Vera Araújo — Rio de Janeiro
A Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero (Abraphe) divulgou um mapa com os corredores visuais, que seriam como “ruas” no céu, para organizar o espaço aéreo e garantir a segurança dos voos
O barulho, a princípio, parecia o do cinto de segurança do helicóptero batendo na carenagem da aeronave. Acontece: às vezes o passageiro, por descuido, prende o equipamento do lado de fora ao desembarcar. Quando o para-brisa se estilhaçou diante de seus olhos, o piloto comercial Matheus Braga, de 33 anos, há 10 na profissão, não teve dúvida: seu helicóptero tinha virado alvo de um ataque de traficantes da Vila Cruzeiro, na Penha, Zona Norte do Rio.
Após uma saraivada de tiros, dois perfuraram a aeronave, um risco para o piloto. O episódio ocorreu no último dia 17, uma semana antes da operação das Polícias Militar e Rodoviária Federal (PRF), na mesma favela, na qual 23 pessoas morreram, segundo a Polícia Civil.Relembre: 'Derruba, derruba', dizem criminosos ao atirarem contra helicóptero no Complexo da Penha; veja vídeo
Por causa do ataque ao helicóptero, a Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero (Abraphe) divulgou um mapa com os corredores visuais — que seriam como “ruas” no céu, para organizar o espaço aéreo e garantir a segurança dos voos—, apresentando rotas alternativas para que os pilotos evitem sobrevoar ou mesmo se aproximar de seis favelas do Rio. A região foi pintada com a cor vermelha para servir de alerta sobre os riscos aos pilotos. Em reunião com autoridades do Centro Regional de Controle do Espaço Aéreo Sudeste (CRCEA-SE) da Aeronáutica, o presidente da Abraphe, Thales Pereira, informou sobre a necessidade de mudança nas rotas que sobrevoam ou são próximas às favelas. O Comando da Aeronáutica (Comaer) afirmou que o assunto está sendo estudado.
Mais de 200 tiros
Matheus, que trabalha numa empresa de táxi-aéreo, havia sido contratado para buscar um turista em Angra dos Reis, na Região da Costa Verde,e levá-lo ao Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, por volta de 16h30 do dia 17. Ao deixar o passageiro no destino, o piloto tomou o rumo do Heliporto do Recreio dos Bandeirantes.
Ele recebeu instrução da torre de comando do Galeão para seguir em direção à Igreja da Penha e, chegando lá, foi orientado a seguir pela rota Penha, quando foi atacado. Voava a 700 pés de altitude, o equivalente a 213,36 metros.
— Foi tudo muito rápido. Questão de segundos. Mantive a calma, pois só queria sair dali em segurança. Foram mais de 200 tiros! Quando vi o vídeo com os traficantes comemorando, percebi que a intenção era me derrubar de qualquer jeito, como se fosse um game. O problema é que, principalmente no setor Norte, há dezenas de favelas. Fica difícil escolher o melhor caminho — diz Matheus. Imediatamente após a aeronave ser alvejada, o presidente da Abraphe pediu à regional da entidade no Rio para realizar o levantamento das áreas mais críticas. A maior preocupação era alertar colegas de fora do Rio que, segundo Thales, não têm o mesmo problema em seus estados. De acordo com a entidade, os pontos onde há a probabilidade de as aeronaves virarem alvos são, além da Vila Cruzeiro, o Complexo do Alemão, em Ramos; o Jacarezinho; o Morro da Mangueira; a Barreira do Vasco, em São Cristóvão; e o Vidigal. — Prezamos pela proteção de pilotos e aeronaves durante o voo, porque a questão maior da segurança pública não temos como intervir. A circulação aérea tem que se adequar para evitar que helicópteros sejam alvejados por armamento de guerra — afirma o presidente da Abraphe. — Nós não estamos num estado de guerra declarada, mas temos que desviar o tráfego aéreo para evitar o abate de aeronaves por tiros.
Logo após o ataque ao helicóptero de Matheus, um vídeo viralizou nas redes sociais ao mostrar bandidos comemorando a ação.— Os traficantes incentivam, falam que é para derrubar. É uma situação surreal para nós — ressalta Thales. — O piloto atacado não se machucou por pouco. Felizmente, foram só prejuízos materiais.
O Comaer informou, por nota, que o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) “se mantém disponível para dialogar”, a fim de “elevar cada vez mais os níveis de segurança das rotas aéreas”.A 22ª DP (Penha) apura o crime de tentativa de homicídio. O governo do estado respondeu, por nota, que “tem concentrado esforços” no combate ao tráfico de armas. Disse ainda que, entre agosto de 2020 e maio deste ano, a Polícia Militar retirou 501 fuzis do tráfico.
A nota ainda diz que o comando da PM também recomendou às autoridades da Aeronáutica orientar pilotos para evitar rotas sobre favelas. Na lista do estado estão Vila Cruzeiro, Alemão, Jacarezinho, Manguinhos e Chapadão, em Costa Barros. Segundo o governo, “essas áreas estão sob influência da maior e mais violenta facção do estado, cujos criminosos disparam tiros a esmo sem qualquer compromisso com a vida humana”. [Ao nosso entendimento, nos parece uma situação deveras complicada, já que os bandidos homiziados em áreas de favelas no Rio, se beneficiam de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações policiais naquelas áreas - exceto, se antecedidas de amplo planejamento, comunicação com outros órgãos (o que coloca em risco o indispensável sigilo da operação policial) - incluindo sobrevoo de aeronaves da polícia. Só que os bandidos quando querem brincar de abater helicópteros não se preocupam se são civis ou da polícia.
Nos parece que a solução mais viável, apesar de constrangedora para o Decea, procurar negociar com os criminosos para liberarem em certas horas o tráfego de helicópteros sobre a favela. Talvez seja conveniente que nas negociações Decea x traficantes, haja interveniência do Supremo.]
Vera Araújo - Rio - O Globo