Lembram-se de 2010? Há quase dez anos
a economia brasileira
crescia 7,6%, embalada pelo excepcional quadro global e pelas políticas
de expansão do governo, sobretudo do crédito dos bancos públicos. Esse
artigo não é sobre nada disso.
Em 2010, meu filho, que acaba de completar
15 anos, idade dos alunos
avaliados pelo Pisa, exame que mede a qualidade da educação em mais de
70 países elaborado pela
OCDE, estudava em uma escola particular no Rio
de Janeiro. Era a hora da história, aquele momento em que as crianças
sentam-se ao redor da professora para ouvi-la contar sobre aventuras e
fantasias. Ela havia escolhido uma história sobre piratas, aqueles de
perna de pau, olho de vidro, cara de mau. Corte dessa cena.
Tomada seguinte: em 2010, os
piratas da costa da Somália corriam os
mares a pleno vapor, capturando mercadorias e embarcações. Vocês devem
se lembrar do filme que contou parte dessa história bem real
— Capitão
Phillips, lançado em 2013, protagonizado por Tom Hanks. Pois em 2010, os
piratas da Somália estavam por toda parte. Nas manchetes dos jornais,
na televisão, nas conversas entre familiares e amigos. O adolescente de
agora que então tinha 5 aninhos sempre foi garoto atento.
Os piratas bem
reais da Somália atiçaram sua imaginação de menino.
Retomo a cena na escola. Quando acabou a história, alguém perguntou
para a professora se os piratas existiam.
A professora disse que não,
piratas são da imaginação, da fantasia. Imagino que ela se referia aos
de
perna de pau, olho de vidro, por aí vai. A resposta não agradou um de
seus alunos, que rapidamente disse:
“Mas os piratas existem!”. Quando a
professora insistiu que não, eram apenas personagens em uma história,
ele retrucou:
“E os da Somália?”. Silêncio. Ele ficou tão contrariado
com esse silêncio que a primeira coisa que me contou quando chegou em
casa foi o que havia passado na escola. Eu já sabia que a educação no
Brasil, mesmo nas supostas melhores escolas particulares, deixava a
desejar. Essa história, entretanto, virou espécie de mito familiar sobre
as imensas lacunas da educação brasileira, lacunas que atingem a todos,
dos mais pobres à elite.
Aos fatos. No último exame Pisa para o qual temos os dados completos,
o de 2015 — o exame é aplicado a cada três anos e ainda não temos as
informações de 2018 —, o desastre da educação no Brasil ficou mais uma
vez explícito.
[atenção: 2015 - Bolsonaro sequer pensava em ser candidato a presidente da República.] O Pisa define sete níveis de proficiência em três áreas:
ciências, matemática, e leitura. Os níveis mais baixos são o 1a e o 1b,
que retratam a incapacidade de alcançar o
nível mínimo de proficiência,
considerado como o alcance do nível 2. O Pisa também traz informações
sobre o nível socioeconômico dos alunos avaliados em cada país, definido
por meio de um índice com metodologia clara. Desse modo, é possível
avaliar o desempenho nas três áreas das diferentes classes sociais.
Agora, preparem-se.
Comecemos pela matemática. Segundo os dados do Pisa, em 2015 86% dos
alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2; 83%
dos alunos de classe média baixa e média não alcançaram o nível 2; 72%
dos alunos de níveis socioeconômicos mais altos não alcançaram o nível
2. A desgraça no manejo de conceitos, operações, e raciocínio matemático é generalizada.
Nas ciências, 72% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não
alcançaram o nível 2. Isso se compara a 60% para a classe média baixa e
para a classe média, e a 35% para os níveis socioeconômicos mais altos. A
desigualdade em ciências é clara, mas o resultado é desastroso para um
país que será atingido em breve pelas mudanças no mercado de trabalho
provenientes dos avanços tecnológicos que exigirão alto grau de
proficiência em matemática e ciências.
Por fim, o trágico acidente de leitura. São 65% de analfabetos
funcionais nos níveis socioeconômicos mais baixos, 53% nas classes
médias e 32% entre os filhos das elites do país.
Repito: um terço dos
filhos da elite brasileira são, pelo Pisa, analfabetos funcionais. Está aí a pirataria cometida por governos sucessivos, acentuada pela
atual guerra ideológica do bolsonarismo, que tem a educação como alvo, e
um ministro da pasta sem preparo ou estratégia. Deixo-os com o verbete.
Pirataria: crime de depredação cometido no mar de lama contra embarcações e passageiros responsáveis pelo futuro da nação.
Monica De Bolle, Revista Época