O Estado de S.Paulo
Bolsonaro é contra ‘ordens absurdas’, mas são dele as ordens e declarações mais absurdas
Tem um probleminha a mais na nota em que o presidente Jair Bolsonaro fala em nome das Forças Armadas e avisa que elas não cumprem “ordens absurdas”: é exatamente dele, do presidente da República, que partem as ordens, os projetos, as decisões e as declarações mais absurdas.[destaque: ordens absurdas são sempre as dadas pelo presidente Bolsonaro = classificação dada pela articulista.
Só que as ordens mais absurdas e que efetivamente influíram e influem no combate ao coronavírus, os faz e desfaz, tem distanciado o achatamento da curva, são emanadas dos presidentes dos estados e municipios.
Só que Bolsonaro não tem competência legal para intervir de forma prática, efetiva e concreta no combate ao coronavírus - decisão do Supremo atribuiu o combate efetivo, a base de todas ações contra o novo coronavírus aos governadores e prefeitos.
Notório que, infelizmente, o número de infectados e de mortos continua crescendo - nada da curva achatar. Desde o final de semana p.p. se constata, felizmente, uma estagnação e redução no número diário de mortes - rogamos a Deus que a redução aumente.]
Na campanha de 2018, o então deputado do baixo clero já exigia que a
realidade e as pesquisas se adaptassem às suas vontades. Se não
confirmavam o que ele achava que tinha de ser, acusava os institutos de
fraude e só parou de brigar com eles quando a realidade e a sua vontade
convergiram e sua candidatura disparou. Na eleição, Bolsonaro e seu entorno disseram, ameaçadoramente, que só
havia uma alternativa: a vitória ou a vitória. Só respeitariam o
resultado se ele ganhasse; se perdesse, seria roubo. Um ano depois, já
presidente, Bolsonaro fez algo nunca visto no mundo: acusou de fraude a
eleição que ele próprio venceu. Acusou, mas não comprovou.
No governo, Bolsonaro manteve a toada. O desmatamento não é o que ele
quer? Demite o presidente do Inpe. O desemprego não é conveniente?
Cacetada no IBGE. Uma extensa pesquisa mostra que não há uma “epidemia
de drogas” no País? Manda a Fiocruz engavetar. Atenção! Estamos falando
de Inpe, IBGE e Fiocruz, orgulhos nacionais.
A “ordem absurda” de Bolsonaro que mais teve consequências foi a
demissão do diretor-geral da PF, para ele bisbilhotar diretamente as
investigações contra filhos, amigos e aliados. Foi por dizer “basta!” e
não acatar essa ordem que o ex-juiz Sérgio Moro saiu do governo e deixou
uma investigação do Supremo contra Bolsonaro.
Dúvida: se as FA não cumprem “ordens absurdas”, o que dizer do general
da ativa Eduardo Pazuello diante dos achismos do presidente na Saúde? O
isolamento social salva vidas, mas não se fala nisso. A cloroquina foi
descartada para a covid-19 até pela FDA dos EUA, mas no Brasil pode-se
usar à vontade – inclusive os dois milhões de doses imprestáveis para
americanos. Só faltava o presidente dar uma ordem absurda – e criminosa –
para invadirem hospitais de campanha e mostrar que, ao contrário do que
dizem a realidade e os governadores, estão vazios. Não falta mais!
E que tal mudar a metodologia, e até o horário, de divulgação dos dados
da pandemia (agora quase 45 mil mortos e um milhão de contaminados)? O
presidente acha mais de mil mortos em 24 horas muito ruim para ele e a
reeleição. Então, melhorem-se os números. O Brasil chocou o mundo, mas
STF, Congresso, mídia e a comunidade médica e científica não engoliram o
que Pazuello engoliu a seco. E o governo recuou.
Outra “ordem absurda”: para Abraham Weintraub passar por cima da
Constituição e da autonomia universitária e nomear 25% dos reitores
federais durante a pandemia. Ou seja: passar uma boiada, fazer caça às
bruxas e acabar a “balbúrdia” nas universidades. Mas também não
funcionou. As instituições gritaram, o Senado disse não e Bolsonaro
revogou a MP relâmpago.
Na sequência, o governo divulgou o balanço da violência em 2019 e
excluiu, ora, ora, os dados referentes à polícia, que crescem ano a ano.
A alegação foi “inconsistência”, o que, ok, pode acontecer, mas o
passado condena. O governo esconde números incômodos e os policiais são
da base eleitoral e alvo de cooptação por Bolsonaro. Depois de
desmatamento, desemprego, covid-19, emprego... foi só um erro técnico?
Bolsonaro está em meio agora a “ordens absurdas” com efeito bumerangue:
foi ele quem nomeou Weintraub, que não trouxe nenhuma solução, só
problemas. E foi ele quem deu a ordem para as FA não seguirem “ordens
absurdas” e “julgamentos políticos” de outro Poder, o que remete ao
imperial: “A Constituição sou eu”. Há controvérsias. E resistência.
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo