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terça-feira, 16 de junho de 2020

Ordens absurdas - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo

Bolsonaro é contra ‘ordens absurdas’, mas são dele as ordens e declarações mais absurdas

Tem um probleminha a mais na nota em que o presidente Jair Bolsonaro fala em nome das Forças Armadas e avisa que elas não cumprem “ordens absurdas”: é exatamente dele, do presidente da República, que partem as ordens, os projetos, as decisões e as declarações mais absurdas.

[destaque: ordens absurdas são sempre as dadas pelo presidente Bolsonaro = classificação dada pela articulista.
Só que as ordens mais absurdas e que efetivamente influíram e influem no combate ao coronavírus, os faz e desfaz, tem distanciado o achatamento da curva, são emanadas dos presidentes dos estados e municipios.
Só que Bolsonaro não tem competência legal para intervir de forma prática, efetiva e concreta no combate ao coronavírus - decisão do Supremo atribuiu o combate efetivo, a base de todas ações contra o novo coronavírus aos governadores e prefeitos.
Notório que, infelizmente, o número de infectados e de mortos continua crescendo - nada da curva achatar. Desde o final de semana p.p. se constata, felizmente, uma estagnação e redução no número diário de mortes - rogamos a Deus que a redução aumente.] 

Na campanha de 2018, o então deputado do baixo clero já exigia que a realidade e as pesquisas se adaptassem às suas vontades. Se não confirmavam o que ele achava que tinha de ser, acusava os institutos de fraude e só parou de brigar com eles quando a realidade e a sua vontade convergiram e sua candidatura disparou. Na eleição, Bolsonaro e seu entorno disseram, ameaçadoramente, que só havia uma alternativa: a vitória ou a vitória. Só respeitariam o resultado se ele ganhasse; se perdesse, seria roubo. Um ano depois, já presidente, Bolsonaro fez algo nunca visto no mundo: acusou de fraude a eleição que ele próprio venceu. Acusou, mas não comprovou.

No governo, Bolsonaro manteve a toada. O desmatamento não é o que ele quer? Demite o presidente do Inpe. O desemprego não é conveniente? Cacetada no IBGE. Uma extensa pesquisa mostra que não há uma “epidemia de drogas” no País? Manda a Fiocruz engavetar. Atenção! Estamos falando de Inpe, IBGE e Fiocruz, orgulhos nacionais. 
A “ordem absurda” de Bolsonaro que mais teve consequências foi a demissão do diretor-geral da PF, para ele bisbilhotar diretamente as investigações contra filhos, amigos e aliados. Foi por dizer “basta!” e não acatar essa ordem que o ex-juiz Sérgio Moro saiu do governo e deixou uma investigação do Supremo contra Bolsonaro.


Dúvida: se as FA não cumprem “ordens absurdas”, o que dizer do general da ativa Eduardo Pazuello diante dos achismos do presidente na Saúde? O isolamento social salva vidas, mas não se fala nisso. A cloroquina foi descartada para a covid-19 até pela FDA dos EUA, mas no Brasil pode-se usar à vontade – inclusive os dois milhões de doses imprestáveis para americanos. Só faltava o presidente dar uma ordem absurda – e criminosa – para invadirem hospitais de campanha e mostrar que, ao contrário do que dizem a realidade e os governadores, estão vazios. Não falta mais!

E que tal mudar a metodologia, e até o horário, de divulgação dos dados da pandemia (agora quase 45 mil mortos e um milhão de contaminados)? O presidente acha mais de mil mortos em 24 horas muito ruim para ele e a reeleição. Então, melhorem-se os números. O Brasil chocou o mundo, mas STF, Congresso, mídia e a comunidade médica e científica não engoliram o que Pazuello engoliu a seco. E o governo recuou.

Outra “ordem absurda”: para Abraham Weintraub passar por cima da Constituição e da autonomia universitária e nomear 25% dos reitores federais durante a pandemia. Ou seja: passar uma boiada, fazer caça às bruxas e acabar a “balbúrdia” nas universidades. Mas também não funcionou. As instituições gritaram, o Senado disse não e Bolsonaro revogou a MP relâmpago.

Na sequência, o governo divulgou o balanço da violência em 2019 e excluiu, ora, ora, os dados referentes à polícia, que crescem ano a ano. A alegação foi “inconsistência”, o que, ok, pode acontecer, mas o passado condena. O governo esconde números incômodos e os policiais são da base eleitoral e alvo de cooptação por Bolsonaro. Depois de desmatamento, desemprego, covid-19, emprego... foi só um erro técnico?

Bolsonaro está em meio agora a “ordens absurdas” com efeito bumerangue: foi ele quem nomeou Weintraub, que não trouxe nenhuma solução, só problemas. E foi ele quem deu a ordem para as FA não seguirem “ordens absurdas” e “julgamentos políticos” de outro Poder, o que remete ao imperial: “A Constituição sou eu”. Há controvérsias. E resistência.

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo


domingo, 31 de maio de 2020

Aras em xeque - Merval Pereira

O Globo

 A semântica de Bolsonaro

Aras tenta sair das cordas com retórica 

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, tenta sair das cordas com retórica, não com atos. Disse, afinal, em nota que “sente desconforto” com a citação de seu nome para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. O sujeito oculto da frase é o presidente Bolsonaro, que, inábil no seu açodamento, vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras.
Na verdade, desconforto é o sentimento generalizado entre seus pares, e a opinião pública o identifica como o “Procurador-Geral de Bolsonaro”, conforme a pichação que acordou ontem na sede do Ministério Público em Brasília. Ele é a peça-chave nos dois inquéritos que correm no STF envolvendo o presidente Bolsonaro, um sobre a interferência na Polícia Federal, e outro das fake news. Se Aras decidir pedir o arquivamento, não haverá denúncia, a não ser que o embate entre Executivo e Judiciário esteja tão radicalizado que, no caso das fake news, por exemplo, um dos ministros atacados, ou vários, entrem com uma “ação penal privada subsidiária da pública”, contestando a decisão do Procurador-Geral. Mas as provas não se perderão. Serão enviadas para a primeira instância, no caso dos que não têm foro privilegiados. E aos tribunais superiores, no caso de deputados estaduais e federais.

Certamente pela complacência de Aras, o presidente Bolsonaro se sinta tão à vontade para atacar os ministros do Supremo. Continua fustigando em especial o ministro Alexandre de Moraes, republicando nas redes sociais algumas de suas declarações anteriores, como se evidenciassem contradições do pensamento do relator do inquérito das fake news sobre as liberdades individuais. Mais uma vez temos um problema de semântica, comum aos bolsonaristas radicalizados, e frequente no presidente. Quando Moraes fala em debate de ideias e liberdade de expressão, não está se referindo a mensagens de suas milícias digitais pregando o fechamento do Congresso e do Supremo, ameaçando de morte juízes e políticos que consideram inimigos, e defendendo intervenção militar.

Bolsonaro diz que quer armar o povo para defender a democracia, e dá como exemplo a reação armada contra ordens judiciais que proíbem pessoas de frequentar as praias no tempo de quarentena. Diz que respeita o sistema judicial, mas exorta seus seguidores a não obedecer “ordens absurdas”. Se diz a favor da liberdade de imprensa, mas instiga seus militantes na porta do Alvorada a atacarem a imprensa profissional. E o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o máximo que consegue propor é que os jornalistas finjam que não estão escutando as ofensas.  

 O que realmente incomoda o presidente é a possibilidade de sair de um dos inquéritos, especialmente o das fake news, uma impugnação de sua eleição, ou no STF ou, mais provável, do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro Og Fernandes, relator dos casos de impugnação da chapa por irregularidades na campanha eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já faz consulta para decidir se agrega as provas do inquérito de fake news do Supremo ao processo que corre no TSE. O prazo da quebra de sigilo estabelecido pelo ministro Alexandre de Moraes pega a campanha presidencial, o que pode trazer provas que se agreguem ao processo de impulsionamento ilegal de mensagens, com o financiamento das milícias digitais, a mídia que Bolsonaro tem a seu favor, conforme admitiu o próprio. Esses atos falhos, por sinal, vão surgindo à medida que a situação foge ao controle.

Ontem o assessor especial da presidência, Filipe Martins, acusado de fazer parte do “gabinete do ódio”, entregou-se ao responder a críticas no Twitter com uma série de compartilhamentos de mensagens idênticas, revelando ter uma multidão de robôs a seu dispor.   

Merval Pereira, colunista - O Globo