Hotel, em
Melbourne — uma espécie de centro de detenção que já vinha sendo alvo de
queixas por causa das más condições. No fim de dezembro, um imigrante
iraquiano publicou uma foto que mostra larvas de insetos na comida
servida no hotel.
Na quarta-feira (12), o tenista finalmente obteve uma vitória na
Justiça. O juiz responsável pelo caso considerou que o tenista não teve
direito a defesa e ordenou que ele fosse liberado. “Apesar de tudo que
aconteceu, quero permanecer e tentar competir no Aberto da Austrália.
Continuo focado nisso”, afirmou o tenista. Ainda assim, o governo cogita
revogar (novamente) o visto de Djokovic, expulsá-lo do país e impedi-lo
de voltar à Austrália por três anos. Tudo em nome da saúde pública. Se
isso acontecer, Djokovic terá 38 anos na próxima vez em que poderá jogar
o Aberto da Austrália.
Durante sua batalha contra o governo australiano, o tenista recebeu
apoio de autoridades sérvias e de fãs — alguns dos quais protestaram na
porta do hotel-prisão. O tenista também obteve a solidariedade de um
ídolo australiano: Kelly Slater, o maior campeão da história do surfe.
“Talvez a síndrome de Estocolmo agora possa mudar seu nome para síndrome
de Melbourne/Austrália”, escreveu Slater, ao criticar o tratamento dado
ao sérvio.
A Austrália ganhou as manchetes por causa da queda de braço com Djokovic, mas os exemplos de abusos do poder têm se multiplicado
Para o infectologista Francisco Cardoso, as regras do governo
australiano não fazem sentido. “A vacina que eles estão exigindo para o
cidadão entrar no país não bloqueia a transmissão”, disse. “Se ele já
teve covid e apresentou um teste negativo, isso dá muito mais do que
fidedignidade de que esse paciente não está carregando o vírus do que um
mero passaporte de vacina. Claramente, há o uso do pretexto vacinal
para implantar uma política de controle muito restrita.”
Se há algo de positivo a ser dito sobre a postura do governo
australiano, é o fato de que não há discriminação: tanto estrangeiros
quanto nativos são tratados com o mesmo rigor exagerado e descabido.
Cidadãos da Austrália que não estejam vacinados estão impedidos de
deixar o país livremente. Caso planejem viajar para o exterior, precisam
solicitar uma autorização especial. E nada garante que vão obtê-la: viagens a turismo, por exemplo, não são permitidas.
Abusos cada vez mais comuns A Austrália ganhou as manchetes por causa da queda de braço com Djokovic, mas os exemplos de abusos do poder estatal têm se multiplicado.
Países com um longo histórico de respeito às liberdades individuais se tornaram mais parecidos com a China, onde um sistema de
“crédito social” pune cidadãos que não seguem à risca as diretrizes do Partido Comunista.
Na cidade de Nova Iorque, por exemplo, não é preciso mostrar nenhum documento ao votar, mas crianças de 5 anos de idade não podem entrar em restaurantes nem em cinemas
se não tiverem comprovante de vacinação. Na cidade, hospitais públicos e
privados demitiram centenas de médicos e enfermeiras que não tomaram a
vacina, justamente no momento em que os hospitais precisam de reforço no
atendimento.
Em Quebec, no Canadá, não vacinados estão proibidos de comprar álcool
(e maconha, que é legal na Província canadense). Agora, o governo
também estuda impor uma taxa sobre não vacinados. A África do Sul, por
sua vez, construiu campos de internação para os quais são levados não
apenas pacientes detectados com o vírus, mas aqueles que tiveram contato
com algum infectado pela covid-19.
Outro direito considerado intocável nas democracias ocidentais tem
sido ignorado: a liberdade religiosa. No Canadá, o pastor Artur
Pawlowski foi preso
porque sua igreja não cumpriu as draconianas regras de distanciamento
social. Em Louisville, no Estado americano de Kentucky, o prefeito
chegou a proibir não apenas a realização de cultos e missas dentro das
igrejas, mas também a realização de cerimônias religiosas do tipo drive-in, em que as pessoas ficam dentro de seus carros.
O Brasil não é exceção. O governador da Bahia, Rui Costa (PT),
já afirmou que pretende tornar a vacinação obrigatória para a inscrição em concursos públicos do Estado.
No Tocantins, um projeto de lei
em tramitação também propõe a obrigatoriedade em concursos estaduais. A
liberdade de culto também foi colocada em xeque.
E nem mesmo as igrejas
que cancelaram as celebrações presenciais estão a salvo. No ano
passado, uma missa transmitida pela internet em uma igreja de Duartina
(SP) foi interrompida por fiscais da prefeitura, apesar do templo vazio.
O mesmo havia acontecido em Poços de Caldas (MG) meses antes.
Mas um exemplo ainda mais significativo, e mais recente, veio do Supremo Tribunal Federal. Em uma medida inédita, o STF decidiu
no mês passado que brasileiros sem vacinação não podem voltar ao país, a
não ser que passem por um período de quarentena. O direito de retorno à
terra natal, assegurado pela Constituição e pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, foi relativizado.
Conforme a variante Ômicron se espalha, o padrão de abusos aos
direitos individuais dá poucas demonstrações de que vai arrefecer. A
distopia chinesa se tornou o cotidiano de muitos países que, até pouco
tempo atrás, se orgulhavam de respeitar os direitos humanos
fundamentais. Anos atrás, o canal de TV da National Geographic produziu uma série que, em português, ganhou o título de Férias na Prisão.
Cada episódio contava uma história — e muitos deles podem ser resumidos
desta forma: estrangeiros incautos viajam para um país de Terceiro
Mundo e acabam em apuros por causa de uma acusação falsa ou de uma lei
absurda que eles não faziam ideia de que pudesse existir. [um dos ministros do STF, nos parece que o Barroso, pretendeu criar no Brasil a categoria de brasileiros exilados em aeroportos brasileiros. Recuou, já que certamente um dos seus assessores alertou para a mancada.] O caso de
Djokovic talvez inspire os produtores a filmar uma nova temporada, agora
em novas locações.
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