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domingo, 10 de outubro de 2021

Você acreditou que era só bondade desinteressada? Bobinho! - Gazeta do Povo

 Luciano Trigo

Como era previsível, diante do absurdo veto do ditador genocida à distribuição gratuita de absorventes íntimos, a grande mídia se apressou a pedir a opinião de especialistas em orçamento e gestão pública: as celebridades.

Famosos que exploram a empregada doméstica e nem “bom dia” dão para o porteiro – nem soltam um tostão para ajudar os pobres, porque caridade boa é aquela feita com chapéu alheio (o chapéu do dinheiro público, no caso) – ficaram em polvorosa diante de mais essa barbaridade na escalada da ditadura. Onde já se viu?

Uma atriz respondeu postando um vídeo em que aparece chorando e chamando o presidente de crápula; uma cantora se declarou chocada com o discurso do “monstro”; um youtuber afirmou, compungido, que os direitos humanos estão em risco no nosso país. Uma digital influencer entregou nos pontos: “Viver no Brasil não está fácil”.

Pois é, viver no Brasil pode estar difícil, mas nunca foi tão fácil ficar com a consciência limpinha. Cumprido o dever cívico de exibir a própria virtude, os guerreiros da justiça social podem passar o fim de semana em Noronha para aproveitar o feriadão; ou gastar em uma única balada dinheiro suficiente para resolver por um ano inteiro o problema da “pobreza menstrual” de centenas de mulheres em situação de vulnerabilidade.

Muitos desses heróis da resistência podem até ter a sincera convicção de estar fazendo a coisa certa. Acredito. Afinal de contas, eles aprenderam que dinheiro público é algo que dá em árvore ou cai do céu, e que o Estado tem obrigação de dar tudo de graça para as pessoas, inclusive artigos de higiene, porque elas têm direito. "Mas quem paga?" Cala a boca, fascista, a economia a gente deixa pra depois!

Décadas de descaso com a educação levaram a isso, à total ignorância dos princípios mais rudimentares de funcionamento da economia e da administração pública. Como escreveu Darcy Ribeiro, a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. A julgar pelo que se lê no Instagram e no Twitter, o projeto foi bem-sucedido. Infelizmente, como resumiu Margaret Thatcher, não existe dinheiro público, mas apenas dinheiro dos pagadores de impostos. Não serão os deputados lacradores, nem as celebridades, nem o Papai Noel, mas o povo que acorda cedo e trabalha, quem irá pagar pelos absorventes produzidos (com material sustentável) para compra e distribuição “gratuita”. Simples assim.

Matemática e responsabilidade fiscal são coisa de fascista: é claro que ninguém quis ler nem entender a fundamentação do veto, o que importa é ganhar biscoito e tacar pedra na Geni. Como observaram alguns leitores
na seção de comentários do meu artigo de ontem, o veto à farra dos absorventes foi fundamentado: o projeto de lei não explicou – ou explicou de forma vaga e preguiçosa – de onde sairia o dinheiro. A regra é clara: um presidente não pode criar, majorar ou estender qualquer benefício – muito menos uma despesa obrigatória de caráter continuado – sem especificar a fonte de custeio. Se Bolsonaro sancionasse a medida, estaria apenas violando a Constituição e cometendo crime de responsabilidade.

Não basta dizer vagamente que o dinheiro “vem do SUS”: como o orçamento não é um poço sem fundo, qualquer proposta de criação de despesa tem que explicar direitinho qual rubrica será cortada – no caso, qual medicamento deixará de ser comprado, qual serviço de manutenção dos hospitais deixará de ser feito – para que sobre dinheiro para a nova despesa criada.

É até compreensível que os famosos agarrem de forma feroz qualquer oportunidade de aparecer e ganhar likes gritando contra o monstro genocida, porque, por definição, celebridades precisam de exposição. Elas não estão interessadas em entender e analisar o assunto, apenas supõem que atacar o presidente pega bem. (Mas podem estar bastante enganados...)

Já os políticos da oposição entenderam perfeitamente o veto e sabem que o momento não é para demagogia – mas apostam na demagogia mesmo assim. Eles não estão preocupados com as estudantes carentes, nem com as mulheres em situação de vulnerabilidade, nem com as presidiárias; estão interessados apenas em atrapalhar e sabotar o governo – porque preferem ver o país destruído a ver o país dar certo com outro grupo no poder.  Mas não é apenas isso.

Jogar nos ombros do Estado o dever de arcar com a compra e distribuição gratuita de absorventes pode beneficiar mulheres pobres; mas beneficiará muito mais alguns homens ricos.  Uma coisa é certa: jogar nos ombros do Estado a responsabilidade de arca. A ação “gratuita” custaria, em uma estimativa modesta, R$ 120 milhões por ano aos cofres públicos, provavelmente muito mais. Para alegria de quem? Dos fornecedores, é claro, empresas multinacionais que fechariam contratos milionários com o governo, e que já estavam comemorando abertamente os lucros que viriam da aprovação da medida, em posts que fingiam celebrar o combate à "pobreza menstrual".

Como dizia Millôr Fernandes, desconfiem do idealista que lucra com seu ideal.

Esqueçam o discurso lacrador e os dedos em riste de parlamentares indignados com a falta de sensibilidade social do presidente. No fundo, o veto à proposta de gastar milhões em dinheiro público na compra e distribuição de absorventes provoca escândalo porque vai na contramão do estranho modelo de capitalismo que fincou raízes no Brasil: de um lado, capitalistas poderosos viciados em dinheiro público; de outro um Estado inchado e, frequentemente, corrompido; neste modelo, o papel que cabe ao governo é de mero atravessador.

Se você tem alguma dúvida, leia o excelente artigo “O sangramento coletivo e a pobreza mental”, que merece ser emoldurado. A autora traz diversas revelações interessantes sobre o tema, como nos trechos transcritos abaixo:

“(...) é um exemplo perfeito do nosso sistema vigente, essa deformidade ideológica que consegue reunir o pior de dois mundos: uma corporatocracia que inventa problemas e soluções em massa (como no comunismo), para o favorecimento de um grupo restrito de amigos (como no capitalismo de compadrio). É provavelmente por essa razão que a deputada (...) quer obrigar você, eu e todos nós a pagar pela distribuição de absorvente ­–porque existe um grupo de bilionários que pode se beneficiar enormemente dessa “caridade”.

“Uma dessas empresas é a Procter & Gamble, dona da Always, que no último relatório aos investidores declarou uma arrecadação de US$ 78 bilhões – é dinheiro que dá e sobra para financiar campanhas políticas no mundo inteiro. Aliás, olha que coincidência: a P&G está por trás de uma ONG criada explicitamente com a finalidade de resolver esse problema que até anteontem nem existia, e que agora tem até nome, graças a agências de publicidade e relações públicas. Aqui nesta página é possível ver as empresas que consideram isso uma prioridade: Caterpillar, Google, AT&T, Booz Allen Hamilton, Intel, Lenov...

Ou seja, tem muito dinheiro rolando por trás dessa bondade toda. E ainda tem gente acreditando que é só por empatia, altruísmo e preocupação desinteressada com as mulheres carentes que surgiu essa onda da "pobreza menstrual". Bobinhos.

A autora continua:


“Não duvido que existam pessoas bem-intencionadas (...) que acreditem que absorvente higiênico deve ser prioridade em um país onde crianças morrem de difteria, e onde metade da população não tem nem esgoto (...). Mas se essas pessoas realmente acreditam que absorvente menstrual deveria ser um direito, por que não entregar o dinheiro diretamente nas mãos das favorecidas, ou das mães dessas meninas?"


Ela inclui no artigo um link com fotos e reportagens sobre um encontro de um suposto patrocinador de campanhas políticas com o bilionário Scott Cook, diretor da Procter & Gamble.

E conta que perguntou à empresa citada:

"Vocês vão ser uma das empresas contempladas com dinheiro público para essa estranha prioridade? E qual o aumento de faturamento vendendo milhões de absorventes para um só cliente?”.

Conta, por fim, que perguntou a uma deputada defensora do projeto (a mesma que postou “Bolsonaro, me deixe menstruar!”): “Você vai receber financiamento de campanha de alguma empresa envolvida?”


[A menstruação e a desfaçatez da deputada Tabata: "Bolsonaro, me deixe menstruar!"]

Imagem em destaque

Segundo a autora do artigo, nem a empresa nem a deputada responderam.

Luciano Trigo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES 


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

STJ e STF inaugurarão a execução sumária na política? Fascistoides ganham! - Reinaldo Azevedo

Sob o pretexto de se combater a corrupção a ferro e fogo, o Brasil foi se tornando um país arreganhadamente despudorado.

Ficamos sabendo — e é fato — que o governo Bolsonaro intensifica seu lobby junto ao Superior Tribunal de Justiça para que a Corte Especial que vai avaliar o recurso da defesa de Wilson Witzel endosse o seu afastamento cautelar, imposto, monocraticamente, pelo ministro Benedito Gonçalves. [FANTÁSTICO: o presidente Bolsonaro, que grande parte da mídia considerava já impedido e execrava uma eventual pretensão presidencial de se tornar um 'digital influencer',  ganha o status de herói e "influencer of justice".]

Imagem: Reprodução/NEFF

Atentem para uma questão importante: o problema não está apenas no fato de a decisão ser monocrática. Se o STF decidiu, em 2017, que um governador pode ser afastado sem prévia autorização da Assembleia — o que é um erro —, está mantida, no entanto, a exigência de que haja ao menos a aceitação da denúncia — o que tornaria o governador réu. E ele ainda não é réu porque nem sequer foi ouvido. Não se constrói democracia sólida assim. O que se tem é bagunça.

A defesa recorreu, claro!, à Corte Especial do STJ contra a decisão. A coisa deve ser votada na quarta-feira. Até onde se sabe, vai endossar a decisão de Gonçalves. "Ah, aí a coisa não será mais monocrática, então!" Não resolve nada, minhas caras, meus caros! Um governador eleito diretamente está sendo retirado do cargo sem nem ainda ser réu; sem que o próprio STJ tenha apreciado a denúncia. E não se pode tomar o endosso a uma liminar como sinônimo de denúncia aceita.

Há algo de errado num país em que é mais fácil tirar do cargo um governador do que um deputado estadual. Sim, um deputado estadual está submetido à jurisprudência do Supremo que vale para parlamentares federais: enquanto conservar o mandato, não pode ser submetido a medidas cautelares que impeçam o livre exercício do mandato sem a concordância da Assembleia. [a decisão de um ministro do STF de suspender o mandato do ex-deputado Eduardo Cunha e 'pegar carona' na medida ilegal para retirá-lo da presidência da Câmara dos Deputados, foi acatada pelo plenário do STF, passando a existir uma legislação virtual - só acessível por ministros da Suprema Corte - amparando o absurdo.] Que sentido faz impor a um governador uma sanção antecipada como essa?
A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer. - Rui Barbosa - PENSADOR

A defesa também recorreu ao STF para derrubar a liminar. A decisão cabe ao presidente da Corte, Dias Toffoli. Ele deu 24 horas para o STJ se manifestar e depois igual prazo para a PGR — cuja resposta já sabemos. Vale dizer: só vai decidir depois da votação da Corte Especial, cujo resultado é conhecido de antemão. Vamos ver o que fará Toffoli se a Corte Especial endossar a decisão de Benedito. Um caminho é considerar o recurso prejudicado porque o que se pedia era a derrubada de decisão monocrática, que monocrática não será mais. Nesse caso, a defesa de Witzel deverá voltar ao Supremo com outro recurso, cuja natureza precisa ser estudada.

Insista-se: o governador Wilson Witzel nem sequer foi denunciado. "E por que não se denuncia logo?" Porque se está ainda na fase da investigação. Não houve tempo.  Deixo aqui uma questão para reflexão: se, do concerto entre STJ e STF resultar uma decisão em que um governador de Estado pode ser afastado do cargo com base em declarações de um delator, sem nem ao menos ter sido ouvido e antes que tenha se tornado réu — já que não existe a denúncia —, então teremos as cortes superiores investindo no baguncismo.

Tanto pior quando se sabe que uma dessas cortes, o STJ, está sob o cerrado assédio do Poder Executivo. Os dois tribunais vão inaugurar a fase da execução sumária para políticos? Quem ganha? Os fascistoides.

Reinaldo Azevedo, jornalista - Coluna no UOL