Na edição de 26 de junho de 2020 da Revista Oeste, iniciei meu artigo daquela semana falando sobre o famoso romance distópico de George Orwell, 1984.
Ainda estávamos no meio da pandemia, num momento em que não tínhamos
certeza de seu caminho e de sua letalidade. Comentei em meu texto que os
tempos eram estranhos e o mundo atravessava dias bizarros que poderiam
facilmente ter saído das páginas do livro publicado em 1949. Argumentei
que as sociedades modernas estão se tornando cada vez mais parecidas com
o que foi descrito na obra de Orwell: na vigilância em massa, no uso
incessante de propaganda, na guerra cultural perpétua e no culto à
personalidade que cerca líderes políticos e ativistas. Finalizei o
primeiro parágrafo dizendo que o romance de Orwell é presciente de
várias maneiras. Mas eu mal sabia que 2021 seria, na verdade, mais
próximo ainda de 1984.
Naquele artigo, mencionei a quebradeira protagonizada por vândalos e
terroristas domésticos do Black Lives Matter e do Antifa, as turbas
violentas que derrubaram estátuas, demonizaram forças policiais e
sequestraram pautas pertinentes para projetos de poder político —
sintomas que já demonstravam um tipo de totalitarismo que George Orwell
satirizou. Jamais poderíamos imaginar que o que vivemos em 2020 seguiria
com força avassaladora agora em 2021.
Nesta semana, logo após o banimento do presidente norte-americano
Donald Trump do Twitter, muitas plataformas digitais seguiram a rede
social de Jack Dorsey e entraram em transe virtual, degolando
virtualmente o homem malcriado e sem papas na língua, o maior vilão
depois de Hitler, de acordo com todos eles. Donald Trump tem sido uma
figura controversa em seus quatro anos de administração, com um discurso
inflamado e muitas vezes desafiador, mas é justo — ou correto — banir
alguém do debate público por não concordar com suas ideias ou sua
retórica?
Em seu discurso no dia 6 de janeiro em Washington, Trump teria
incitado a multidão a agir com violência e invadir o Capitólio. Mas
basta uma rápida lida na transcrição do que foi dito pelo presidente
para percebermos que a narrativa — mais uma vez — é exagerada e não
condiz com o que foi, de fato, dito. “Viemos exigir que o Congresso faça
a coisa certa e conte apenas os eleitores que foram legalmente
indicados. Sei que todos aqui logo estarão marchando para o prédio do
Capitólio para fazer ouvir sua voz de forma pacífica e patriótica. Hoje
veremos se os republicanos são fortes pela integridade de nossas
eleições, se eles são fortes ou não por nosso país.”
Mas não foram apenas as plataformas que usaram o evento para cancelar
Trump do mundo virtual. Os democratas, que há quatro anos empurram
várias tentativas de impeachment contra o presidente, também usaram o discurso para fazer passar mais um impeachment na Câmara — que não chegará ao Senado antes da posse de Joe Biden. Os artigos do novo impeachment
acusam Trump de, entre outras coisas, “incitação à insurreição”. Se
Trump é culpado de “incitamento”, então metade dos democratas no
Congresso também o é. Nancy Pelosi e outros democratas estão,
convenientemente, concentrando-se na retórica sempre inflamada de Trump
aos que o ouviam quando ele disse que deviam “lutar como o inferno por
seu país” (fight like hell for your country). Logo depois, ele convidou os apoiadores a “descer a Avenida Pensilvânia” e “dar [aos republicanos]
o tipo de orgulho e ousadia de que precisam para retomar nosso país”. A
palavra “pacificamente” foi excluída de qualquer conversa, debate e até
mesmo do processo. Oh, details.
É preciso praticar todos os tipos de ginástica mental para fingir que
“lutar como o inferno” é tudo menos uma figura de linguagem muito
comum. O senador democrata Richard Blumenthal disse que “lutaria como o
inferno” contra o então nomeado de Trump para a Suprema Corte, Brett
Kavanaugh. Alguém imaginou que ele pretendia se envolver literalmente em
brigas de socos no plenário do Senado? Democratas disseram palavras
bastante inflamadas ao longo do ano de 2020 em relação aos protestos do
BLM e do Antifa, e nada, absolutamente nada, foi condenado por nenhum de
seus pares — tampouco esses personagens do cenário público foram
banidos de toda a existência virtual.
Dois dias após a eleição de 2020, a comediante Kathy Griffin retuitou
a famosa foto dela segurando um objeto que parecia a cabeça
ensanguentada de um Donald Trump decapitado. No início do ano passado, o
líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, tuitou um apelo a seus
seguidores para destruir Israel. Ambos os tuítes foram aprovados pelo
Twitter, mas o bufão laranja não escapou das garras da censura dos
juízes de 20 e poucos anos da plataforma em São Francisco. Eles, em um
comunicado oficial, declararam que, “devido ao risco de mais incitação à
violência”, Donald J. Trump, com 85 milhões de seguidores, estava
deletado do mundo virtual indefinidamente.
Wall Street, Hollywood e a mídia estão do lado dos cartéis bilionários da tecnologia
Quais são os novos padrões que agora fazem com que uma conta de mídia
social seja cancelada?
A cantora Madonna foi banida das redes sociais
depois da posse de Trump, em 2017, ao expressar o desejo de explodir a
Casa Branca com a família Trump nela?
É verdade, Trump deu uma
oportunidade a seus chacais quando alguns apoiadores vandalizaram o
Capitólio. Mas a verdadeira razão é que a esquerda há muito tempo está
faminta de restringir o discurso daqueles que se opõem a suas pautas de
gênero e engenharia social. E a semana passada ofereceu ao “clube da
ética”, expressão usada por nosso magistral colunista Guilherme Fiuza, o
tipo de crise perfeita que seus integrantes entenderam que nunca
deveria ser desperdiçado.
O mercado e a população reagiram diante de bizarro autoritarismo.
Conservadores e liberais tentaram migrar para a rede Parler, mas o
aplicativo para smartphones já havia sido excluído das lojas
digitais da Apple e do Google e o contrato de hospedagem de dados na
nuvem foi cancelado pela Amazon. Puf. Em menos de 30 horas, 13 milhões
de usuários viraram pó.
A estratégia, hoje encampada abertamente pelas Big Techs, não é
apenas ver um Trump derrotado, em fuga e sem controle do governo. Os
gigantes da tecnologia não pretendem somente humilhar alguém que bateu
de frente com o deep state e expôs o conluio de políticos com o
capital privado de democratas e republicanos. Eles querem também
restringir a capacidade de organização de seus oponentes. Calar Donald
Trump não é suficiente.
É preciso calar todo o movimento conservador e
liberal por ele capitaneado, e exterminar a nova cara que ele deu ao
Partido Republicano, com clara e direta conexão com a classe
trabalhadora por meio de políticas públicas eficientes.
E aqueles que defendem a ideia de que essas plataformas são empresas
privadas e “podem fazer o que bem entenderem”? Nós, brasileiros, pudemos
testemunhar em nossa história recente o capital privado em conluio com o
Estado de maneira nada republicana. Assistimos aos “campeões nacionais”
aproveitando-se do suado dinheiro do contribuinte em operações casadas —
e corruptas — com o poder estatal para o enriquecimento e o
fortalecimento de monopólios.
Nos EUA, há mais de um século, ferrovias, telégrafos e a indústria de
petróleo e energia criaram enormes monopólios. Junto com esse
movimento, também produziram cartéis integrados. Então, usaram seus
enormes lucros para dar presentes a políticos, controlar informações e
destruir a competição. Muitos historiadores e economistas liberais
norte-americanos comparam essas operações a polvos, cujos tentáculos
estrangulam a liberdade e a honesta competição do livre mercado. Em
reação, leis antitruste foram aprovadas e monopólios foram quebrados
depois do Sherman Antitrust Act, de 1890.
Para os libertários mais inflamados, completamente avessos a quebras
de monopólio com as leis antitruste, mesmo quando atropeladas por
cartéis (e, aqui, as plataformas infringem diariamente a Seção 230 da
Lei de Comunicações dos EUA — CDA), o próprio Murray Rothbard,
economista da escola austríaca, afirma em seu livro Esquerda e Direita
que o Estado interventor norte-americano não teria nascido com o New
Deal, mas bem antes, na Era Progressista. Surpreendentemente, essa
intervenção não teve origem por imposição de socialistas e comunistas,
mas pelo interesse de grandes empresários na proteção estatal contra o laissez-faire. Teriam sido eles, e não os militantes socialistas, os grandes responsáveis pelo recuo do livre mercado nos Estados Unidos.
Há uma discussão pertinente em torno do assunto “leis antitruste”. E aqui, na Revista Oeste,
jamais defenderemos mais intervenção do Estado e mais regulações.
Jamais. No entanto, não pisamos atualmente em solo fértil, pronto para
receber sangue e suor daqueles que ainda acreditam no American Dream.
O que está diante de nossos olhos é um cenário em que políticos
progressistas, Wall Street, Hollywood e a própria mídia estão todos do
lado dos cartéis bilionários da tecnologia. A parceria com as Big Techs é
politicamente útil e financeiramente lucrativa. Empresas que financiam
campanhas políticas por todo o país para que legisladores eleitos com
dinheiro delas aprovem leis que as favoreçam sempre.
Uma rápida olhada nos dados de financiamento de campanhas mostra que
as contribuições de donos e funcionários das empresas de tecnologia
foram em grande parte para Joe Biden. Funcionários da Alphabet, Amazon,
Apple, Facebook, Microsoft e Oracle contribuíram com quase 20 vezes mais
dinheiro para Biden do que para Trump desde o início de 2019.
Oito
pessoas do novo Comitê de Transição de Joe Biden estavam até pouco tempo
atrás trabalhando para a cúpula de Mark Zuckerberg, dono do Facebook.
De acordo com a Open Secrets, Alphabet, Microsoft, Amazon, Facebook e
Apple respondem por cinco dos sete maiores doadores da campanha de Biden
em 2019 e 2020.
Esse é o verdadeiro cenário de um oligopólio criado com o uso do
Estado como agente de informação. É o retrato da América de hoje, onde
uma pergunta é insistente — e proibida de ser feita: “Isso é livre
mercado?”. A sensação é que os valores dos monopólios ferroviários e de
petróleo do século 19 estão de volta, casados com o totalitarismo
esquerdista do século 20 de George Orwell que lemos em 1984, e agora muito bem estruturados e alimentados pelo alcance instantâneo da internet do século 21.
Tudo é muito assustador, principalmente para uma nação que tem como
um de seus pilares a liberdade de expressão aliada ao respeito às leis.
No livro The Fourth Turning, de William Strauss e Neil Howe,
somos instigados a analisar como a história mostra que sociedades ao
longo de décadas com frequência trazem características muito parecidas, e
como eventos distintos em épocas diferentes trazem ciclos similares.
Depois de vermos os novos revolucionários jacobinos tentando amordaçar
quem ousasse questionar os caminhos que o vírus chinês impôs, não me
espantaria que os Robespierres que comandam a “nova revolução” e o que
pode ser falado, ouvido e propagado acabem guilhotinados por seus pares.
Leia também a matéria “14 questões sobre o poder das Big Techs”
Ana Paula Henkel, comentarista política - Revista Oeste