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sexta-feira, 25 de março de 2022

Uma agressão às mulheres - Revista Oeste

Ana Paula Henkel 

Até 2019, Lia era William e competia com os homens. Antes de se tornar a número 1 entre as mulheres, no ranking com os rapazes era o 462º entre 500 nadadores 

Há mais de cinco anos venho escrevendo e falando sobre o que jamais poderíamos imaginar, principalmente nós mulheres: ver homens biológicos competindo no esporte feminino. 
Já escrevi uma carta aberta ao Comitê Olímpico Internacional e uma dúzia de artigos detalhando todos os pontos absurdos dessa política nefasta de identidade de gênero que vem prejudicando meninas e mulheres em todo o mundo e em quase todos os esportes.
 
Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e se sagrou “campeã” da liga universitária norte-americana | Foto: cortesia Peter H. Brick
Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e se sagrou “campeã” da liga universitária norte-americana | Foto: cortesia Peter H. Brick  [em outras palavras = quando era homem biológico entre 500 competidores, ele estava entre os 50 piores = ocupava o 462º lugar; ; se transformou e passou a competir com as mulheres e passou a ser o primeiro entre elas. Isso é justo?]

Não é preciso repetir neste artigo todas as informações óbvias das aulas de biologia da 5ª série, basta ter mais de dois neurônios para entender que homens têm corações e pulmões maiores, maior capacidade cardiorrespiratória, maior oxigenação sanguínea devido à maior produção de glóbulos vermelhos, fibras mais rápidas, densidade óssea superior… Homens são biologicamente diferentes de mulheres. E não há nada de controverso ou polêmico nisso. Simples assim. Mas parece que o mundo, depois de passar por duas grandes guerras, decidiu entrar de vez numa guerra contra a ciência. E, nesta semana, mais uma vez aplaudindo um homem biológico batendo recordes e vencendo títulos em uma competição feminina. Lia Thomas, a nadadora transexual que venceu mulheres com quase uma piscina de vantagem e sagrou-se “campeã” (com aspas mesmo) da liga universitária norte-americana (NCAA) foi o assunto da semana. Até 2019, Lia era William e competia com os homens. Antes de se tornar a número 1 entre as mulheres, no ranking com os rapazes era o número 462 entre 500 nadadores.

Até 2019, Lia era William e competia com os homens -  Foto: Reprodução

Durante esses anos, venho tentando trazer um pouco de racionalidade para o debate público. Essa invasão de homens biológicos nos esportes femininos não é apenas errada, é um ataque e um desrespeito inaceitável às mulheres que seguem à risca as políticas antidoping pela proteção do esporte limpo. A própria discussão é, em si, ultrajante e humilhante. O debate honesto sobre esse assunto não pode ser embasado na identidade social de um indivíduo, que, obviamente, deve sempre ser respeitada. Como as pessoas decidem viver suas vidas é uma questão de foro privado. Mas decisões sociais e particulares não criam direitos automáticos e imaginários. Esse assunto é sobre a clara exclusão de meninas e mulheres no esporte feminino, é sobre ciência e sobre identidade biológica, pilar sagrado e justo nos esportes. Esse assunto é sobre honestidade.

Hoje, no entanto, não focarei na parte física desse debate que engloba, entre tantas verdades chatas ao politicamente correto, políticas antidoping. Atletas trans, hoje competindo com mulheres, como Lia Thomas, Tiffany Abreu, Fallon Fox ou Alana McLaughlin, um ex-soldado das Forças Especiais do Exército norte-americano, não sabem o que acontece no universo feminino do esporte. Mulheres são muito mais policiadas dentro e fora de competições do que homens

Uma pequena gota a mais de testosterona em um corpo feminino pode significar uma enorme diferença, o caminho que separa o ouro da prata, a classificação da eliminação ou a glória do fracasso. 
As diversas vantagens que as mulheres trans possuem devido aos anos de exposição à testosterona desde a infância não são amenizadas ao manter a quantidade hormonal recomendada pelo Comitê Olímpico Internacional de até 10 nanomols/litro por 12 meses (mulheres têm em média entre 2,8 e 3,2 nanomols/litro). Não existe nenhuma pesquisa que possa comprovar que a supressão hormonal nesse período possa reverter todas as características físicas superiores da genética masculina depois de passar 20 ou 30 anos de exposição a altas doses de testosterona. Ou se é possível, sequer, reverter isso com anos sem o hormônio masculino.

A guerra, no entanto, não foi declarada apenas à ciência ou às mulheres no esporte. O objetivo de toda essa agenda nefasta que inclui revisionismos históricos, derrubada de estátuas e a vida baseada em “construções sociais” não é “proteger” as minorias ou sequer as pessoas trans, mas destruir a própria ideia de conhecimento objetivo. Se até a natureza biológica do ser humano é negada, tudo, e absolutamente tudo pode ser negado. Esse é o maior objetivo desse “movimento revolucionário”. Todo e qualquer processo revolucionário apresenta inicialmente uma fase de desestabilização da sociedade, para em seguida impor uma nova ordem despótica. Se hoje os revolucionários prometem mais “direitos” às “minorias”, na sequência das páginas deste enredo as mesmas minorias serão descartadas, como mostra a própria história. E essa guerra foi declarada de vários frontes.

Nesta semana, aqui nos Estados Unidos, no Comitê Judiciário do Senado norte-americano, aconteceu a sabatina de Ketanji Jackson, a indicada de Joe Biden à Suprema Corte. 
A senadora Marsha Blackburn, do Tennessee, perguntou a Jackson o que deveria ter sido a pergunta mais fácil já feita em uma sabatina para uma das cadeiras da famosa SCOTUS: “Você pode definir o que é uma mulher?”. Nomeada publicamente por Biden por ser negra e mulher, imagine como Jackson deve ter ficado aliviada ao ouvir uma pergunta tão banal. Nada de casos históricos ou jurisprudências obscuras e precedentes do século passado da Corte. Tudo o que os republicanos querem é uma recapitulação de um dos primeiros capítulos de Biologia: O que é uma mulher.

Ketanji Jackson, uma juíza de Cortes inferiores famosa por aplicar penas bem menores a criminosos, inclusive pedófilos, poderia ter dito com incredulidade: “Senadora, essa é uma pergunta simples que qualquer estudante do ensino médio pode responder. Uma mulher é um ser humano com dois cromossomos X e isso é facilmente detectável em um exame de sangue. As mulheres têm pélvis mais largas, estruturas ósseas diferentes das dos homens e genitália muito diferente. Geralmente, é bastante óbvio que são mulheres, só de olhar para elas. As mulheres têm genética diferente porque somos projetadas para fazer coisas diferentes. A natureza é real. As mulheres menstruam, engravidam, dão à luz e depois amamentam. Os homens não fazem essas coisas porque eles não podem. Joe Biden me nomeou para a Suprema Corte porque sou mulher. O presidente sabe exatamente o que é uma mulher. Se ele não soubesse, não teria me escolhido.”

Teria sido fantástico se ela tivesse dito isso. No entanto, Ketanji Jackson disse que não poderia fornecer uma definição sobre o que era uma mulher porque “não era bióloga”. Jackson, uma indicada à Corte mais importante dos Estados Unidos da América, respondeu sem o menor constrangimento que, por não ser bióloga, não poderia dizer o que é uma mulher. Mas a verdade é que não faria a menor diferença se ela fosse bióloga (ou qualquer pessoa que queira enfiar em nossa goela abaixo que atletas femininas trans não são homens), porque ninguém no Partido Democrata, no Psol, PT ou na cega militância LGBT se importa de verdade com o que os biólogos pensam sobre sexo biológico. Os biólogos foram banidos junto com os Pais Fundadores da América, com todas as estátuas de heróis do passado e com a liberdade de expressão.

Em 2022, depois de ouvirmos por dois anos “Ciência, ciência, ciência!”, o poder da ciência e da literatura humana desmorona à luz do dia diante do lobby trans. Até uma indicada para a Suprema Corte norte-americana, mesmo com todas as suas credenciais acadêmicas, tem a cara de pau de mostrar seu pedágio lobista e diz, sem o menor constrangimento, que não sabe o que é uma mulher porque não é bióloga. O mais curioso e surreal disso tudo é que, se voltarmos na sabatina de Brett Kavanaugh, uma das nomeações de Donald Trump para a Suprema Corte e acusado de última hora de um suposto assédio sexual quando ainda estava no High School, lembramos que fomos bombardeados com o mantra de que devemos acreditar cegamente em todas as mulheres, independentemente de estarem ou não dizendo a verdade. Elas são mulheres, portanto, em nome da justiça social, devemos simplesmente aceitar o que elas dizem. Como Kamala Harris afirmou certa vez: “A palavra de uma mulher é como uma declaração juramentada”.

O “debate” sobre transgenerismo é definido pela censura, fazendo você calar a boca e não permitindo que você perceba o óbvio

Joe Biden, ainda nas primárias democratas em 2020, rechaçou que há diferenças entre homens e mulheres: “Nós, de fato, temos de mudar fundamentalmente a cultura, a cultura de como as mulheres são tratadas. Nenhum homem tem o direito de levantar a mão para uma mulher com raiva, a não ser em autodefesa, e isso raramente ocorre. Por isso, temos de mudar a cultura”. Até o estranho e inepto Joe Biden sabe que homens e mulheres não são iguais. Não estamos dizendo que um é moralmente melhor que o outro. Somos moralmente iguais, mas somos diferentes nos níveis mais profundos, começando pela biologia. Todos nós crescemos sabendo disso, mas agora a turba alimentada pelos jacobinos LGBTQTVBGRTYWXCFRET+++++ está mandando fingir o contrário, negar a natureza e suprimir seus instintos mais básicos e valiosos de proteção às mulheres. Estão nos dizendo que não temos o direito de ficar chateadas quando um homem biológico apanha de uma mulher trans, seja num bar, seja num ringue ou numa competição desleal na piscina. Estamos prontos para suprimir esses instintos? Estamos prontos para viver em uma sociedade que não reconhecerá as mulheres? Estamos prontos para sermos colocados em mais uma — depois de dois eternos anos na pandemia! — espiral de silêncio? Não fale, não questione, não pergunte — ou terá a cabeça degolada pela turma “love is love”.

O esporte feminino está sendo desfigurado a passos largos. Por mais que eu tenha me impressionado com tamanha repercussão positiva por parte do público nesta semana com o caso de Lia Thomas, a lei do silêncio continua imperando entre jogadoras, nadadoras e atletas femininas. Mas o perigo dessa agenda vai além das fraudes no esporte feminino: o que acontecerá com os sistemas judiciários se fingirmos que homens e mulheres são exatamente iguais, que são meras “construções sociais”? A afirmação da indicada de Biden à Suprema Corte de que não podemos dizer quem é homem e quem é mulher é um sintoma da transformação da sociedade pela perigosa agenda identitária. Em um futuro não muito distante, a maneira como administramos a Justiça também será transformada, começando com as leis antidiscriminação. Se não podemos dizer com certeza quem é uma mulher, como vamos aplicar a Lei Maria da Penha ou todas as medidas de proteção contra violência doméstica, estupros e assédios? Nos Estados Unidos, o Título IX, uma lei dos anos 1970 que proíbe a discriminação sexual em escolas e universidades, está sendo usado hoje por meninos biológicos que “se sentem” como meninas. Se não usamos o sexo biológico como um aferidor justo, como podemos evitar a discriminação com base no sexo biológico?

O objetivo do movimento trans não é convencer ninguém de que a biologia não é real. Isso seria impossível de ser realizado. Qualquer um soaria ridículo se tentasse articular isso, muito menos explicar. O objetivo desse movimento é muito diferente. A questão central é fazer com que todos nós repitamos uma mentira, algo que sabemos perfeitamente que não é verdade, fitando assustados a guilhotina acima de nossos pescoços. “Sim, Lia Thomas é uma mulher que ganhou a competição de natação porque treinou mais do que as outras garotas. Lia Thomas mereceu vencer. Lia Thomas é incrível e sua vitória não foi trapaça. Não notamos também que seu corpo de homem continua com todas as características intactas.” Pronto. Ufa… Dessa vez não perdemos o pescoço.

E é esse mantra que exigem que repitamos, não porque eles se importam com Lia Thomas, com Tiffany, Fallon Fox ou qualquer outra pessoa trans. Eles não se importam, porque, se importassem, pensariam duas vezes antes de expor essas mulheres trans e a própria comunidade ao ridículo. Fazer com que todos nós finjamos acreditar em algo que não acreditamos é o único objetivo, porque, se eles podem fazer com que acreditemos em algo que sabemos que é falso, eles venceram. Eles controlam o seu e o meu cérebro.

Então, toda essa insanidade negacionista não é sobre pessoas trans. É sobre todos nós, e eles apostaram alto. E é exatamente por isso que a censura é tão intensa. O “debate” sobre transgenerismo é definido pela censura, fazendo você calar a boca e não permitindo que você perceba o óbvio. Quando você menos perceber, você já entrou na espiral de silêncio imposta por eles. Não há nenhuma tentativa de persuadir nenhum de nós por argumentos válidos em uma discussão com o mínimo de honestidade. Não há nenhuma ideia baseada em fatos. Você não pode responder: “Mas então os homens podem se tornar mulheres apenas desejando ser mulheres?”. Isso não é permitido e, se fosse, jamais responderiam. Só nosso silêncio e as boquinhas fechadas importam. O primeiro movimento sempre é a censura e o segundo movimento, inevitavelmente, é a punição. Resolveu falar? Cabeças no chão, contas de redes sociais suspensas, perseguição virtual, cancelamentos…

Mas ainda há enorme esperança nesse novo mundo orwelliano em pessoas como Caitlyn Jenner, ex-atleta e campeão olímpico de decatlo masculino como Bruce Jenner. Jenner se identificou como mulher trans em 2015 e é veementemente contra homens biológicos competindo com mulheres no esporte feminino. Recentemente, ela disse em um vídeo que esse assunto é apenas uma questão de justiça: “Sou contra meninos biológicos que são trans poderem competir com garotas. Simplesmente não é justo e nós temos de proteger o esporte feminino nas escolas”. Essa semana, Caitlyn declarou que a vitória de Lia Thomas não é justa, que o corpo da nadadora é claramente o corpo de um homem que passou por toda a puberdade envolto em testosterona. Claro que Jenner foi devorada pelo tal feminismo que jura por todos os santos proteger e lutar pelas mulheres.

Há uma frase atribuída a Voltaire que diz que quem pode fazer você acreditar em absurdos pode fazer você cometer atrocidades. Um homem não pode se tornar uma mulher diminuindo sua testosterona. Nossos direitos não devem — e não vão — terminar onde os sentimentos de alguns começam.

Leia também “A hipocrisia da cultura do cancelamento”

 Saber mais, leia: o que é uma mulher

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


quarta-feira, 25 de março de 2020

Reflexões sobre a epidemia - Nas entrelinhas

Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica”

Quando as ideias liberais clássicas de Adam Smith pareciam consagradas no Ocidente, em meio à corrida mundial para reinventar o Estado, a epidemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar. O revisionismo reformista de Lord John Maynard Keynes parece renascer das cinzas, com sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro. Para conter a epidemia, o mundo está mergulhando numa recessão geral, fruto da globalização tanto quanto a propagação do novo coronavírus, que começou na China, tomou de assalto a Europa, se instala nos Estados Unidos e se expande na periferia, na qual países como a Índia e o Brasil se preparam para a uma tragédia anunciada.

Para o keynesianismo, os níveis de consumo, de investimentos público e privados e aplicações dos cidadãos são determinantes da política econômica. Quando eles se retraem, a crise vem a galope. A velha fórmula de Keynes para enfrentar essa situação está sendo exumada por ninguém menos do que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pretende injetar mais de US$ 1 trilhão na economia norte-americana para aliviar o sufoco gerado pela paralisação da economia. A Casa Branca foi o centro da resistência à política de distanciamento social preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas capitulou, diante da tomada de Nova York pela epidemia. Da cidade mais rica do mundo, a epidemia se espalha por todos os estados da União.

Como na Grande Depressão de 1929, só o Estado pode conter o atual desequilíbrio da economia. Aquela crise teve outras causas: foi consequência da grande expansão de crédito por meio de oferta monetária (emissão de dinheiro e títulos), que precisou ser freada. O governo parou, começou a enxugar o mercado e a operar uma política de restrição de empréstimos. Temendo a desvalorização da moeda, muitas pessoas e empresas retiraram suas reservas dos bancos, dando início a um processo de recessão.

A solução para esse problema seria controlar a recessão, permitindo a liberdade de preços e salários, até que o mercado se adequasse à nova situação. No entanto, ao contrário disso, o governo passou a exercer arrochado controle sobre os preços e os salários, além de promover aumento de impostos. Isso agravou a recessão e, em cinco dias, a Bolsa quebrou, levando à falência empresas e bancos e, ao desemprego, 12 milhões de pessoas nos Estados Unidos, uma recessão que se alastrou por todo o mundo.

A fórmula de Keynes era os governos aplicarem grandes remessas de capital na realização de investimentos que aquecessem a economia de modo geral, além de linhas de crédito a baixo custo para garantir a realização de investimentos do setor privado e a elevação dos níveis de emprego. Mas isso era uma ofensa ao “livre mercado”. Coube ao presidente Franklin Delano Roosevelt, um homem paraplégico por causa da poliomielite, enfrentar a recessão.

Governador de Nova York desde 1928, disputou e ganhou a Presidência dos Estados Unidos em 1932, prometendo um novo e ousado plano de ação para resgatar a nação dos efeitos da grande depressão. Convenceu os americanos de que não havia mais nada a temer. Empossado em março de 1933, em apenas 100 dias, Roosevelt conseguiu aprovar no Congresso seu plano baseado nas ideias keynesianas. O New Deal (Nova Ordem) garantiu US$ 3,3 bilhões para investir na criação de empregos e na recuperação industrial. Nascia o Estado de bem-estar social.

Errático
Roosevelt propôs programas inovadores, que geraram milhões de empregos, e criou a Lei de Seguridade Social, um plano de aposentadoria com abrangência nacional, a grande herança de seu governo. Reeleito três vezes (1936, 1940 e 1944), morreu pouco antes do fim da II Guerra Mundial, na qual foi um dos Três Grandes, ao lado de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, e Youssef Stálin, o líder da antiga União Soviética, que comandaram as forças aliadas contra o nazifascismo.


Aqui no Brasil, diante da epidemia de coronavírus, a política econômica ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, entrou em colapso. Tornou-se insustentável diante da redução da atividade econômica. Na verdade, seus resultados já eram pífios antes da epidemia. Economistas como Armínio Fraga, Monica de Bolle e André Lara Rezende já vinham questionando o ministro. O mercado já está com saudades do ex-ministro Henrique Meirelles, hoje secretário da Fazenda de São Paulo.

É esse debate que está por trás do embate entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores em relação às medidas de quarentena adotadas nos estados e municípios. Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica. O remédio é deixar morrer. Ontem, foi à tevê, em cadeia nacional, para atacar a imprensa, os governadores e os prefeitos e criticar as medidas de distanciamento social adotadas para conter a epidemia, que continua chamando de gripezinha. Quando parecia ter entrado em entendimento com os demais governantes, recrudesceu. Temos um presidente errático em relação à crise que o país enfrenta. [os governadores nada somam no combate à crise.
Melhor dizendo, somam sim = as quantias que a União tem que repassar aos Estados, para domesticar os governadores - em sua maioria, se procurando com atenção se encontra uma ou outra exceção.]

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense


domingo, 24 de março de 2019

A desordem veste saia preta

Até hoje, este tipo de sobressalto vinha de comandantes uniformizados de verde




O Brasil é uma caixinha de surpresas. Tuitando na rede inquieto vaga-lume verde, eis que seu voo é ameaçado pelo desentendimento entre civis de ternos bem cortados e outros, de toga preta. Será questão de uniforme?  Muitas vezes fomos governados por profissionais uniformizados, desde a deposição do primeiro e único imperador brasileiro, o carioca Pedro II,  nascido no bairro de São Cristóvão, no Rio.

Mas, ao contrário de Pedro II, nossos presidentes não têm nem garantem nenhuma estabilidade. A República segue a trancos e barrancos e está na prisão o vice que se tornara presidente com a deposição da presidente cuja chapa integrara.  Está na prisão também o antecessor dos dois. Ela aguarda a sua vez de depor ou de ser presa antes para isso, como o foi seu vice na semana passada. O Brasil agora é governado com trajes civis, mas tem um soldado na presidência da República, um capitão de Exército cercado de generais, recuperando os albores da nova ordem, uma vez que desde os primeiros mandatos muitos militares têm passado pela presidência da República e pelos ministérios.

Foi no governo de um deles que foi instalada a integração do Brasil pelas comunicações, primeiramente por micro-ondas e depois por satélite, antecipando a internet que ano passado levou o capitão Jair Bolsonaro à Presidência da República.  O ministro das Comunicações a quem o general Emílio Garrastazu Médici dera a missão de unificar o Brasil foi Hygino Corsetti, oficial de Exército e descendente de italianos. Ele cumpriu a missão e em 1972, a Festa da Uva, celebrada em Caixas do Sul, sua terra natal, inaugurava a transmissão em cores na televisão brasileira.

Hoje, outro descendente de italianos, o presidente e seus ministros mais solares podem vestir-se de civis, mas só disfarçam o uniforme. O poder, não. Em qualquer democracia, quem garante o Direito é a Força. E a Força está em quem pode garantir que seja cumprido o que foi determinado pela Lei. Não precisam dizer isso e quando o fazem dá-se um estrago na mídia, mas foram eles que intervieram sempre que a lei precisou deles para consertar a bagunça e impor a ordem para o progresso, o lema que criaram ao garantir a República com os dois primeiros marechais, Deodoro e Floriano, e depois com outros generais. Aliás, no Brasil, vice assume, e o carma segue.

O que foi determinado nas ruas nas maciças movimentações populares que destituíram aqueles e levaram esses ao poder de novo? A Reforma da Previdência? O combate à corrupção? Bom, em primeiro lugar foi determinado quem seria o Presidente!  Essas substituições vêm de longe. De batina preta, o pároco substituiu o morubixaba, enfeitado de penas coloridas e altos penachos. Logo o médico, que havia pouco tinha substituído o barbeiro, substituiria também o pajé com outras feitiçarias. Foi assim que o Brasil começou e foi assim que se formou.

Se os prezados leitores estão gostando da salada deste texto, notem que os homens de saia estão lotando as prisões com presidiários civis. Mas estão divididos. Uns querem prender, outros querem soltar. As votações decisivas têm sido de 6 x 5 para um lado ou para outro na Suprema Corte, como chamam o STF.  Soltar ou prender deveria ser normal quando determinado por homens de saia. O problema é que, tal como os primeiros homens de saia, os atuais acham que não podem ser criticados. O morubixaba deles, aliás, já pariu o primeiro monstro, determinando que seja punido quem dele discordar.
Que é isso? Até hoje, este tipo de sobressalto vinha de comandantes uniformizados de verde. Agora, a desordem veste saia preta.

Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra




Publicado em Veja

sábado, 12 de janeiro de 2019

Charada em construção

Profissões inteiras vão se tornando obsoletas por conta dos avanços da inteligência artificial, da impressão em 3D, da robotização e outras mudanças

(Publicado na edição impressa de VEJA)

As coisas seriam relativamente simples no Brasil se todas as preocupações, dúvidas e problemas a resolver se resumissem ao novo governo do presidente Jair Bolsonaro. Mas aí é que está: a vida nem sempre nos dá a oportunidade de lidar só com uma questão de cada vez. Além de tudo o que precisa dar certo aqui dentro, hoje em dia é preciso encarar, também, uma quantidade ainda maior de coisas que têm de dar certo lá fora – e essas coisas, positivamente, não parecem estar a caminho de acabar bem. Trata-se das exigências do “novo pensamento mundial”, ou do “globalismo”, ou alguma outra combinação de palavras parecida – uma espécie de consenso ainda frouxo, mas cada vez mais ativo, que vai se criando na elite europeia e americana sobre como o planeta deveria ser ordenado daqui para frente.

A nova ordem que prescrevem para o mundo vai mal, e nem daria mesmo para esperar que fosse bem, levando-se em conta que inclui praticamente tudo o que deveria estar indo melhor com a humanidade. Mas a complicação realmente não parece estar na quantidade de problemas existentes. Parece, isso sim, estar na qualidade geral das soluções com as quais se pretende tornar o mundo e o homem melhores do que são hoje.

É uma sinuca, no caso particular do Brasil deste momento. O governo Bolsonaro, definitivamente, se declara disposto a fazer o contrário do que o pensamento mundial recomenda para resolver os problemas do universo. Do outro lado, o consenso ora em formação entre os intelectuais, burocratas, governantes e outros “influenciadores” da vida diária do primeiro mundo demonstra um aberto horror a tudo o que o governo brasileiro imagina que vai fazer nos próximos quatro anos. De Bolsonaro já sabemos o que é preciso saber. Do outro lado, porém, o que existe é uma charada em construção. Quando você começa a achar que entendeu alguma coisa na lista de deveres a ser obedecida hoje por pessoas e nações, os deveres mudam, ou entram em choque entre si, ou exigem ações que você não sabe como executar, ou sequer imagina como podem ser executadas. É mais ou menos natural, porque os propositores do novo pensamento não sabem direito, eles próprios, o que querem. 

Nem todos querem as mesmas coisas. A maioria não calcula direito as consequências das propostas que fazem. Acreditam-se capazes de organizar fatos que estão acima e além do seu controle. Não seguem, no fundo, uma ideologia, mesmo porque ainda não se identificou nenhuma ideia de verdade em nada do que prescrevem para o bem geral. Há apenas uma tumultuada coleção de desejos – e a exigência de que sejam removidas do mundo, em geral por atos do governo, todas as situações de frustração, carência e ressentimento que hoje incomodam as consciências.

Não é fácil enxergar com clareza no meio desse nevoeiro. Dá para dizer, em todo caso, que o grande traço de união entre as diversas seitas do novo pensamento é a certeza de que a mãe de todos os pecados do mundo de hoje é a falta de igualdade – tanto entre as pessoas, individualmente, quanto entre as nações. Tudo que há de errado na vida atual se deve, de uma forma ou de outra, à desigualdade; por via de consequência, de acordo com as crenças básicas do consenso mundial que está se formando no mundo rico, a redução ou a eliminação das diferenças levará à solução de todos os problemas que estão aí e não sabemos como resolver – dos quebra-quebras em Paris ao derretimento das geleiras no sul da Patagônia. Quase tudo pode entrar na lista. Guerras tribais na África, massacres de civis na Síria ou a fome no Congo não têm, por exemplo, nenhuma relação com as forças e governos que provocam essas desgraças. São, pelo novo sistema de pensar o universo, resultado da desigualdade e, portanto, têm de ser curadas com mais igualdade. Imigração ilegal em massa para os países bem sucedidos? Escassez de água? Emissões de carbono? É tudo mais ou menos a mesma coisa. Se o mundo fosse mais igual, nada disso existiria.

Como muito pouca gente está disposta a argumentar em favor da desigualdade, basicamente lembrando que esforços desiguais devem resultar em recompensas diferentes, nada mais fácil hoje em dia do que encontrar combatentes da igualdade. Estão por toda a parte. Em geral, acham que a redução do número de pobres se fará através da redução do número de ricos, e nunca da criação de riqueza entre os pobres. Têm uma mal definida hostilidade ao progresso, visto que o progresso não conseguiu eliminar a desigualdade; acham que mais eletricidade ou mais estradas, por exemplo, trazem benefícios desiguais, e portanto são desaconselháveis, sobretudo quando você já tem as duas.

O novo pensamento não gosta da ciência – não admite mais pesquisas e investigações sobre fenômenos considerados fatos já definitivos pelas suas crenças, como o aquecimento global ou a destruição das florestas brasileiras. Não gosta de religião, a não ser do islamismo, que deve ter estímulo, inclusive oficial, para se propagar nos países cristãos do primeiro mundo e aumentar com isso os índices de igualdade religiosa. Não gosta de hábitos nacionais; a grande virtude de hoje é a “diversidade cultural”, que torna um país tanto mais correto quanto mais ele substituir sua cultura pela cultura de outros países. Não gosta das liberdades individuais. Naturalmente, há um declarado horror pelo “agronegócio”, que, segundo a sabedoria predominante, destrói a natureza, produz carne de boi e faz muita gente ganhar dinheiro.

O New York Times e outros centros da nova inteligência mundial estão convencidos, por exemplo, que praticamente toda a produção da agricultura brasileira poderia ser substituída no futuro, e com vantagens, pelo consumo de insetos, capazes de fornecer todos os nutrientes necessários ao organismo humano. Com isso, seria possível eliminar fazendas nocivas ao meio ambiente, que hoje desperdiçam com a produção de alimentos terras que deveriam estar destinadas à florestas. Além disso, utilizam “agrotóxicos” e, eventualmente, perturbam a vida indígena. É mais ou menos a mesma visão que atribui aos “direitos dos animais” importância equivalente aos direitos humanos – isso para não falar nos direitos dos vegetais e da camada de gelo do Polo Norte. De modo geral, consideram a sobrevivência do meio ambiente mais importante que a sobrevivência das pessoas de carne e osso. Numa espécie de cavalo-de-pau filosófico, acham natural que os recursos naturais não devam ser utilizados em favor do bem estar humano; ao contrário, estão convencidos que é obrigação do homem e dos governos não tocar em nada que esteja presente na natureza.

Nada disso parece ter alguma coisa diretamente relacionada com a redução das desigualdades – mas o fato é que todas essas crenças, de um modo ou de outro, são apresentados como parte do mesmo pacote de salvação do mundo que vai sendo embrulhado hoje em dia por funcionários de burocracias como a ONU, Comissão Europeia e outros organismos internacionais, governos de países ricos, universidades do primeiro mundo, a mídia em geral, o cantor Bono Vox e por aí afora. Como de costume, as dificuldades mais complicadas que a construção da igualdade enfrenta estão nas suas incompatibilidades com o mundo real. Desde o início, o movimento parece cada vez mais tentado a aceitar a ideia de que é possível obter o bem estar independente do trabalho. Há bem estar na Alemanha, por exemplo, e miséria na África? A solução é abrir a Alemanha à imigração dos africanos – onde se espera que passem a desfrutar da mesma prosperidade sem ter feito os últimos 100 anos de trabalho que os alemães fizeram para chegar até onde estão hoje. É essa, por sinal, a grande ideia que sustentou a aprovação do recente acordo internacional declarando que todos os habitantes do planeta têm agora o direito legal de imigrarem para o país que quiserem.

Pouca ou nenhuma atenção é dedicada nisso tudo à criação de mecanismos de produção capazes de gerar as riquezas a serem distribuídas para eliminar a desigualdade. Distribuir a fortuna dos ricos parece ser uma ótima ideia até você ver que só dá para fazer essa distribuição uma vez – depois que é consumida a riqueza acaba, e é preciso criar outra em seu lugar, para continuar havendo alguma coisa a distribuir. Não está claro quem vai ficar encarregado dessa tarefa. Outro problema é a tecnologia – quanto mais progresso se cria, mais se aumenta a desigualdade, e a menos que se declare uma moratória no avanço tecnológico o futuro promete a multiplicação acelerada de desiguais. Hoje as revoluções industriais se sucedem mais de pressa que as fases da Lava Jato; na verdade, ninguém sabe direito em qual revolução, exatamente, estamos hoje. Quarta? Quinta?

O certo é que a cada avanço mais gente se vê excluída dos benefícios do progresso; nem todos têm capacidade para ocupar um emprego no Silicon Valley ou seus equivalentes através do mundo. Os que não têm cacife para isso se veem, cada vez mais, relegados às ocupações menos atraentes, mais frustrantes, pior remuneradas. Profissões inteiras vão se tornando obsoletas, por conta dos avanços da inteligência artificial, da impressão em terceira dimensão, da robotização e outras mudanças desagregadoras do mundo profissional como ele é hoje. Para que pilotos de jato se os aviões voarão sozinhos, e com muito maior segurança, de Nova York a Tóquio? Para que médicos, se o computador vai fazer um transplante de coração melhor do que eles? Para que o marceneiro, se a impressão em 3D lhe entrega sua cadeira pronta e sem defeito nenhum?

É um mundo no qual só as pessoas com alto grau de conhecimento serão realmente cidadãos de primeira classe. Por mais que as leis digam que todos são iguais, e por mais que as elites pensantes escrevam programas estabelecendo regras de igualdade, as diferenças estarão cada vez mais evidentes. É para essas realidades que o Brasil tem de se preparar. Será preciso, nesta caminhada, contar com ideias muito melhores do que as que apareceram até agora.

J R Guzzo - Publicado na Edição Impressa de Veja  
Edição da semana 2617 16/01/2019 
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