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terça-feira, 27 de julho de 2021

Tucanos deveriam parar de dourar a pílula lulista - Gazeta do Povo

A terceira via nasceu como uma espécie de esquerda mais moderada, nunca como uma força realmente equidistante entre esquerda e direita. O discurso era que o comunismo falhara, mas o capitalismo também era muito imperfeito e precisava de uma face mais "humana" - leia-se um estado inchado e paternalista que cuidaria de todos do berço ao túmulo. Ou seja, na prática, um socialismo com concessões ao mercado. Ainda assim, socialismo, mesmo que Fabiano, mais "light".

É por isso que a disputa entre PT e PSDB no Brasil, como se fosse uma disputa entre esquerda e direita, nunca passou de um teatro das tesouras, uma forma de limitar a "briga" ao espectro esquerdista, deixando de fora qualquer visão de mundo mais à direita. Os tucanos faziam mais concessões ao mercado, tinha postura mais moderada, mas nunca deixaram de ser de esquerda, com uma visão "progressista" nos costumes e um papel de ativista social atribuído ao estado. A social-democracia é esquerda em qualquer lugar do mundo: um tipo de "socialismo com democracia".

Na prática, o socialismo "raiz" nunca se mostrou compatível com a democracia, pois quem prega a igualdade forçada de resultados acabará impondo à força, pela coerção estatal, um modelo opressor. Mas, justiça seja feita, é viável sim ter a tal social-democracia sem assassinar junto a própria democracia. De fato, a imensa maioria dos modelos ocidentais hoje é exatamente isso, o que não quer dizer que seja eficiente ou justo. Mas se mostra sustentável, ao menos.

Os social-democratas da tal terceira via, porém, insistem em dourar a pílula do comunismo ou do socialismo, a realidade de todo experimento utópico comunista. Por compartilharem da mesma essência, mas divergindo dos métodos, esses "socialistas lights" acabam passando pano para os seus "primos" radicais. Condenam muitas vezes os meios, é verdade, mas sem a convicção de que deveriam condenar junto toda a ideologia que leva inexoravelmente aos mesmos fins.

O editorial do Estadão hoje, um jornal com esse perfil tucano, deixa isso bem claro. Condena a inclinação totalitária de Lula, mas cheio de "dedos", com a esperança de que Lula possa ter alguma grandeza de abandonar sua defesa apaixonada por Cuba, ou que isso tudo não passe de um show para atrair universitários românticos. Falta ao jornal dar a real dimensão do problema. Eis um trecho: Lula não é um democrata, e seu apoio ao regime castrista, bem como ao governo tirano da Venezuela, é prova eloquente disso.   

Seus fanáticos seguidores dizem, cinicamente, que Lula jamais atentou contra a democracia, mas a vocação autoritária do PT e de seu líder é incontestável – atestada pelo aparelhamento petista da máquina do Estado, pela desbragada corrupção e pelo estímulo ao conflito entre “nós” e “eles”, elementos que, somados, arruínam a democracia.


Até aqui, tudo bem. Mas aí o jornal rechaça a ideia de que Lula seja de fato um socialista:  A Cuba castrista não inspira Lula da Silva por causa do socialismo. Como se sabe, o ditador Fidel Castro alinhou-se à União Soviética só depois da Revolução, e isso porque Moscou prometeu lhe dar generosa mesada, comprar açúcar cubano e armar a ilha contra os Estados Unidos, e não porque estivesse interessado no comunismo. Este era somente um pretexto retórico para implantar, primeiro, sua ditadura pessoal, depois, um regime familiar e, agora, um clã totalitário. Do mesmo modo, o discurso socialista, na boca de Lula, é apenas um embuste para enganar universitários e artistas.

Ora bolas, todo comunista fez a mesma coisa! Sem qualquer exceção, todo líder comunista usou a retórica igualitária para concentrar poder numa casta e parir um regime familiar, personalista e totalitário. Onde foi diferente? Por acaso algum experimento comunista levou a algo diferente, a uma "ditadura do proletário" em vez de uma ditadura sobre o proletário? Comunismo é o fim utópico pregado, socialismo é a prática: poder concentrado numa elite que toma o estado de assalto.

O editorial termina citando notórios socialistas, como o escritor Saramago, que "rompeu" com Cuba por não tolerar mais tanta opressão - sendo que ele a tolerou por décadas, enquanto milhares morriam fuzilados no paredão. E pede um ato de "grandeza" semelhante de Lula: "Lula poderia ter a grandeza de pelo menos parar de elogiar a terrível ditadura cubana. Ao não fazê-lo, autoriza a suposição de que, no fundo, quer mesmo é encarnar Fidel e governar até a morte – e além".

Lula e grandeza na mesma frase? Suposição de que ele quer mesmo encarnar Fidel Castro? 
Por que o jornal não consegue encarar a realidade, de que Lula abertamente professa isso? 
Por que o jornal trata como um "jogo retórico" aquilo que é uma confissão declarada?
O tucano Xico Graziano, que vem elogiando até Ciro Gomes como nome aceitável da "terceira via", compartilhou o editorial com a passagem de que Lula quer apenas enganar universitários. 
Ele não sabe que o risco socialista é bastante real e concreto? 
Por que ele finge não saber de algo tão evidente? 
Vide a Argentina e a Venezuela, caminhando a passos largos rumo ao destino cubano.
Enquanto isso, seguro da cumplicidade de boa parte da imprensa, que é tucana ou mesmo petista, o cínico Lula diz que era um presidente de todos e que o Brasil precisa de um presidente civilizado e humanista: Civilizado como o "presidente" da Venezuela? Humanista como o "presidente" de Cuba? 
Se querem ser levados a sério como defensores de uma esquerda realmente democrata, que tem um papel legítimo no debate político com liberais e conservadores, os tucanos precisam parar de dourar a pílula lulista, parar de tapar o sol com a peneira acerca da visível ameaça socialista que o PT representa para o país. 
Em vez disso, eles preferem ironizar a direita que faz tal alerta, perguntando de forma debochada: e o PT? Como se o Brasil não corresse nenhum risco de cair nas garras socialistas. Corre sim, e não é nada desprezível - até porque conta com uma ajuda suprema!

Rodrigo Constantino, colunista - Gazeta do Povo


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O ciclo da frustração - William Waack

O Estado de S.Paulo

As crises nos vizinhos sul-americanos têm poderoso e perigoso denominador comum

Não é difícil encontrar um denominador comum para as sucessivas e paralelas crises que tomaram conta (por ordem alfabética) de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, para ficar apenas com a América do Sul. O “ciclo” atual desses países é o da “era do descontentamento”. Ou da era da frustração, como preferir.
Em seu conjunto, os países desta região só se comparam aos do Oriente Médio quanto ao número de seus habitantes que declaram ter vontade de seguir a vida em outro lugar (no Brasil, alcança a faixa dos 30%; fonte é o Gallup). São os países nos quais existe a mais aguda percepção no planeta de que seus regimes políticos são tomados pela corrupção. E os de mais baixo desempenho econômico na comparação com todas as outras regiões.
Tomados individualmente, cada um desses países teria razões próprias, locais, culturais e históricas para os períodos de crise econômica, turbulência e instabilidade políticas. Mas há algo comum a todos: um sentimento difuso de frustração trazido pela demora em romper a perceptível estagnação que caracteriza um conjunto de nações preso à armadilha da renda média, e cuja distância em relação aos países mais avançados continua praticamente a mesma de uma geração atrás.
A punição a quem está no poder é quase imediata, não importa se de esquerda ou direita. Na Argentina, no Chile ou no Brasil, recentes resultados eleitorais dividem um mesmo pano de fundo: um acentuado desejo de mudança trazido menos pela esperança num futuro melhor e muito mais pela indignação com a corrupção, medo com a criminalidade e profunda desconfiança na capacidade do “sistema” de resolver problemas agudos – “sistema” passa a ser tudo, da administração pública à imprensa, passando (claro) pelo Judiciário. Ganha quem prometer derrotar o “sistema”.

Acabam sendo literalmente catapultados para o centro de decisões figuras de políticos de personalidades e biografias bastante diversas (como são Bolsonaro, Macri e Piñera, para ficar apenas nos casos de Brasil, Argentina e Chile), mas todos herdeiros de contextos políticos caracterizados, de um lado, por ausência de claras maiorias parlamentares. E pela presença, por outro lado, de bem constituídos grupos de interesses e corporações dentro da máquina do Estado (Brasil e Argentina), por delicadas situações fiscais que obrigam os governos a reduzir ou acabar com subsídios em setores como combustíveis ou transporte (Chile), no que acaba sendo entendido como afronta a uma população já atravessando graves dificuldades.
Todos apresentam um quadro muito semelhante de desequilíbrio, concentração e desigualdade de renda. É consideravelmente distinto o apego de faixas da população a postulados ideológicos quando se compara o Chile (onde há um espectro clássico de “social-democracia” versus “democracia cristã”), Argentina (e seu peronismo, que dificilmente encontra comparações) e o Brasil (no qual impera uma maçaroca ideológica). Em geral, porém, parcelas significativas da população, embora não detenham conhecimento exato das respectivas taxas de crescimento de suas economias, têm uma noção clara do fato do prometido futuro tardar tanto a chegar.
A questão, portanto, não é a do “contágio” ao qual vozes do governo brasileiro se referiram quando, finalmente, perceberam a gravidade do que acontece em vizinhos como Argentina e Chile. Muito menos se trata de alguma “conspiração” (o “esquerdista” Evo Morales está sendo contestado assim como os “direitistas” no Chile e Argentina). A questão é levar adiante reformas amplas e profundas que rompam um ciclo de estagnação. Que, ao se transformar em ciclo de frustração, cobra altíssimo preço político.
 
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo