Rapaz morreu em um presídio. Equipe do GLOBO acompanhou o périplo da mãe dele por cinco dias
Descaso, burocracia e corrupção - O calvário para sepultar o filho morto em presídio do Rio
Com um
corpo médico incapaz de atender uma população carcerária crescente – apenas 56
profissionais para 50 mil prisioneiros espalhados pelo estado –, dobrou em três
anos o número de presos mortos no sistema penitenciário fluminense. Um dos 230
óbitos registrados este ano (até o momento) foi o de William, mineiro de 29
anos, morto por tuberculose, doença que ele pode ter contraído na prisão.
Acompanhamos o drama de sua mãe, que enfrentou descaso, burocracia e corrupção
para enterrar o filho.
Sexta-feira: número desconhecido
O celular
toca, mas a dona de casa Isa Maria dos Santos, de 51 anos, está ocupada na
cozinha. É sexta-feira, 17 de novembro, hora do almoço. Enquanto serve o prato
de Marcelinho, seu filho caçula, pede ao marido para ver quem é: número
desconhecido. Do outro lado da linha, um homem se apresenta como Breno,
“funcionário do serviço social do presídio Ary Franco”. Em poucas palavras,
informa que William Carvalho dos Santos, preso desde julho, acusado pelo roubo
de um celular na Praia de Icaraí, em Niterói, morreu na noite anterior, após
passar mal e ser levado para a UPA do Complexo Penitenciário de Gericinó, em
Bangu, a 25 quilômetros de distância do Ary Franco.
“Como ele
morreu?", quer saber Marcelo, padrasto de William. O homem não diz – dá o
número da UPA e se despede. Isa emudece ao receber de Marcelo a confirmação do
que acabara de ouvir: seu primeiro filho, que veio com ela de Andrelândia,
cidade mineira de 12 mil habitantes, está morto. O telefonema dá início a um
calvário na vida da mãe. Naquela mesma sexta-feira, ela telefona diversas vezes
para a UPA de Gericinó até ser atendida, no fim da noite. Um funcionário da
equipe médica conta que o corpo está no local, mas que seria logo transferido
para o Instituto Médico-Legal de Campo Grande. Diz mais: que William chegou à
unidade sem vida, ao contrário do que o servidor do Ary Franco informou mais
cedo.
William
ao ser preso em 2014 - Reprodução
William
tinha 29 anos. Era negro, alto e forte como o avô materno, Luiz Carlos dos
Santos, de 75 anos, que sempre se divertiu com as graças do neto. No começo da
adolescência, William voltou a morar em Andrelândia com o avô, tios e primos.
Quis saber nessa época quem era seu pai – que não o assumiu quando Isa, uma
mulher simples e de olhar bondoso, engravidou – e pediu ao padrinho que os
apresentasse. Ele tentou marcar um encontro, mas o pai não apareceu. - William
sentiu muito. Ele queria ter um pai - lembra sua mãe.
Assim que
soube da repentina morte do neto, seu Luiz Carlos arrumou uma pequena mala com
algumas peças de roupa. Vieram com ele, de carro, três primos de William. Cinco
horas de estrada mais tarde, a família se reunia na casa de Isa, no subúrbio de
Niterói. O corpo ainda não havia sido levado para o IML de Campo Grande. Isa e
Marcelo ligavam para o local de hora em hora, às vezes em intervalos menores,
perguntando a todo momento se o corpo já havia sido transferido para lá. A
resposta era sempre negativa. Se não estava no IML, onde estaria?
Domingo: um corpo esquecido
Pouco
depois das 8h, Isa e seu marido entram em um ônibus da linha 484 (Alcântara –
Niterói) e, depois, vão de barca até a Praça Quinze. Pedem ajuda ao plantão
judiciário do Tribunal de Justiça fluminense, onde são atendidos pela defensora
pública Juliana Naliato. Na tentativa de ajudá-los, emite ofícios para diversos
órgãos pedindo urgência no caso, além de um enterro gratuito para William.
Isa e
Marcelo saem do plantão às 13h e vão para a 34ª DP (Bangu), a 50 quilômetros
dali. O inspetor que os atende encontra o registro de ocorrência da morte de
William, feito por um servidor da Secretaria de Administração Penitenciária
(Seap), e percebe um erro: seu colega, que havia feito o registro, dois dias
antes, esqueceu de pedir a remoção do corpo. Isa volta para casa no fim da
tarde com um punhado de papéis carimbados pela defensora pública – documentos
que ela não compreende exatamente o que são – e o coração pesado como nunca.
Esqueceram seu filho numa geladeira de Gericinó.
Segunda-feira: como ele morreu?
Galeria
do presídio Ary Franco, em Água Santa, considerado o pior cárcere
do Rio - Daniel Marenco m 16/12/2015 / Agência O Globo
O dia mal
amanhece e já é hora de sair. Por telefone, a família de William finalmente
confirma a chegada do corpo ao IML. Eles pegam dois ônibus, uma barca e, duas
horas de trajeto depois, chegam ao destino. Com os ofícios de gratuidade em mãos,
Isa vê pessoas serem cobradas para liberar os corpos. É informada de que ela
também precisará desembolsar R$ 150 para tirar o corpo de seu filho daquele
lugar, mas não naquele momento. É preciso voltar ao plantão judiciário do
Tribunal de Justiça para saber em qual cemitério será o enterro gratuito. Como
a família prefere levar o corpo para Niterói, escolhe-se o Cemitério Maruí,
fundado em 1855, no Barreto. Às 19h30m, Isa e Marcelo voltam para casa
exaustos. - Deus
nos ajude amanhã - diz a mãe, prevendo dificuldade antes de passar mais uma
noite em claro.
Até
aquele momento, Isa não sabe como o filho morreu. Não falava com ele há quatro
meses, desde que William telefonou de dentro do presídio, usando o celular de
um colega, para avisar à mãe que estava preso. Suspeita que ele tenha sido
vítima da tuberculose diagnosticada em fevereiro, menos de dois meses após
deixar o mesmo presídio Ary Franco, considerado o pior cárcere do Rio,
infestado de ratos, morcegos e baratas. É possível que ele tenha se contaminado
no local.
Marcelo
conta que o enteado conseguiu um emprego como faxineiro de um condomínio
residencial em fase de acabamento. Em seu Facebook, as últimas fotos mostram um
homem orgulhoso de si por estar trabalhando, sempre sorrindo com o uniforme de
sua empresa. No começo de junho, a firma perdeu o contrato de limpeza e
dispensou William.
Sua vida
mudou: ele, que dormia no sofá da sala, começou a sair e não avisar à mãe aonde
ia. Dizia que estava namorando, mas nunca apresentou a namorada a ninguém. No
dia 29 de junho, caminhava na Avenida Sete de Setembro com uma mochila nas
costas e um guarda-chuva na mão. Uma viatura policial o achou suspeito. William
foi revistado e, com ele, os policiais encontraram um celular roubado e um
cordão. Os autores da prisão divulgaram fotos de William sob poder do estado em
uma página do Facebook: "Preso ladrão de Icaraí", dizia a postagem.
William
foi levado para a 77ª DP (Icaraí), a mesma de quatro anos antes, quando foi
preso pela primeira vez ao ser reconhecido na rua por uma mulher que teve o
celular roubado. – Ele
estava tentando mudar, a gente via que ele se esforçava, mas não conseguia. Se
continuasse trabalhando acredito que não teria voltado a roubar – lamenta
Marcelo.
Ao
acordar, Isa vai ao cemitério. Apesar do pedido de gratuidade da defensora, é
informada que somente o velório e o sepultamento são de graça. - Apesar
da lei de gratuidade, o município não está arcando com essas despesas há algum
tempo. Tem que ser particular - diz o servidor que a atendeu. Chamam
uma funerária pequena que funciona perto do cemitério e cobra R$ 650. Cansada e
sem poder esperar mais um dia para enterrar o filho, ela paga o valor, ajudada
por parentes e amigos. A empresa buscaria o corpo no IML de Campo Grande ao
meio-dia, na companhia da mãe.
Mas o
funcionário Luiz Fernando deixa Isa em casa alegando que precisava antes
remover um cadáver em Tribobó, São Gonçalo. O carro, um modelo Palio Weekend
improvisado, com o banco rebaixado para caber o caixão, foi buscá-la somente às
15h - uma hora antes do horário agendado para o enterro. Percorrer os 70
quilômetros de distância até o IML foi desesperador. A Avenida Brasil estava
parada. A mãe só chegou ao instituto às 17h. Antes de ir embora, o homem da
funerária pede à Isa R$ 150, entra em uma sala e volta de mãos vazias. A mãe
pede um recibo: "Vai me complicar", disse Luiz Fernando.
Em
agosto, uma operação no IML de Campo Grande parecia ter colocado fim a um esquema de corrupção que lucrava R$ 150 mil por
mês, segundo investigação do Ministério Público estadual e da Corregedoria da
Polícia Civil. Foram presos na ocasião o vereador Gilberto de Oliveira Lima (PMN),
o então diretor do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), Sérgio
William Silva Miana, e o comissário Franklin Silva da Paz, que chefiava a
unidade – os dois primeiros já a dirigiram. Os investigadores descobriram que o
“pedágio da morte” existia desde 2014.
A
informação de que o esquema continua é confirmada pelo dono de uma funerária:
“Lá é assim que funciona: às vezes cobram R$ 150, outras vezes R$ 200”. – Achei
que aquela ação fosse acabar com o esquema. É a miséria humana em estado bruto,
que tem um braço junto às funerárias e junto ao setor médico também. As
investigações continuam, os três permanecem presos. Felizmente as prisões têm
sido mantidas pelos tribunais superiores. Dia 4 de dezembro, haverá a sessão de
julgamento sobre este caso, para decidir se a denúncia será recebida ou
rejeitada e se a prisão deles será mantida – afirma o promotor de Justiça Túlio
Caiban Bruno, responsável pelo caso.
Em nota,
a Polícia Civil afirma que trocou a direção do posto de Campo Grande do IML por
determinação da direção do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica
(DGPTC). A nota afirma ainda que "por ordem expressa (ordem de serviço)
ficou proibida a entrada de funcionários de funerárias (agenciadores) no posto,
sob pena de crime de desobediência".
"Sendo
certo que o delegado titular de Campo Grande está ciente, e se colocou à
disposição para encaminhar policiais da equipe dele para o local, em caso de
descumprimento", diz a nota, que pede ainda que a pessoa que pagou entre
em contato "a fim de formalizar tal denúncia, pois estará nos prestando um
serviço".
A nota
diz ainda que foi determinado que o diretor do posto "identifique o corpo
oriundo da SEAP, liberado na semana passada, para que possamos ouvir a pessoa
que fez a liberação, bem como o parente do morto".
Quando
Isa chega ao cemitério com o corpo do filho, passa das 19h. Cinco coveiros
foram obrigados a esperar, por ordem do administrador. Ele mesmo ficou até mais
tarde no serviço, pois o cemitério fecha às 18h. Mas Isa e sua família
precisariam ter mais paciência. Por causa do atraso da funerária, o cartório de
Bangu já estava fechado quando o corpo foi liberado. Ela não teve tempo de
emitir a certidão de óbito obrigatória para realizar o enterro. A mãe desabou
ao ser informada pelo administrador de que não haveria enterro aquela noite. O
corpo de William passaria a madrugada na capela H, com um ventilador barulhento
ligado o tempo todo sobre o caixão para manter a sala minimamente resfriada.
Doze
pessoas que amavam William estão ao redor do seu corpo na capela H. Isa chega
depois, pois teve que ir ao cartório de Bangu para obter a certidão de óbito. É
uma reunião silenciosa de mulheres e homens negros, trabalhadores, religiosos.
O velório é feito com caixão aberto. Apesar da morte ter sido há seis dias, o
rosto tem boa aparência. Não está tão magro nem tão pálido quanto se poderia
supor, e os músculos da face estão relaxados. A família sente um inesperado
conforto ao vê-lo assim: bonito. William estava em liberdade condicional.
Apenas três dias antes de ser preso novamente, compareceu em juízo para assinar
seu nome. – Sinto
que fracassei – desabafa Marcelo durante o velório, chorando muito, antes de
ser abraçado pela família.
Segundo o
defensor público Marlon Barcellos, coordenador do Nuspen (Núcleo do Sistema
Penitenciário), não faltam medicamentos para tuberculose nos presídios do Rio –
faltam médicos.
Em
resposta ao GLOBO, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que são
56 médicos trabalhando no sistema. O promotor acha pouco para 50 mil presos, o
que corresponderia a 1 médico para cada 892 presos. Um levantamento feito em
2015 pelos conselhos Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e Federal de
Medicina (CFM) aponta que a média para o país é de 2,11 médicos para cada grupo
de mil pessoas.
Na mesma
resposta, a Seap disse que a tuberculose de William não foi diagnosticada, mas
o laudo do IML aponta infecção pulmonar como causa da morte. – Este
ano, já morreram 232 pessoas nas prisões do estado. Ano passado foram 254.
Morre-se muito, de um modo geral. Há três anos morria menos da metade. Culpa da
superlotação e da ineficiência do serviço médico. Quando um preso precisa de
médico, precisa ser levado para a UPA de Gericinó, mas faltam motoristas e até
carros para fazer esse transporte. Quando um preso está em estado grave, quem
decide se ele será ou não levado ao médico é o agente penitenciário. Não é um
critério médico – afirma o defensor.
Segundo
ele, um preso pode demorar até três semanas para conseguir ser transportado,
uma vez feito o pedido: – Pode
ter havido omissão, nunca vamos saber. Ele pode ter morrido no Ary Franco, onde
já morreram 15 este ano, e foi levado à UPA para confirmar o óbito, ou pode ter
morrido no caminho, depois de ter havido negligência. Uma coisa é certa: as
unidades prisionais tentam se livrar do corpo para se livrar da sindicância que
é feita, ou deveria ser feita, após a morte de um preso.
A Seap
confirma que, nos presídios fluminenses, o transporte dos internos para a
unidade médica de Gericinó é controlado pelos agentes penitenciários, uma vez
tendo sido acionados pelos outros presos quando um deles está passando mal.
Mas, segundo a assessoria de imprensa da pasta, o serviço é imediato: assim que
um preso necessita de socorro, uma viatura do Serviço de Operações Especiais
(SOE) é convocada pelos agentes para levá-lo. A secretaria nega que William
tenha ficado muito tempo à espera de atendimento médico. Um
coveiro se aproxima para levar o corpo de William. Quando o caixão é fechado,
Isa desaba. “Vai com Deus, filho”, diz, enquanto o corpo é levado para longe
dela. Pouco depois das 12h, o caixão é colocado na gaveta 337 e sua entrada é
vedada com um bloco de concreto. Seis dias após a morte, Isa consegue enterrar
seu filho.
O Globo
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