Vozes - Gazeta do Povo
Ressalte-se que o governo socialista da Argentina teve péssimos resultados no enfrentamento à pandemia. Com efeito, em virtude das medidas draconianas de bloqueio impostas pelo presidente, o país foi um dos mais afetados economicamente na região. A pobreza entre os argentinos alcançou índices alarmantes durante o ano. Isso tudo sem que o país tenha conseguido bons resultados no tocante à saúde pública. A Argentina viu o quadro sanitário se deteriorar rapidamente no segundo semestre e hoje está entre as 20 maiores taxas de óbito por milhão de habitantes no mundo.
Esses dados realmente parecem demonstrar que a discussão sobre a liberação do aborto surge muito mais como cortina de fumaça diante de uma gestão caótica e sem resultados, a fim de manter a adesão do eleitorado mais cego e ideológico, do que como resposta a um problema prioritário do povo argentino de modo geral.
Voltando aos dados da pesquisa, ela ainda mostra que 95% dos entrevistados declararam acreditar que a vida inicia na concepção. Essa convicção está em linha com os direitos humanos na região, uma vez que o Pacto de São José da Costa Rica reconhece em seu art. 4º, 1, que: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.
Por fim, 67% das pessoas ouvidas na pesquisa considera que o aborto deve ser proibido sempre, enquanto 25% que deve ser liberado em alguns casos (estupro, perigo de vida para a mãe, malformação fetal).
A discrepância entre a opinião pública generalizada revelada na pesquisa e a maioria parlamentar contra a proteção penal da vida intrauterina é um forte indício de fragilidade da democracia e impotência do povo na Argentina. Aliás, esses são traços marcantes em várias nações da América Latina, fenômeno potencializado em governos socialistas de esquerda ou fisiológicos de direita.
É verdade que os órgãos de representação política não são meros delegados das opiniões majoritárias. Os órgãos legislativos possuem um aspecto deliberativo e não apenas agregativo. Não apenas contam votos e repassam posições majoritárias. Os parlamentares têm condições de trocar argumentos e aprofundar sobre os temas em nível que é inviável para as massas. Isso faz com que, algumas vezes, a posição do Parlamento contrarie a opinião majoritária da população sem prejudicar a substância de uma democracia liberal. Apenas para dar um exemplo: um número razoável de pessoas é favorável à tortura de presos, o que é inaceitável do ponto de vista moral e jurídico. Ainda que essa opinião se tornasse francamente majoritária, as instituições políticas deveriam resistir a ela, e não ceder a pressões que nesse caso poderiam ser descritas como populistas.
Contudo, não é o que ocorre no caso da proteção jurídico-penal da vida humana durante a gestação. O aborto é uma violação grave a direitos humanos, em geral atingindo um número alarmante de vítimas. A prática é francamente cruel, envolvendo enorme violência contra o feto em situação totalmente indefesa. Ademais, é praticado com o assentimento daqueles que teriam moralmente o maior dever de proteção, que são os próprios pais. Não por outro motivo, em regra, o aborto deixa marcas psicológicas profundas e brutalmente negativas no casal. Além disso, a tutela penal da vida humana encontra respaldo no direito constitucional e em dispositivos de direitos humanos, sendo mecanismo absolutamente legítimo para proteção da vida intrauterina.
Por isso, não se justifica que o Parlamento, contrariando opinião popular e de modo intempestivo, fragilize a proteção jurídica da vida humana em seus primeiros momentos, apenas para beneficiar e satisfizer elites e grupos de pressão com forte poder econômico e influência midiática.
André Uliano, Procurador da República. Mestre em Economia e pós-graduado em Direito. Professor de Direito Constitucional - GAZETA DO POVO - Vozes