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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O calvário de uma mãe para sepultar o filho



Rapaz morreu em um presídio. Equipe do GLOBO acompanhou o périplo da mãe dele por cinco dias





Descaso, burocracia e corrupção - O calvário  para sepultar o filho morto em presídio do Rio

Com um corpo médico incapaz de atender uma população carcerária crescente – apenas 56 profissionais para 50 mil prisioneiros espalhados pelo estado –, dobrou em três anos o número de presos mortos no sistema penitenciário fluminense. Um dos 230 óbitos registrados este ano (até o momento) foi o de William, mineiro de 29 anos, morto por tuberculose, doença que ele pode ter contraído na prisão. Acompanhamos o drama de sua mãe, que enfrentou descaso, burocracia e corrupção para enterrar o filho.

Sexta-feira: número desconhecido

O celular toca, mas a dona de casa Isa Maria dos Santos, de 51 anos, está ocupada na cozinha. É sexta-feira, 17 de novembro, hora do almoço. Enquanto serve o prato de Marcelinho, seu filho caçula, pede ao marido para ver quem é: número desconhecido. Do outro lado da linha, um homem se apresenta como Breno, “funcionário do serviço social do presídio Ary Franco”. Em poucas palavras, informa que William Carvalho dos Santos, preso desde julho, acusado pelo roubo de um celular na Praia de Icaraí, em Niterói, morreu na noite anterior, após passar mal e ser levado para a UPA do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, a 25 quilômetros de distância do Ary Franco.

“Como ele morreu?", quer saber Marcelo, padrasto de William. O homem não diz – dá o número da UPA e se despede. Isa emudece ao receber de Marcelo a confirmação do que acabara de ouvir: seu primeiro filho, que veio com ela de Andrelândia, cidade mineira de 12 mil habitantes, está morto. O telefonema dá início a um calvário na vida da mãe. Naquela mesma sexta-feira, ela telefona diversas vezes para a UPA de Gericinó até ser atendida, no fim da noite. Um funcionário da equipe médica conta que o corpo está no local, mas que seria logo transferido para o Instituto Médico-Legal de Campo Grande. Diz mais: que William chegou à unidade sem vida, ao contrário do que o servidor do Ary Franco informou mais cedo.

Sábado: família vem de Minas  

                           William ao ser preso em 2014 - Reprodução


William tinha 29 anos. Era negro, alto e forte como o avô materno, Luiz Carlos dos Santos, de 75 anos, que sempre se divertiu com as graças do neto. No começo da adolescência, William voltou a morar em Andrelândia com o avô, tios e primos. Quis saber nessa época quem era seu pai – que não o assumiu quando Isa, uma mulher simples e de olhar bondoso, engravidou – e pediu ao padrinho que os apresentasse. Ele tentou marcar um encontro, mas o pai não apareceu. - William sentiu muito. Ele queria ter um pai - lembra sua mãe.

Assim que soube da repentina morte do neto, seu Luiz Carlos arrumou uma pequena mala com algumas peças de roupa. Vieram com ele, de carro, três primos de William. Cinco horas de estrada mais tarde, a família se reunia na casa de Isa, no subúrbio de Niterói. O corpo ainda não havia sido levado para o IML de Campo Grande. Isa e Marcelo ligavam para o local de hora em hora, às vezes em intervalos menores, perguntando a todo momento se o corpo já havia sido transferido para lá. A resposta era sempre negativa. Se não estava no IML, onde estaria?


Domingo: um corpo esquecido  
 Pouco depois das 8h, Isa e seu marido entram em um ônibus da linha 484 (Alcântara – Niterói) e, depois, vão de barca até a Praça Quinze. Pedem ajuda ao plantão judiciário do Tribunal de Justiça fluminense, onde são atendidos pela defensora pública Juliana Naliato. Na tentativa de ajudá-los, emite ofícios para diversos órgãos pedindo urgência no caso, além de um enterro gratuito para William.


Isa e Marcelo saem do plantão às 13h e vão para a 34ª DP (Bangu), a 50 quilômetros dali. O inspetor que os atende encontra o registro de ocorrência da morte de William, feito por um servidor da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), e percebe um erro: seu colega, que havia feito o registro, dois dias antes, esqueceu de pedir a remoção do corpo. Isa volta para casa no fim da tarde com um punhado de papéis carimbados pela defensora pública – documentos que ela não compreende exatamente o que são – e o coração pesado como nunca. Esqueceram seu filho numa geladeira de Gericinó.


Segunda-feira: como ele morreu? 
 

Galeria do presídio Ary Franco, em Água Santa, considerado o pior cárcere do Rio - Daniel Marenco m 16/12/2015 / Agência O Globo


O dia mal amanhece e já é hora de sair. Por telefone, a família de William finalmente confirma a chegada do corpo ao IML. Eles pegam dois ônibus, uma barca e, duas horas de trajeto depois, chegam ao destino. Com os ofícios de gratuidade em mãos, Isa vê pessoas serem cobradas para liberar os corpos. É informada de que ela também precisará desembolsar R$ 150 para tirar o corpo de seu filho daquele lugar, mas não naquele momento. É preciso voltar ao plantão judiciário do Tribunal de Justiça para saber em qual cemitério será o enterro gratuito. Como a família prefere levar o corpo para Niterói, escolhe-se o Cemitério Maruí, fundado em 1855, no Barreto. Às 19h30m, Isa e Marcelo voltam para casa exaustos.  - Deus nos ajude amanhã - diz a mãe, prevendo dificuldade antes de passar mais uma noite em claro. 

Até aquele momento, Isa não sabe como o filho morreu. Não falava com ele há quatro meses, desde que William telefonou de dentro do presídio, usando o celular de um colega, para avisar à mãe que estava preso. Suspeita que ele tenha sido vítima da tuberculose diagnosticada em fevereiro, menos de dois meses após deixar o mesmo presídio Ary Franco, considerado o pior cárcere do Rio, infestado de ratos, morcegos e baratas. É possível que ele tenha se contaminado no local.

Marcelo conta que o enteado conseguiu um emprego como faxineiro de um condomínio residencial em fase de acabamento. Em seu Facebook, as últimas fotos mostram um homem orgulhoso de si por estar trabalhando, sempre sorrindo com o uniforme de sua empresa. No começo de junho, a firma perdeu o contrato de limpeza e dispensou William.

Sua vida mudou: ele, que dormia no sofá da sala, começou a sair e não avisar à mãe aonde ia. Dizia que estava namorando, mas nunca apresentou a namorada a ninguém. No dia 29 de junho, caminhava na Avenida Sete de Setembro com uma mochila nas costas e um guarda-chuva na mão. Uma viatura policial o achou suspeito. William foi revistado e, com ele, os policiais encontraram um celular roubado e um cordão. Os autores da prisão divulgaram fotos de William sob poder do estado em uma página do Facebook: "Preso ladrão de Icaraí", dizia a postagem.

William foi levado para a 77ª DP (Icaraí), a mesma de quatro anos antes, quando foi preso pela primeira vez ao ser reconhecido na rua por uma mulher que teve o celular roubado.  – Ele estava tentando mudar, a gente via que ele se esforçava, mas não conseguia. Se continuasse trabalhando acredito que não teria voltado a roubar – lamenta Marcelo.

Ao acordar, Isa vai ao cemitério. Apesar do pedido de gratuidade da defensora, é informada que somente o velório e o sepultamento são de graça.  - Apesar da lei de gratuidade, o município não está arcando com essas despesas há algum tempo. Tem que ser particular - diz o servidor que a atendeu.  Chamam uma funerária pequena que funciona perto do cemitério e cobra R$ 650. Cansada e sem poder esperar mais um dia para enterrar o filho, ela paga o valor, ajudada por parentes e amigos. A empresa buscaria o corpo no IML de Campo Grande ao meio-dia, na companhia da mãe.


Mas o funcionário Luiz Fernando deixa Isa em casa alegando que precisava antes remover um cadáver em Tribobó, São Gonçalo. O carro, um modelo Palio Weekend improvisado, com o banco rebaixado para caber o caixão, foi buscá-la somente às 15h - uma hora antes do horário agendado para o enterro. Percorrer os 70 quilômetros de distância até o IML foi desesperador. A Avenida Brasil estava parada. A mãe só chegou ao instituto às 17h. Antes de ir embora, o homem da funerária pede à Isa R$ 150, entra em uma sala e volta de mãos vazias. A mãe pede um recibo: "Vai me complicar", disse Luiz Fernando.

Em agosto, uma operação no IML de Campo Grande parecia ter colocado fim a um esquema de corrupção que lucrava R$ 150 mil por mês, segundo investigação do Ministério Público estadual e da Corregedoria da Polícia Civil. Foram presos na ocasião o vereador Gilberto de Oliveira Lima (PMN), o então diretor do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), Sérgio William Silva Miana, e o comissário Franklin Silva da Paz, que chefiava a unidade – os dois primeiros já a dirigiram. Os investigadores descobriram que o “pedágio da morte” existia desde 2014.

A informação de que o esquema continua é confirmada pelo dono de uma funerária: “Lá é assim que funciona: às vezes cobram R$ 150, outras vezes R$ 200”.  – Achei que aquela ação fosse acabar com o esquema. É a miséria humana em estado bruto, que tem um braço junto às funerárias e junto ao setor médico também. As investigações continuam, os três permanecem presos. Felizmente as prisões têm sido mantidas pelos tribunais superiores. Dia 4 de dezembro, haverá a sessão de julgamento sobre este caso, para decidir se a denúncia será recebida ou rejeitada e se a prisão deles será mantida – afirma o promotor de Justiça Túlio Caiban Bruno, responsável pelo caso.

Em nota, a Polícia Civil afirma que trocou a direção do posto de Campo Grande do IML por determinação da direção do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica (DGPTC). A nota afirma ainda que "por ordem expressa (ordem de serviço) ficou proibida a entrada de funcionários de funerárias (agenciadores) no posto, sob pena de crime de desobediência".
"Sendo certo que o delegado titular de Campo Grande está ciente, e se colocou à disposição para encaminhar policiais da equipe dele para o local, em caso de descumprimento", diz a nota, que pede ainda que a pessoa que pagou entre em contato "a fim de formalizar tal denúncia, pois estará nos prestando um serviço".

A nota diz ainda que foi determinado que o diretor do posto "identifique o corpo oriundo da SEAP, liberado na semana passada, para que possamos ouvir a pessoa que fez a liberação, bem como o parente do morto".
Quando Isa chega ao cemitério com o corpo do filho, passa das 19h. Cinco coveiros foram obrigados a esperar, por ordem do administrador. Ele mesmo ficou até mais tarde no serviço, pois o cemitério fecha às 18h. Mas Isa e sua família precisariam ter mais paciência. Por causa do atraso da funerária, o cartório de Bangu já estava fechado quando o corpo foi liberado. Ela não teve tempo de emitir a certidão de óbito obrigatória para realizar o enterro. A mãe desabou ao ser informada pelo administrador de que não haveria enterro aquela noite. O corpo de William passaria a madrugada na capela H, com um ventilador barulhento ligado o tempo todo sobre o caixão para manter a sala minimamente resfriada.


Doze pessoas que amavam William estão ao redor do seu corpo na capela H. Isa chega depois, pois teve que ir ao cartório de Bangu para obter a certidão de óbito. É uma reunião silenciosa de mulheres e homens negros, trabalhadores, religiosos. O velório é feito com caixão aberto. Apesar da morte ter sido há seis dias, o rosto tem boa aparência. Não está tão magro nem tão pálido quanto se poderia supor, e os músculos da face estão relaxados. A família sente um inesperado conforto ao vê-lo assim: bonito. William estava em liberdade condicional. Apenas três dias antes de ser preso novamente, compareceu em juízo para assinar seu nome. – Sinto que fracassei – desabafa Marcelo durante o velório, chorando muito, antes de ser abraçado pela família.


Segundo o defensor público Marlon Barcellos, coordenador do Nuspen (Núcleo do Sistema Penitenciário), não faltam medicamentos para tuberculose nos presídios do Rio – faltam médicos.

Em resposta ao GLOBO, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que são 56 médicos trabalhando no sistema. O promotor acha pouco para 50 mil presos, o que corresponderia a 1 médico para cada 892 presos. Um levantamento feito em 2015 pelos conselhos Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e Federal de Medicina (CFM) aponta que a média para o país é de 2,11 médicos para cada grupo de mil pessoas.

Na mesma resposta, a Seap disse que a tuberculose de William não foi diagnosticada, mas o laudo do IML aponta infecção pulmonar como causa da morte.  – Este ano, já morreram 232 pessoas nas prisões do estado. Ano passado foram 254. Morre-se muito, de um modo geral. Há três anos morria menos da metade. Culpa da superlotação e da ineficiência do serviço médico. Quando um preso precisa de médico, precisa ser levado para a UPA de Gericinó, mas faltam motoristas e até carros para fazer esse transporte. Quando um preso está em estado grave, quem decide se ele será ou não levado ao médico é o agente penitenciário. Não é um critério médico – afirma o defensor.


Segundo ele, um preso pode demorar até três semanas para conseguir ser transportado, uma vez feito o pedido:  – Pode ter havido omissão, nunca vamos saber. Ele pode ter morrido no Ary Franco, onde já morreram 15 este ano, e foi levado à UPA para confirmar o óbito, ou pode ter morrido no caminho, depois de ter havido negligência. Uma coisa é certa: as unidades prisionais tentam se livrar do corpo para se livrar da sindicância que é feita, ou deveria ser feita, após a morte de um preso.

A Seap confirma que, nos presídios fluminenses, o transporte dos internos para a unidade médica de Gericinó é controlado pelos agentes penitenciários, uma vez tendo sido acionados pelos outros presos quando um deles está passando mal. Mas, segundo a assessoria de imprensa da pasta, o serviço é imediato: assim que um preso necessita de socorro, uma viatura do Serviço de Operações Especiais (SOE) é convocada pelos agentes para levá-lo. A secretaria nega que William tenha ficado muito tempo à espera de atendimento médico.  Um coveiro se aproxima para levar o corpo de William. Quando o caixão é fechado, Isa desaba. “Vai com Deus, filho”, diz, enquanto o corpo é levado para longe dela. Pouco depois das 12h, o caixão é colocado na gaveta 337 e sua entrada é vedada com um bloco de concreto. Seis dias após a morte, Isa consegue enterrar seu filho.

O Globo

 

 


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