Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador William. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador William. Mostrar todas as postagens

sábado, 27 de agosto de 2022

Acredite na velha imprensa, se puder - Ana Paula Henkel

Revista Oeste

Numa série de sabatinas com presidenciáveis, o Jornal Nacional exibiu um “chá das cinco” entre compadres com o ex-presidiário Lula e os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Reprodução
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Reprodução

Há algum tempo tem sido difícil explicar o Brasil para família e amigos na América. Bem, na verdade, tem sido difícil explicar o Brasil até para brasileiros. Os acontecimentos desta última semana, então, transformaram a tarefa em algo impossível. Um ministro da mais alta corte do país, membro do tribunal que deveria salvaguardar a Constituição e aplicar as leis de forma responsável e justa decidiu — mais uma vez — rasgar mais páginas da nossa Carta Magna e ignorar por completo o ordenamento jurídico da República.

Em mais um impulso narcisista e totalmente inconstitucional, Alexandre de Moraes determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão contra um grupo de empresários que apoia o presidente Jair Bolsonaro e que teria defendido um golpe de Estado em caso de vitória de Lula nas eleições.  
A conversa, que poderia ter acontecido numa mesa de bar, aconteceu em mensagens trocadas privadamente em um grupo de WhatsApp. Bem, o capítulo “Alexandre de Moraes” já não é nem mais um mero “capítulo” no imenso livro “Tente Explicar o Brasil” que seria impossível de ser publicado por qualquer membro da Academia Brasileira de Letras. O arrogante e destemperado ministro se tornou uma série inteira à parte.

A semana do “Tente Explicar o Brasil” também trouxe a sequência do caminho — agora livre — de um político corrupto, condenado em três tribunais com “sobra de provas” e preso. O queridinho do STF agora está, oficialmente, em campanha presidencial. Numa série de sabatinas com presidenciáveis, o Jornal Nacional, da Rede Globo, exibiu na quinta-feira um “chá das cinco” entre compadres com o ex-presidiário Luiz Inácio da Silva e os apresentadores [ou interrogadores.] William Bonner e Renata Vasconcellos. O Brasil, estupefato diante de tantas bobagens e mentiras ditas por um ladrão de dinheiro público, teve de ouvir que o “agronegócio é fascista e direitista” e que um movimento que propaga terrorismo doméstico, o MST, defendido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, “está fazendo uma coisa extraordinária: está cuidando de produzir”

Dê uma chegadinha ali às ferramentas de busca e digite “MST/invasão/animais” e veja com os seus próprios olhos a barbárie que esses terroristas promovem em fazendas e laboratórios pelo Brasil. (Aviso: CENAS FORTES!)

A cereja do bolo do happy hourde Lulinha, Billy Bonner e Rê talvez tenha passado despercebida, já que a pérola foi dita logo no começo da rodada. A conversa de bar foi aberta por Bonner, que, ao tentar questionar, cheio de dedos, sobre os escândalos de corrupção dos governos petistas e mencionar o histórico do ex-enjaulado com a Justiça brasileira, finalizou o comentário dizendo: “O senhor não deve nada à Justiça”.

“O senhor não deve nada à Justiça.”

Repitam comigo, amigos: O – senhor – não – deve – nada – à – Justiça.

É de embrulhar o estômago.

Distopia orwelliana
Mas, calma, temos de voltar a fita. Nesta semana, iniciando a série de sabatinas do Jornal Nacional, também tivemos, de maneira bem diferente, o encontro dos apresentadores do Jornal Nacional com Jair Bolsonaro. Apesar do nosso papel e dever como jornalistas de assistir ao que muitos brasileiros preferem não ver — ainda mais se tratando de Rede Globo —, a análise do que podemos chamar de inquisição do atual presidente e do bate-papo com o ex-presidiário deve ser feita como um dever cívico por cada um de nós. Faço um convite a todos, que percam alguns minutos do dia (recomendo um antiácido antes) e testemunhem diante de seus próprios olhos o que poderia ter saído, tranquilamente, das páginas de uma distopia orwelliana.
 
Entre caras, bocas, risinhos sarcásticos e verdadeiros editoriais dos apresentadores daquele que já foi considerado o programa de notícias mais relevante do país, Renata Vasconcellos usou as seguintes palavras para questionar o atual presidente sobre algo na pandemia: “(…) Medidas socioeconômicas importantíssimas, elas foram adotadas (…) para sustentar o ‘fica em casa’ no pico da pandemia — ‘fica em casa, se puder’”. Com dedinho levantado e ênfase no “se puder.”

“Fica em casa, se puder.”

Fica – em – casa – se – puder. Amigos, amigos…

No mundo da Oceania de 1984, não há mais um senso de devido processo legal, investigação, respeito ao sistema acusatório e muito menos uma presunção de inocência até que se prove a culpa

Ou eu dormi durante dois anos e só acordei agora, ou nunca ouvi esse “se puder”. Para todos os efeitos de justiça com a Renata e seu (err) jornalismo, fiz uma boa busca na internet e não encontrei nenhum registro da expressão “fica em casa, se puder”. Encontrei dezenas e dezenas de artistas, celebridades, jornalistas inclusive a D. Renata Vasconcellos! — bradando o famigerado “Fique em casa!”, “Fique em casa!”, “Fique em casa”… quase que em um transe coletivo.

Um vídeo que viralizou durante o FIQUE EM CASA, sem o SE PUDER, Dona Renata, foi mostrado no programa Profissão Repórter, da emissora em que a senhora trabalha. 

Enquanto jornalistas podiam trabalhar acompanhando a fiscalização de prefeituras que mandavam seus agentes da Gestapo fecharem comércios e multarem quem estivesse aberto, comerciantes entravam em desespero enquanto jornazistas de várias emissoras apontavam o dedo para aqueles que ousassem, por pura necessidade, trabalhar para sustentar a família. Quando as viaturas chegavam, os repórteres que alimentavam os noticiários apresentados por jornalistas que liam os TelePrompTers com caras, bocas e expressões no melhor estilo “que horror, você saiu de casa para trabalhar!” ainda tinham a desfaçatez de culpar comerciantes, lojistas, barraqueiros, vigias… Pais de família que simplesmente “não podiam” ficar em casa imploravam para não serem multados ou presos. Nos mesmos noticiários, famílias sem ter o que comer e crianças há meses sem ir à escola eram mostradas.

Para não dar o braço a torcer para o que o presidente Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump, nos EUA, alertavam de que não seria prudente trancar tudo e a economia “a gente vê depois”, Renata Vasconcellos decidiu acrescentar um “se puder” em uma frase que — nem de longe — implicava algum tipo de escolha ou opção para cidadãos do Brasil e do mundo. 
Quem não se lembra de outra colega de Renata e Bonner, a apresentadora Maju Coutinho, que, depois de dizer uma das maiores mentiras da pandemia, a de que os especialistas eram unânimes em forçar o lockdown, proferiu naturalmente, mostrando uma insensibilidade inacreditável diante de tanto sofrimento, o famoso o clichêo choro é livre”
Enquanto os mais necessitados, os mais pobres e vulneráveis iam sendo afetados de maneira cruel a cada dia de trancamento forçado, com direito a truculência policial encampada por governadores tiranos, Dona Maju, Dona Renata e toda uma turba de jacobinos globais continuavam trabalhando de estúdios com ar refrigerado ou em home offices enquanto postavam em suas redes sociais “Fique em casa”. Muitos ainda acrescentaram ao mantra “a economia a gente vê depois”.

As imagens de pânico, lágrimas e desespero por não poder trabalhar e trazer comida para casa estão espalhadas por toda a internet. Postei em meu Instagram, logo após o “se puder” global, um vídeo curto, de quatro minutos apenas, com algumas cenas para refrescar a memória da Dona Renata Vasconcellos. 
Gôndolas de supermercados foram bloqueadas, o Estado policialesco decidiu por todos muitos o que eram “itens necessários” que podiam ser comprados. A prefeitura de São Paulo soldou portas de lojas para impedir sua abertura. Trabalhadores ambulantes com carrocinhas de pipoca ou barraquinhas de frutas tiveram seus carrinhos virados por policiais, espalhando tudo no chão. Enquanto ônibus, metrôs e trens permaneciam lotados nas grandes cidades, uma mulher foi espancada e outra algemada nas praias desertas do Rio de Janeiro. Em Araraquara, interior de São Paulo, outra mulher que corria em um parque também deserto da cidade foi abordada pela polícia, recebeu voz de prisão, foi imobilizada por quatro homens e algemada. 
Um deles repetia com calma enquanto ela gritava que não conseguia respirar porque alguém estava lhe aplicando um “mata-leão”: “Não resista. Fique calma e não resista”. SE PUDER, claro.

Nesta semana, nos Estados Unidos, Anthony Fauci, o nome da pandemia na América, o deus da velha imprensa ianque, anunciou sua aposentadoria da vida pública após sua liderança na pandemia permanecer sob forte escrutínio e cheia de controvérsias. Quando o vírus chinês atingiu os Estados Unidos, Dr. Fauci rapidamente se tornou um nome familiar e seu rosto estava em todos os canais de TV 24 horas por dia, sete dias na semana. 
Suas recomendações foram tratadas como evangelho por muitos. Mas, à medida que os efeitos de longo prazo de políticas como máscaras, vacinação experimental compulsória e os efeitos do lockdown vinham à tona, os críticos e a população em geral se encheram de perguntas, e o santo Fauci não gostou de ser questionado. Coisa de ministro de corte suprema tupiniquim.

Na terça-feira dia 23, Fauci foi entrevistado por Neil Cavuto na Fox News, e o âncora da emissora fez perguntas incômodas àquele que é acusado pelos republicanos de ter colaborado com a disseminação do vírus chinês por financiar pesquisas de ganhos de função no laboratório de Wuhan. Na China. Cavuto perguntou: “Olhando para trás em algumas dessas decisões, incluindo a gravidade da própria epidemia, mas fechando praticamente toda a economia norte-americana, você se arrepende particularmente desse passo?”. Fauci, assim como Renata Vasconcellos e William Bonner, diz, como quem está numa realidade paralela — ou alguém que simplesmente quer reescrever a história — que “é preciso deixar bem claro para os telespectadores, para que eles entendam que eu (Fauci) não fechei nada e que não acredito que os lockdowns causaram danos irreparáveis a qualquer pessoa. Se voltarmos, basta ver que queríamos apenas achatar a curva naqueles 15 dias.”

Cavuto, um experiente e intelectualmente honesto jornalista, interrompe aquele que causou graves danos a futuras gerações e dispara: “Mas o senhor não acha que tudo foi longe demais? Quaisquer que tenham sido suas intenções iniciais, o senhor não acredita que tudo passou dos limites, especialmente para as crianças, que não puderam ir para as escolas, e que isso poderá trazer um dano permanente?”. O que o personagem favorito de veículos como o The New York Time e Washington Post disse? “Não acho que haverá dano permanente. Não acredito que prejudicamos alguém, e acho que, se você voltar e puxar coisas sobre mim, eu também fui uma das pessoas que disseram que tínhamos de fazer tudo o que podíamos para trazer as crianças de volta à escola. Sempre disse que era muito importante protegermos as crianças dos efeitos colaterais de mantê-las fora da escola.”

Lendo tudo isso, seu sangue ferve como o meu? O que essa gente, William, Renata, Fauci, pensa que somos? Idiotas? Burros? Que temos amnésia?

Há mais de um ano, em agosto de 2021, escrevi aqui em Oeste um artigo com o título “Ciência, ciência, silêncio”. Naquele momento, a pandemia havia sido controlada nos Estados Unidos, país que já havia vacinado mais de 165 milhões de pessoas. 
Alguns Estados com administrações republicanas, como a Flórida, por exemplo, nem sequer fecharam completamente suas escolas — mesmo em 2020 —, e os números de contágio e mortes não foram superiores aos de Estados que trancaram tudo por mais de um ano, como a Califórnia. Ali, já deveríamos estar voltando à vida normal, o próprio Fauci prometeu que seria um pouco de lockdown, achatar a curva, máscaras por um tempo e estaríamos de volta. Havia, desde outubro de 2020, um manifesto elaborado por especialistas de Harvard, Oxford e Stanford — a Declaração de Barrington — que já revelava que lockdowns totais seriam nefastos não apenas para a economia, mas para as pessoas, sua saúde física e mental; e que o correto seria segregar os mais velhos, doentes e com comorbidades. 
Mesmo com mais da metade da população vacinada, no Brasil e nos EUA, eles continuaram exigindo mais máscaras, mais trancamentos, mais ensino remoto, mais estabelecimentos, escolas, parques, bares… fechados.

“Fique em casa, seu fascista!”
Um estudo recente do Brookings Institute mostrou que as diferenças nas pontuações dos testes entre os alunos das escolas primárias de baixa e alta pobreza cresceram 20% em matemática e 15% em leitura durante as paralisações da pandemia. Muitas crianças no Brasil foram trancadas em casa com seus abusadores, sem alimentação nem ensino básico. Desde os lockdowns, o CDC documentou um aumento de 51% nas tentativas de suicídio entre adolescentes. De acordo com a UCLA, a taxa de mortes por overdose de adolescentes quase dobrou. Há outras dezenas de pesquisas do mesmo gênero espalhadas pelo mundo. Toda a tirania do “Fique em casa, seu fascista!” está amplamente documentada para que figuras como o trio Bonner, Vasconcellos e Fauci jamais tenha a possibilidade de tentar editar o que fizeram, o que falaram, o que apoiaram e o monstro que alimentaram que devorou os mais vulneráveis. As cidades pareciam cidades fantasmas. Jamais esquecerei a entrevista que o prefeito de Aparecida concedeu ao programa Os Pingos nos Is. Com lágrimas nos olhos, Luiz Carlos Siqueira pedia doações de alimentos, agradecia a ajuda do governo federal e relatava que não conseguia retorno da gestão do governador de São Paulo e que a população estava faminta, sem dinheiro, sem trabalho e sem esperanças com o lockdown imposto pelo governador João Doria.

Distorções e mentiras são estratégias protagonistas no famoso 1984, romance de George Orwell. As palavras de Orwell, publicadas em 1949, aumentaram em popularidade nos últimos anos não apenas porque as sociedades modernas estão se tornando cada vez mais parecidas com o que foi descrito na obra fictícia do autor, seja na vigilância em massa seja na guerra cultural perpétua. O romance de Orwell é presciente de várias maneiras, e o livro costura os sintomas da atual sociedade com um tipo de totalitarismo — pregado de forma sistemática por Alexandre de Moraes. Chega a ser assustador ler sobre o Ministério da Verdade da distopia de Orwell, escrita há mais de 70 anos, como se ela profetizasse os atuais tempos. No mundo da Oceania de 1984, não há mais um senso de devido processo legal, investigação, respeito ao sistema acusatório e muito menos uma presunção de inocência até que se prove a culpa. Em vez disso, a ideologia arregimentada — a supremacia do poder do Estado para controlar todos os aspectos da vida de alguém para impor uma ideia fossilizada de qualidade obrigatória — distorce tudo, desde o uso da linguagem até a vida privada.

É também do mundo irreal criado por Orwell que personagens da vida real tiram as distorções e as falácias de quem errou feio e agora tenta editar a história. No livro, mais atual do que nunca, a passagem seguinte chega a ser assustadoramente similar com a atualidade: “Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todos os livros reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e prédios de rua foram renomeados, todas as datas foram alteradas. E o processo continua dia a dia e minuto a minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão. Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”.

A diferença entre a Oceania, o Brasil ou os Estados Unidos é que agora temos uma coisinha incômoda que Orwell não imaginou. A internet. Para aqueles que tentam — e tentarão, sempre —, seja em debates seja no noticiário, reescrever a história, será um pouco mais complicado realizar essas edições.

Para William Bonner: Lula não está limpo e não está em dia com a justiça. Ele não passa de um descondenado por manobras ativistas, mas jamais foi inocentado. Para Renata Vasconcellos: nunca houve “SE PUDER”, Renata. Nunca. E vocês não reescreverão a história.

Leia também “Temporada de caça às bruxas”

 

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste

 

sexta-feira, 25 de março de 2022

Uma agressão às mulheres - Revista Oeste

Ana Paula Henkel 

Até 2019, Lia era William e competia com os homens. Antes de se tornar a número 1 entre as mulheres, no ranking com os rapazes era o 462º entre 500 nadadores 

Há mais de cinco anos venho escrevendo e falando sobre o que jamais poderíamos imaginar, principalmente nós mulheres: ver homens biológicos competindo no esporte feminino. 
Já escrevi uma carta aberta ao Comitê Olímpico Internacional e uma dúzia de artigos detalhando todos os pontos absurdos dessa política nefasta de identidade de gênero que vem prejudicando meninas e mulheres em todo o mundo e em quase todos os esportes.
 
Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e se sagrou “campeã” da liga universitária norte-americana | Foto: cortesia Peter H. Brick
Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e se sagrou “campeã” da liga universitária norte-americana | Foto: cortesia Peter H. Brick  [em outras palavras = quando era homem biológico entre 500 competidores, ele estava entre os 50 piores = ocupava o 462º lugar; ; se transformou e passou a competir com as mulheres e passou a ser o primeiro entre elas. Isso é justo?]

Não é preciso repetir neste artigo todas as informações óbvias das aulas de biologia da 5ª série, basta ter mais de dois neurônios para entender que homens têm corações e pulmões maiores, maior capacidade cardiorrespiratória, maior oxigenação sanguínea devido à maior produção de glóbulos vermelhos, fibras mais rápidas, densidade óssea superior… Homens são biologicamente diferentes de mulheres. E não há nada de controverso ou polêmico nisso. Simples assim. Mas parece que o mundo, depois de passar por duas grandes guerras, decidiu entrar de vez numa guerra contra a ciência. E, nesta semana, mais uma vez aplaudindo um homem biológico batendo recordes e vencendo títulos em uma competição feminina. Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e sagrou-se “campeã” (com aspas mesmo) da liga universitária norte-americana (NCAA) foi o assunto da semana. Até 2019, Lia era William e competia com os homens. Antes de se tornar a número 1 entre as mulheres, no ranking com os rapazes era o número 462 entre 500 nadadores.

Até 2019, Lia era William e competia com os homens -  Foto: Reprodução

Durante esses anos, venho tentando trazer um pouco de racionalidade para o debate público. Essa invasão de homens biológicos nos esportes femininos não é apenas errada, é um ataque e um desrespeito inaceitável às mulheres que seguem à risca as políticas antidoping pela proteção do esporte limpo. A própria discussão é, em si, ultrajante e humilhante. O debate honesto sobre esse assunto não pode ser embasado na identidade social de um indivíduo, que, obviamente, deve sempre ser respeitada. Como as pessoas decidem viver suas vidas é uma questão de foro privado. Mas decisões sociais e particulares não criam direitos automáticos e imaginários. Esse assunto é sobre a clara exclusão de meninas e mulheres no esporte feminino, é sobre ciência e sobre identidade biológica, pilar sagrado e justo nos esportes. Esse assunto é sobre honestidade.

Hoje, no entanto, não focarei na parte física desse debate que engloba, entre tantas verdades chatas ao politicamente correto, políticas antidoping. Atletas trans, hoje competindo com mulheres, como Lia Thomas, Tiffany Abreu, Fallon Fox ou Alana McLaughlin, um ex-soldado das Forças Especiais do Exército norte-americano, não sabem o que acontece no universo feminino do esporte. Mulheres são muito mais policiadas dentro e fora de competições do que homens

Uma pequena gota a mais de testosterona em um corpo feminino pode significar uma enorme diferença, o caminho que separa o ouro da prata, a classificação da eliminação ou a glória do fracasso. 
As diversas vantagens que as mulheres trans possuem devido aos anos de exposição à testosterona desde a infância não são amenizadas ao manter a quantidade hormonal recomendada pelo Comitê Olímpico Internacional de até 10 nanomols/litro por 12 meses (mulheres têm em média entre 2,8 e 3,2 nanomols/litro). Não existe nenhuma pesquisa que possa comprovar que a supressão hormonal nesse período possa reverter todas as características físicas superiores da genética masculina depois de passar 20 ou 30 anos de exposição a altas doses de testosterona. Ou se é possível, sequer, reverter isso com anos sem o hormônio masculino.

A guerra, no entanto, não foi declarada apenas à ciência ou às mulheres no esporte. O objetivo de toda essa agenda nefasta que inclui revisionismos históricos, derrubada de estátuas e a vida baseada em “construções sociais” não é “proteger” as minorias ou sequer as pessoas trans, mas destruir a própria ideia de conhecimento objetivo. Se até a natureza biológica do ser humano é negada, tudo, e absolutamente tudo pode ser negado. Esse é o maior objetivo desse “movimento revolucionário”. Todo e qualquer processo revolucionário apresenta inicialmente uma fase de desestabilização da sociedade, para em seguida impor uma nova ordem despótica. Se hoje os revolucionários prometem mais “direitos” às “minorias”, na sequência das páginas deste enredo as mesmas minorias serão descartadas, como mostra a própria história. E essa guerra foi declarada de vários frontes.

Nesta semana, aqui nos Estados Unidos, no Comitê Judiciário do Senado norte-americano, aconteceu a sabatina de Ketanji Jackson, a indicada de Joe Biden à Suprema Corte. 
A senadora Marsha Blackburn, do Tennessee, perguntou a Jackson o que deveria ter sido a pergunta mais fácil já feita em uma sabatina para uma das cadeiras da famosa SCOTUS: “Você pode definir o que é uma mulher?”. Nomeada publicamente por Biden por ser negra e mulher, imagine como Jackson deve ter ficado aliviada ao ouvir uma pergunta tão banal. Nada de casos históricos ou jurisprudências obscuras e precedentes do século passado da Corte. Tudo o que os republicanos querem é uma recapitulação de um dos primeiros capítulos de Biologia: O que é uma mulher.

Ketanji Jackson, uma juíza de Cortes inferiores famosa por aplicar penas bem menores a criminosos, inclusive pedófilos, poderia ter dito com incredulidade: “Senadora, essa é uma pergunta simples que qualquer estudante do ensino médio pode responder. Uma mulher é um ser humano com dois cromossomos X e isso é facilmente detectável em um exame de sangue. As mulheres têm pélvis mais largas, estruturas ósseas diferentes das dos homens e genitália muito diferente. Geralmente, é bastante óbvio que são mulheres, só de olhar para elas. As mulheres têm genética diferente porque somos projetadas para fazer coisas diferentes. A natureza é real. As mulheres menstruam, engravidam, dão à luz e depois amamentam. Os homens não fazem essas coisas porque eles não podem. Joe Biden me nomeou para a Suprema Corte porque sou mulher. O presidente sabe exatamente o que é uma mulher. Se ele não soubesse, não teria me escolhido.”

Teria sido fantástico se ela tivesse dito isso. No entanto, Ketanji Jackson disse que não poderia fornecer uma definição sobre o que era uma mulher porque “não era bióloga”. Jackson, uma indicada à Corte mais importante dos Estados Unidos da América, respondeu sem o menor constrangimento que, por não ser bióloga, não poderia dizer o que é uma mulher. Mas a verdade é que não faria a menor diferença se ela fosse bióloga (ou qualquer pessoa que queira enfiar em nossa goela abaixo que atletas femininas trans não são homens), porque ninguém no Partido Democrata, no Psol, PT ou na cega militância LGBT se importa de verdade com o que os biólogos pensam sobre sexo biológico. Os biólogos foram banidos junto com os Pais Fundadores da América, com todas as estátuas de heróis do passado e com a liberdade de expressão.

Em 2022, depois de ouvirmos por dois anos “Ciência, ciência, ciência!”, o poder da ciência e da literatura humana desmorona à luz do dia diante do lobby trans. Até uma indicada para a Suprema Corte norte-americana, mesmo com todas as suas credenciais acadêmicas, tem a cara de pau de mostrar seu pedágio lobista e diz, sem o menor constrangimento, que não sabe o que é uma mulher porque não é bióloga. O mais curioso e surreal disso tudo é que, se voltarmos na sabatina de Brett Kavanaugh, uma das nomeações de Donald Trump para a Suprema Corte e acusado de última hora de um suposto assédio sexual quando ainda estava no High School, lembramos que fomos bombardeados com o mantra de que devemos acreditar cegamente em todas as mulheres, independentemente de estarem ou não dizendo a verdade. Elas são mulheres, portanto, em nome da justiça social, devemos simplesmente aceitar o que elas dizem. Como Kamala Harris afirmou certa vez: “A palavra de uma mulher é como uma declaração juramentada”.

O “debate” sobre transgenerismo é definido pela censura, fazendo você calar a boca e não permitindo que você perceba o óbvio

Joe Biden, ainda nas primárias democratas em 2020, rechaçou que há diferenças entre homens e mulheres: “Nós, de fato, temos de mudar fundamentalmente a cultura, a cultura de como as mulheres são tratadas. Nenhum homem tem o direito de levantar a mão para uma mulher com raiva, a não ser em autodefesa, e isso raramente ocorre. Por isso, temos de mudar a cultura”. Até o estranho e inepto Joe Biden sabe que homens e mulheres não são iguais. Não estamos dizendo que um é moralmente melhor que o outro. Somos moralmente iguais, mas somos diferentes nos níveis mais profundos, começando pela biologia. Todos nós crescemos sabendo disso, mas agora a turba alimentada pelos jacobinos LGBTQTVBGRTYWXCFRET+++++ está mandando fingir o contrário, negar a natureza e suprimir seus instintos mais básicos e valiosos de proteção às mulheres. Estão nos dizendo que não temos o direito de ficar chateadas quando um homem biológico apanha de uma mulher trans, seja num bar, seja num ringue ou numa competição desleal na piscina. Estamos prontos para suprimir esses instintos? Estamos prontos para viver em uma sociedade que não reconhecerá as mulheres? Estamos prontos para sermos colocados em mais uma — depois de dois eternos anos na pandemia! — espiral de silêncio? Não fale, não questione, não pergunte — ou terá a cabeça degolada pela turma “love is love”.

O esporte feminino está sendo desfigurado a passos largos. Por mais que eu tenha me impressionado com tamanha repercussão positiva por parte do público nesta semana com o caso de Lia Thomas, a lei do silêncio continua imperando entre jogadoras, nadadoras e atletas femininas. Mas o perigo dessa agenda vai além das fraudes no esporte feminino: o que acontecerá com os sistemas judiciários se fingirmos que homens e mulheres são exatamente iguais, que são meras “construções sociais”? A afirmação da indicada de Biden à Suprema Corte de que não podemos dizer quem é homem e quem é mulher é um sintoma da transformação da sociedade pela perigosa agenda identitária. Em um futuro não muito distante, a maneira como administramos a Justiça também será transformada, começando com as leis antidiscriminação. Se não podemos dizer com certeza quem é uma mulher, como vamos aplicar a Lei Maria da Penha ou todas as medidas de proteção contra violência doméstica, estupros e assédios? Nos Estados Unidos, o Título IX, uma lei dos anos 1970 que proíbe a discriminação sexual em escolas e universidades, está sendo usado hoje por meninos biológicos que “se sentem” como meninas. Se não usamos o sexo biológico como um aferidor justo, como podemos evitar a discriminação com base no sexo biológico?

O objetivo do movimento trans não é convencer ninguém de que a biologia não é real. Isso seria impossível de ser realizado. Qualquer um soaria ridículo se tentasse articular isso, muito menos explicar. O objetivo desse movimento é muito diferente. A questão central é fazer com que todos nós repitamos uma mentira, algo que sabemos perfeitamente que não é verdade, fitando assustados a guilhotina acima de nossos pescoços. “Sim, Lia Thomas é uma mulher que ganhou a competição de natação porque treinou mais do que as outras garotas. Lia Thomas mereceu vencer. Lia Thomas é incrível e sua vitória não foi trapaça. Não notamos também que seu corpo de homem continua com todas as características intactas.” Pronto. Ufa… Dessa vez não perdemos o pescoço.

E é esse mantra que exigem que repitamos, não porque eles se importam com Lia Thomas, com Tiffany, Fallon Fox ou qualquer outra pessoa trans. Eles não se importam, porque, se importassem, pensariam duas vezes antes de expor essas mulheres trans e a própria comunidade ao ridículo. Fazer com que todos nós finjamos acreditar em algo que não acreditamos é o único objetivo, porque, se eles podem fazer com que acreditemos em algo que sabemos que é falso, eles venceram. Eles controlam o seu e o meu cérebro.

Então, toda essa insanidade negacionista não é sobre pessoas trans. É sobre todos nós, e eles apostaram alto. E é exatamente por isso que a censura é tão intensa. O “debate” sobre transgenerismo é definido pela censura, fazendo você calar a boca e não permitindo que você perceba o óbvio. Quando você menos perceber, você já entrou na espiral de silêncio imposta por eles. Não há nenhuma tentativa de persuadir nenhum de nós por argumentos válidos em uma discussão com o mínimo de honestidade. Não há nenhuma ideia baseada em fatos. Você não pode responder: “Mas então os homens podem se tornar mulheres apenas desejando ser mulheres?”. Isso não é permitido e, se fosse, jamais responderiam. Só nosso silêncio e as boquinhas fechadas importam. O primeiro movimento sempre é a censura e o segundo movimento, inevitavelmente, é a punição. Resolveu falar? Cabeças no chão, contas de redes sociais suspensas, perseguição virtual, cancelamentos…

Mas ainda há enorme esperança nesse novo mundo orwelliano em pessoas como Caitlyn Jenner, ex-atleta e campeão olímpico de decatlo masculino como Bruce Jenner. Jenner se identificou como mulher trans em 2015 e é veementemente contra homens biológicos competindo com mulheres no esporte feminino. Recentemente, ela disse em um vídeo que esse assunto é apenas uma questão de justiça: “Sou contra meninos biológicos que são trans poderem competir com garotas. Simplesmente não é justo e nós temos de proteger o esporte feminino nas escolas”. Essa semana, Caitlyn declarou que a vitória de Lia Thomas não é justa, que o corpo da nadadora é claramente o corpo de um homem que passou por toda a puberdade envolto em testosterona. Claro que Jenner foi devorada pelo tal feminismo que jura por todos os santos proteger e lutar pelas mulheres.

Há uma frase atribuída a Voltaire que diz que quem pode fazer você acreditar em absurdos pode fazer você cometer atrocidades. Um homem não pode se tornar uma mulher diminuindo sua testosterona. Nossos direitos não devem — e não vão — terminar onde os sentimentos de alguns começam.

Leia também “A hipocrisia da cultura do cancelamento”

 Saber mais, leia: o que é uma mulher

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O calvário de uma mãe para sepultar o filho



Rapaz morreu em um presídio. Equipe do GLOBO acompanhou o périplo da mãe dele por cinco dias





Descaso, burocracia e corrupção - O calvário  para sepultar o filho morto em presídio do Rio

Com um corpo médico incapaz de atender uma população carcerária crescente – apenas 56 profissionais para 50 mil prisioneiros espalhados pelo estado –, dobrou em três anos o número de presos mortos no sistema penitenciário fluminense. Um dos 230 óbitos registrados este ano (até o momento) foi o de William, mineiro de 29 anos, morto por tuberculose, doença que ele pode ter contraído na prisão. Acompanhamos o drama de sua mãe, que enfrentou descaso, burocracia e corrupção para enterrar o filho.

Sexta-feira: número desconhecido

O celular toca, mas a dona de casa Isa Maria dos Santos, de 51 anos, está ocupada na cozinha. É sexta-feira, 17 de novembro, hora do almoço. Enquanto serve o prato de Marcelinho, seu filho caçula, pede ao marido para ver quem é: número desconhecido. Do outro lado da linha, um homem se apresenta como Breno, “funcionário do serviço social do presídio Ary Franco”. Em poucas palavras, informa que William Carvalho dos Santos, preso desde julho, acusado pelo roubo de um celular na Praia de Icaraí, em Niterói, morreu na noite anterior, após passar mal e ser levado para a UPA do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, a 25 quilômetros de distância do Ary Franco.

“Como ele morreu?", quer saber Marcelo, padrasto de William. O homem não diz – dá o número da UPA e se despede. Isa emudece ao receber de Marcelo a confirmação do que acabara de ouvir: seu primeiro filho, que veio com ela de Andrelândia, cidade mineira de 12 mil habitantes, está morto. O telefonema dá início a um calvário na vida da mãe. Naquela mesma sexta-feira, ela telefona diversas vezes para a UPA de Gericinó até ser atendida, no fim da noite. Um funcionário da equipe médica conta que o corpo está no local, mas que seria logo transferido para o Instituto Médico-Legal de Campo Grande. Diz mais: que William chegou à unidade sem vida, ao contrário do que o servidor do Ary Franco informou mais cedo.

Sábado: família vem de Minas  

                           William ao ser preso em 2014 - Reprodução


William tinha 29 anos. Era negro, alto e forte como o avô materno, Luiz Carlos dos Santos, de 75 anos, que sempre se divertiu com as graças do neto. No começo da adolescência, William voltou a morar em Andrelândia com o avô, tios e primos. Quis saber nessa época quem era seu pai – que não o assumiu quando Isa, uma mulher simples e de olhar bondoso, engravidou – e pediu ao padrinho que os apresentasse. Ele tentou marcar um encontro, mas o pai não apareceu. - William sentiu muito. Ele queria ter um pai - lembra sua mãe.

Assim que soube da repentina morte do neto, seu Luiz Carlos arrumou uma pequena mala com algumas peças de roupa. Vieram com ele, de carro, três primos de William. Cinco horas de estrada mais tarde, a família se reunia na casa de Isa, no subúrbio de Niterói. O corpo ainda não havia sido levado para o IML de Campo Grande. Isa e Marcelo ligavam para o local de hora em hora, às vezes em intervalos menores, perguntando a todo momento se o corpo já havia sido transferido para lá. A resposta era sempre negativa. Se não estava no IML, onde estaria?


Domingo: um corpo esquecido  
 Pouco depois das 8h, Isa e seu marido entram em um ônibus da linha 484 (Alcântara – Niterói) e, depois, vão de barca até a Praça Quinze. Pedem ajuda ao plantão judiciário do Tribunal de Justiça fluminense, onde são atendidos pela defensora pública Juliana Naliato. Na tentativa de ajudá-los, emite ofícios para diversos órgãos pedindo urgência no caso, além de um enterro gratuito para William.


Isa e Marcelo saem do plantão às 13h e vão para a 34ª DP (Bangu), a 50 quilômetros dali. O inspetor que os atende encontra o registro de ocorrência da morte de William, feito por um servidor da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), e percebe um erro: seu colega, que havia feito o registro, dois dias antes, esqueceu de pedir a remoção do corpo. Isa volta para casa no fim da tarde com um punhado de papéis carimbados pela defensora pública – documentos que ela não compreende exatamente o que são – e o coração pesado como nunca. Esqueceram seu filho numa geladeira de Gericinó.


Segunda-feira: como ele morreu? 
 

Galeria do presídio Ary Franco, em Água Santa, considerado o pior cárcere do Rio - Daniel Marenco m 16/12/2015 / Agência O Globo


O dia mal amanhece e já é hora de sair. Por telefone, a família de William finalmente confirma a chegada do corpo ao IML. Eles pegam dois ônibus, uma barca e, duas horas de trajeto depois, chegam ao destino. Com os ofícios de gratuidade em mãos, Isa vê pessoas serem cobradas para liberar os corpos. É informada de que ela também precisará desembolsar R$ 150 para tirar o corpo de seu filho daquele lugar, mas não naquele momento. É preciso voltar ao plantão judiciário do Tribunal de Justiça para saber em qual cemitério será o enterro gratuito. Como a família prefere levar o corpo para Niterói, escolhe-se o Cemitério Maruí, fundado em 1855, no Barreto. Às 19h30m, Isa e Marcelo voltam para casa exaustos.  - Deus nos ajude amanhã - diz a mãe, prevendo dificuldade antes de passar mais uma noite em claro. 

Até aquele momento, Isa não sabe como o filho morreu. Não falava com ele há quatro meses, desde que William telefonou de dentro do presídio, usando o celular de um colega, para avisar à mãe que estava preso. Suspeita que ele tenha sido vítima da tuberculose diagnosticada em fevereiro, menos de dois meses após deixar o mesmo presídio Ary Franco, considerado o pior cárcere do Rio, infestado de ratos, morcegos e baratas. É possível que ele tenha se contaminado no local.

Marcelo conta que o enteado conseguiu um emprego como faxineiro de um condomínio residencial em fase de acabamento. Em seu Facebook, as últimas fotos mostram um homem orgulhoso de si por estar trabalhando, sempre sorrindo com o uniforme de sua empresa. No começo de junho, a firma perdeu o contrato de limpeza e dispensou William.

Sua vida mudou: ele, que dormia no sofá da sala, começou a sair e não avisar à mãe aonde ia. Dizia que estava namorando, mas nunca apresentou a namorada a ninguém. No dia 29 de junho, caminhava na Avenida Sete de Setembro com uma mochila nas costas e um guarda-chuva na mão. Uma viatura policial o achou suspeito. William foi revistado e, com ele, os policiais encontraram um celular roubado e um cordão. Os autores da prisão divulgaram fotos de William sob poder do estado em uma página do Facebook: "Preso ladrão de Icaraí", dizia a postagem.

William foi levado para a 77ª DP (Icaraí), a mesma de quatro anos antes, quando foi preso pela primeira vez ao ser reconhecido na rua por uma mulher que teve o celular roubado.  – Ele estava tentando mudar, a gente via que ele se esforçava, mas não conseguia. Se continuasse trabalhando acredito que não teria voltado a roubar – lamenta Marcelo.

Ao acordar, Isa vai ao cemitério. Apesar do pedido de gratuidade da defensora, é informada que somente o velório e o sepultamento são de graça.  - Apesar da lei de gratuidade, o município não está arcando com essas despesas há algum tempo. Tem que ser particular - diz o servidor que a atendeu.  Chamam uma funerária pequena que funciona perto do cemitério e cobra R$ 650. Cansada e sem poder esperar mais um dia para enterrar o filho, ela paga o valor, ajudada por parentes e amigos. A empresa buscaria o corpo no IML de Campo Grande ao meio-dia, na companhia da mãe.


Mas o funcionário Luiz Fernando deixa Isa em casa alegando que precisava antes remover um cadáver em Tribobó, São Gonçalo. O carro, um modelo Palio Weekend improvisado, com o banco rebaixado para caber o caixão, foi buscá-la somente às 15h - uma hora antes do horário agendado para o enterro. Percorrer os 70 quilômetros de distância até o IML foi desesperador. A Avenida Brasil estava parada. A mãe só chegou ao instituto às 17h. Antes de ir embora, o homem da funerária pede à Isa R$ 150, entra em uma sala e volta de mãos vazias. A mãe pede um recibo: "Vai me complicar", disse Luiz Fernando.

Em agosto, uma operação no IML de Campo Grande parecia ter colocado fim a um esquema de corrupção que lucrava R$ 150 mil por mês, segundo investigação do Ministério Público estadual e da Corregedoria da Polícia Civil. Foram presos na ocasião o vereador Gilberto de Oliveira Lima (PMN), o então diretor do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), Sérgio William Silva Miana, e o comissário Franklin Silva da Paz, que chefiava a unidade – os dois primeiros já a dirigiram. Os investigadores descobriram que o “pedágio da morte” existia desde 2014.

A informação de que o esquema continua é confirmada pelo dono de uma funerária: “Lá é assim que funciona: às vezes cobram R$ 150, outras vezes R$ 200”.  – Achei que aquela ação fosse acabar com o esquema. É a miséria humana em estado bruto, que tem um braço junto às funerárias e junto ao setor médico também. As investigações continuam, os três permanecem presos. Felizmente as prisões têm sido mantidas pelos tribunais superiores. Dia 4 de dezembro, haverá a sessão de julgamento sobre este caso, para decidir se a denúncia será recebida ou rejeitada e se a prisão deles será mantida – afirma o promotor de Justiça Túlio Caiban Bruno, responsável pelo caso.

Em nota, a Polícia Civil afirma que trocou a direção do posto de Campo Grande do IML por determinação da direção do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica (DGPTC). A nota afirma ainda que "por ordem expressa (ordem de serviço) ficou proibida a entrada de funcionários de funerárias (agenciadores) no posto, sob pena de crime de desobediência".
"Sendo certo que o delegado titular de Campo Grande está ciente, e se colocou à disposição para encaminhar policiais da equipe dele para o local, em caso de descumprimento", diz a nota, que pede ainda que a pessoa que pagou entre em contato "a fim de formalizar tal denúncia, pois estará nos prestando um serviço".

A nota diz ainda que foi determinado que o diretor do posto "identifique o corpo oriundo da SEAP, liberado na semana passada, para que possamos ouvir a pessoa que fez a liberação, bem como o parente do morto".
Quando Isa chega ao cemitério com o corpo do filho, passa das 19h. Cinco coveiros foram obrigados a esperar, por ordem do administrador. Ele mesmo ficou até mais tarde no serviço, pois o cemitério fecha às 18h. Mas Isa e sua família precisariam ter mais paciência. Por causa do atraso da funerária, o cartório de Bangu já estava fechado quando o corpo foi liberado. Ela não teve tempo de emitir a certidão de óbito obrigatória para realizar o enterro. A mãe desabou ao ser informada pelo administrador de que não haveria enterro aquela noite. O corpo de William passaria a madrugada na capela H, com um ventilador barulhento ligado o tempo todo sobre o caixão para manter a sala minimamente resfriada.


Doze pessoas que amavam William estão ao redor do seu corpo na capela H. Isa chega depois, pois teve que ir ao cartório de Bangu para obter a certidão de óbito. É uma reunião silenciosa de mulheres e homens negros, trabalhadores, religiosos. O velório é feito com caixão aberto. Apesar da morte ter sido há seis dias, o rosto tem boa aparência. Não está tão magro nem tão pálido quanto se poderia supor, e os músculos da face estão relaxados. A família sente um inesperado conforto ao vê-lo assim: bonito. William estava em liberdade condicional. Apenas três dias antes de ser preso novamente, compareceu em juízo para assinar seu nome. – Sinto que fracassei – desabafa Marcelo durante o velório, chorando muito, antes de ser abraçado pela família.


Segundo o defensor público Marlon Barcellos, coordenador do Nuspen (Núcleo do Sistema Penitenciário), não faltam medicamentos para tuberculose nos presídios do Rio – faltam médicos.

Em resposta ao GLOBO, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que são 56 médicos trabalhando no sistema. O promotor acha pouco para 50 mil presos, o que corresponderia a 1 médico para cada 892 presos. Um levantamento feito em 2015 pelos conselhos Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e Federal de Medicina (CFM) aponta que a média para o país é de 2,11 médicos para cada grupo de mil pessoas.

Na mesma resposta, a Seap disse que a tuberculose de William não foi diagnosticada, mas o laudo do IML aponta infecção pulmonar como causa da morte.  – Este ano, já morreram 232 pessoas nas prisões do estado. Ano passado foram 254. Morre-se muito, de um modo geral. Há três anos morria menos da metade. Culpa da superlotação e da ineficiência do serviço médico. Quando um preso precisa de médico, precisa ser levado para a UPA de Gericinó, mas faltam motoristas e até carros para fazer esse transporte. Quando um preso está em estado grave, quem decide se ele será ou não levado ao médico é o agente penitenciário. Não é um critério médico – afirma o defensor.


Segundo ele, um preso pode demorar até três semanas para conseguir ser transportado, uma vez feito o pedido:  – Pode ter havido omissão, nunca vamos saber. Ele pode ter morrido no Ary Franco, onde já morreram 15 este ano, e foi levado à UPA para confirmar o óbito, ou pode ter morrido no caminho, depois de ter havido negligência. Uma coisa é certa: as unidades prisionais tentam se livrar do corpo para se livrar da sindicância que é feita, ou deveria ser feita, após a morte de um preso.

A Seap confirma que, nos presídios fluminenses, o transporte dos internos para a unidade médica de Gericinó é controlado pelos agentes penitenciários, uma vez tendo sido acionados pelos outros presos quando um deles está passando mal. Mas, segundo a assessoria de imprensa da pasta, o serviço é imediato: assim que um preso necessita de socorro, uma viatura do Serviço de Operações Especiais (SOE) é convocada pelos agentes para levá-lo. A secretaria nega que William tenha ficado muito tempo à espera de atendimento médico.  Um coveiro se aproxima para levar o corpo de William. Quando o caixão é fechado, Isa desaba. “Vai com Deus, filho”, diz, enquanto o corpo é levado para longe dela. Pouco depois das 12h, o caixão é colocado na gaveta 337 e sua entrada é vedada com um bloco de concreto. Seis dias após a morte, Isa consegue enterrar seu filho.

O Globo

 

 


·