Consolidou-se o descalabro. Mais cedo ou mais tarde aconteceria. Levado ao pé da letra, o penduricalho na legislação anticorrupção, aprovada recentemente, acabou por provocar uma inominável injustiça e, em consequência, revolta social. O movimento de ataque à Suprema Corte, por conta do ocorrido, é sem precedentes. Ninguém se conforma. E com razão. Sentimentos de perplexidade e indignação tomaram a maioria. O código contrabandeado para dentro do pacote anticrime que abriu a cela do narcotraficante André do Rap, chefão do PCC, a maior facção organizada de drogas no País, é de uma desfaçatez e operacionalidade inconcebíveis.
Para um sistema penal e legal caótico como o brasileiro, anotar a obrigação de se revisar prisões preventivas a cada 90 dias equivale a multiplicar o problema das ações por mil. Com processos abarrotados de recursos de habeas corpus, o Judiciário simplesmente travaria diante da missão hercúlea, caso seguida à risca. Pois o ministro Marco Aurélio Mello achou por bem se apegar a literalidade do texto, sem olhar a “capa” do processo (como disse), ou mesmo o histórico do criminoso e a sua capacidade de delinquir, para colocar nas ruas um marginal com duas condenações em segunda instância que havia ficado foragido por seis anos, responsável por operações que, de uma só sentada, teria enviado mais de quatro toneladas de cocaína à Europa.
Marco Aurélio fez isso, basicamente, por que havia vencido o prazo de 90 dias para a renovação da preventiva. Burocracia pura. Ou seja, por mero decurso de tempo, uma figura do calibre delituoso de André do Rap ganhou a oportunidade de voltar a agir serelepe na vida da bandidagem em alta voltagem. O poder togado falhou, fragorosamente, na opção voluntariosa do ministro Mello. Registre-se que esse era um caso que cabia a sua colega de Corte Rosa Weber, e não a ele. Aponte-se, também, como alegam inúmeros juristas, que um condenado em segunda instância não possui mais o benefício da dúvida, sujeito a julgamentos que o livrem do xilindró. Mas o magistrado Marco Aurélio ignorou detalhes processuais e foi adiante na decisão.
Em qualquer lugar do planeta, alguém com tamanha folha corrida, que exibia quando preso, na mansão onde foi encontrado, dois helicópteros, iate, lancha, carros de luxo, dignos de um capo di tutti capi, conquistados à base de sangue, contrabando de drogas e toda sorte de ilegalidades,é tido como mega marginal, sendo trancafiado em cadeias de segurança máxima, sem chance de perdão ou atenuante. Por aqui, “do Rap” conseguiu sair sereno e candidamente pela porta da frente em uma cena que retrata à perfeição o desmanche do arcabouço legal anticrime no País. É de um surrealismo jurídico sem tamanho.
Como exatamente alguém acha razoável adotar um veredicto assim, em casos como esse?
Podia não ter sido assim. O então ministro da Justiça Sergio Moro, que conduziu as negociações do projeto da Lei Anticrime, era contra. Alertou o presidente de forma veemente para o risco de soltura em massa e automática, caso o dispositivo vingasse. [o dispositivo foi inserido pelo Congresso e caso o presidente vetasse o veto seria derrubado.] Foi ignorado. O pacote, desfigurado. As mexidas oportunistas na proposta original deram a senha pró bandidagem. Mesmo a permissão para a prisão de condenados em segunda instância ficou escanteada. [escanteada por suprema decisão, 6 a 5, do STF.] A cleptocracia venceu. No rastro, um mutirão de soltura teve início. André do Rap não é, lamentavelmente, o único exemplo.
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