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sábado, 17 de outubro de 2020

A baderna legal - IstoÉ - Editorial

Consolidou-se o descalabro. Mais cedo ou mais tarde aconteceria. Levado ao pé da letra, o penduricalho na legislação anticorrupção, aprovada recentemente, acabou por provocar uma inominável injustiça e, em consequência, revolta social. O movimento de ataque à Suprema Corte, por conta do ocorrido, é sem precedentes. Ninguém se conforma. E com razão. Sentimentos de perplexidade e indignação tomaram a maioria. O código contrabandeado para dentro do pacote anticrime que abriu a cela do narcotraficante André do Rap, chefão do PCC, a maior facção organizada de drogas no País, é de uma desfaçatez e operacionalidade inconcebíveis.

Para um sistema penal e legal caótico como o brasileiro, anotar a obrigação de se revisar prisões preventivas a cada 90 dias equivale a multiplicar o problema das ações por mil. Com processos abarrotados de recursos de habeas corpus, o Judiciário simplesmente travaria diante da missão hercúlea, caso seguida à risca. Pois o ministro Marco Aurélio Mello achou por bem se apegar a literalidade do texto, sem olhar a “capa” do processo (como disse), ou mesmo o histórico do criminoso e a sua capacidade de delinquir, para colocar nas ruas um marginal com duas condenações em segunda instância que havia ficado foragido por seis anos, responsável por operações que, de uma só sentada, teria enviado mais de quatro toneladas de cocaína à Europa.

Marco Aurélio fez isso, basicamente, por que havia vencido o prazo de 90 dias para a renovação da preventiva. Burocracia pura. Ou seja, por mero decurso de tempo, uma figura do calibre delituoso de André do Rap ganhou a oportunidade de voltar a agir serelepe na vida da bandidagem em alta voltagem. O poder togado falhou, fragorosamente, na opção voluntariosa do ministro Mello. Registre-se que esse era um caso que cabia a sua colega de Corte Rosa Weber, e não a ele. Aponte-se, também, como alegam inúmeros juristas, que um condenado em segunda instância não possui mais o benefício da dúvida, sujeito a julgamentos que o livrem do xilindró. Mas o magistrado Marco Aurélio ignorou detalhes processuais e foi adiante na decisão.

Em qualquer lugar do planeta, alguém com tamanha folha corrida, que exibia quando preso, na mansão onde foi encontrado, dois helicópteros, iate, lancha, carros de luxo, dignos de um capo di tutti capi, conquistados à base de sangue, contrabando de drogas e toda sorte de ilegalidades,é tido como mega marginal, sendo trancafiado em cadeias de segurança máxima, sem chance de perdão ou atenuante. Por aqui, “do Rap” conseguiu sair sereno e candidamente pela porta da frente em uma cena que retrata à perfeição o desmanche do arcabouço legal anticrime no País. É de um surrealismo jurídico sem tamanho.

Como não dimensionar as consequências de tal ato, que mistura barbeiragem técnica, pendor midiático e imprudência de uma autoridade que, monocraticamente, tal qual um monarca, comete tamanha insensatez? 
Como exatamente alguém acha razoável adotar um veredicto assim, em casos como esse? 
Tudo começa lá atrás. Na seara política, que buscava brechas para interromper as longevas prisões da Lava Jato, verifica-se o pecado original. Parlamentares do Centrão maquinaram a artimanha, dominaram a votação e, com o beneplácito e endosso do mandatário Bolsonaro, levaram adiante o benefício matreiro que, evidentemente, abre os portões da impunidade principalmente para os vendilhões da Nação.

Podia não ter sido assim. O então ministro da Justiça Sergio Moro, que conduziu as negociações do projeto da Lei Anticrime, era contra. Alertou o presidente de forma veemente para o risco de soltura em massa e automática, caso o dispositivo vingasse. [o dispositivo foi inserido pelo Congresso e caso o presidente vetasse o veto seria derrubado.] Foi ignorado. O pacote, desfigurado. As mexidas oportunistas na proposta original deram a senha pró bandidagem. Mesmo a permissão para a prisão de condenados em segunda instância ficou escanteada. [escanteada por suprema decisão, 6 a 5, do STF.]  A cleptocracia venceu. No rastro, um mutirão de soltura teve início. André do Rap não é, lamentavelmente, o único exemplo.

O ministro Marco Aurélio — sempre ele! —, que tempos atrás foi responsável também pela liberação do banqueiro Salvatore Cacciola (autor de um golpe financeiro milionário e que se escafedeu após a benevolência do magistrado), já soltou outros 79 criminosos pelo mesmo critério. Da experiência, uma lição implacável: enquanto a Justiça for considerada uma espécie de condomínio fechado, sujeita às interpretações subjetivas e distintas dos luminares da ciência legal, e não um patrimônio indiscutível, claro e objetivo erigido pela própria sociedade e com o seu endosso, não haverá, no Brasil, Justiça alguma. Esse casulo majoritariamente aristocrático, de apreciações e análises diametralmente opostas de um mesmo artigo, coloca em caos o sistema.

Da mesma forma, as tais deliberações monocráticas, em última instância, com hierarquias pronunciadas dignas de soberanos, são — como seguidamente demonstrado — discutíveis, por carregar impulsos quase impenetráveis e escolhas até passionais dos honoráveis juízes. Senão, vejamos: como explicar que, ato contínuo à deliberação de Marco Aurélio, o presidente do STF, Luiz Fux, tenha considerado adequado derrubar a tal liminar e, não satisfeito, em plenário da Corte, a mesma turma, majoritariamente, entendeu que a decisão do colega foi errada? Ou, para usar um termo mais harmonioso, inadequada? A barafunda no ambiente Judiciário está formada.

É assombroso que uma filigrana, meramente de ordem metodológica, que trata de procedimentos, aliás, sem propósito, seja capaz de tamanho estrago. Em conjunto para o desastre e dentro de um conceito garantista do texto, a retórica do ministro Marco Aurélio soa, por assim dizer, bisonha. Dispõe da virulência e da solidez dignas dos monumentos de barro. Trilhando ajaezadas metonímias e saltando com a devida destreza sobre os obstáculos do vernáculo, o magistrado ainda demonstra acreditar, piamente, que vem fazendo justiça.

Marco Aurélio é o verbo em pessoa, ainda que suas palavras circunstancialmente possam soar flácidas. Ele se presta ao papel de homem da lei rigoroso, com a toga cerimonial, mas sua eloquência parece promover, ao longo de sentenças de ontem e de hoje, sem constrangimento algum, o atendimento a demandas de poucos, em um sarau de privilegiados, no avarandado dos poderosos, contra o sentimento de correção do povo subalterno. Para os de fora, não há como afastar a sensação de um sistema legal de castas.

Já o eminente ministro Mello, talvez movido pelo senso de “noblesse oblige”, pressuponha ter uma imutável, quase instintiva, superioridade de discernimento. O problema é que o novelo do escabroso enredo não se esgota no veredicto em si. Foi levantada a participação de um ex-assessor do magistrado, que trabalharia no processo, insinuando suspeitas de favorecimento, que o ministro reputa como injúrias. Não seria o caso — mera pergunta de se declarar impedido a julgar, pela proximidade com o advogado do réu? De tudo resta a crua e triste realidade, fruto da confusão armada: Andre do Rap já está foragido. Sumiu do radar, debandou.

Dizem, para o Paraguai ou vizinhanças e, claro, não vai atender a uma convocação de volta. Nem todo o aparato policialesco, inclusão na lista da Interpol, mobilização de agentes federais e estaduais serão capazes de reabilitar o dano e a consequência. Todo trabalho feito lá atrás foi por água abaixo. Há, não é de hoje, uma distância abissal entre a atuação dos investigadores e dos togados no balé da Justiça. Um grupo prende, o outro, via de regra, manda soltar. Sempre sob o argumento de brechas na lei.

De que adianta tamanho arcabouço regendo um sistema que favorece os maiores infratores? Acomodações que promovem libertação após um sexto da pena cumprida demonstram que muito ainda precisa ser mudado. Saem de esquizofrenias processuais como essa o fato de um ladrão de galinha poder ficar anos no sistema carcerário enquanto chefões da droga são lançados de volta às ruas em meses. Parece certo? Evidente que não. De uma canetada só, para desencanto, desassombro e desespero dos cidadãos de bem, que pagam seus impostos, um marginal de alta periculosidade voltou a ameaçar a sociedade. É essa a Justiça que queremos?

Carlos José Marques, diretor editorial da Editora Três


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O crime do Expresso do Oriente - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

André do Rap foi solto por todos pelos ministros do Supremo e  pelos parlamentares

Dizer que a essência da lei que o ministro seguiu ampara a libertação de um bandido como o chefão do PCC é uma demasia

O ministro Marco Aurélio Mello disse quase tudo“O juiz não renovou, o Ministério Público não cobrou, a polícia não representou para ele renovar. Eu não respondo pelo ato alheio, vamos ver quem foi que claudicou.” Quase tudo, porque quem soltou André do Rap, chefão do Primeiro Comando da Capital, condenado a 27 anos de prisão, foi Marco Aurélio Mello.

Dizer que essência da lei que o ministro seguiu ampara a libertação de um bandido como o chefão do PCC é uma demasia. Assim como foi uma demasia sua decisão de 2000, quando soltou o banqueiro Salvatore Cacciola, que viria a se escafeder (como André do Rap), até ser preso em Monte Carlo e recambiado para Bangu. Nesses casos, como em outros, iluminou-se na controvérsia.

Como no crime do Expresso do Oriente, André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que derrubaram a tranca para os condenados em segunda instância. Foi solto também pelos parlamentares que votaram um dispositivo escalafobético que permite a libertação de qualquer pessoa presa preventivamente há mais de 90 dias sem manifestação do juízo pela prorrogação do prazo. O ex-ministro Sergio Moro, com sua lógica angelical, diz que nada tem a ver com a girafa. De fato, ela não saiu do seu zoológico, mas o doutor botou a boca no mundo com um argumento de má qualidade: a exigência da renovação da preventiva a cada 90 dias sobrecarregaria os juízes. Quem entende do assunto estima que são, no máximo, cinco horas de trabalho por mês para um juiz de vara superpovoada. Foi o juiz Moro quem usou à saciedade o instrumento da preventiva como uma forma de pena antecipada. [a famosa prisão perpétua à brasileira = prisão preventiva com características de pena de prisão perpétua = se sabe quando começa e não se sabe se, e quando, termina.

Aliás, proibida pela Constituição Federal. Apesar de se tratando de bandido já condenado em duas instâncias, nada mais justo do que usar a condenação ratificada como argumento para estender a preventiva.] O ministro Gilmar Mendes cansou-se de denunciar essa astúcia. Os doutores do andar de cima soltaram André do Rap, e corre-se o risco de sobrar para o andar de baixo. O Brasil tem centenas de milhares de pessoas pobres, em geral jovens pobres e negros, encarceradas sem condenação. Do jeito que a libertação de André do Rap entortou, surge a impressão de que para evitar a “sobrecarga” dos juízes, deve-se apertar o parafuso da preventiva.

Em sua batalha pela restauração do habeas corpus, o grande Raymundo Faoro, presidente de uma OAB que não existe mais, explicava aos generais que o instituto não discute o mérito da acusação que há contra uma pessoa, mas uma ilegalidade pontual na conduta do Estado. Os generais entenderam. André do Rap não foi libertado porque é inocente, mas porque o STF decidiu que não se pode prender uma pessoa apenas com uma condenação em segunda instância. Ademais, a lei diz que os juízes devem se manifestar a cada 90 dias. Não é muito, sobretudo considerando que o cidadão está na cadeia há três meses. Refrescando a vida dos magistrados, arrisca-se deixar milhares de pessoas mofando nos cárceres.

O caso de André do Rap abriu a porta do armário das idiossincrasias cultivadas pelos 11 ministros do Supremo Tribunal.
O juiz americano Oliver Wendell Holmes dizia que sua Suprema Corte se parecia com nove escorpiões numa garrafa. 
No Supremo Tribunal Federal há 11. O choque dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello é apenas um asterisco desse ambiente irradiador de malquerenças.

Folha de S. Paulo - Jornal O Globo - Elio Gaspari, jornalista