O Estado de S.Paulo
As crises nos vizinhos sul-americanos têm poderoso e perigoso denominador comum
Não é difícil encontrar um denominador comum para as sucessivas e
paralelas crises que tomaram conta (por ordem alfabética) de Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela,
para ficar apenas com a América do Sul. O “ciclo” atual desses países é o
da “era do descontentamento”. Ou da era da frustração, como preferir.
Em seu conjunto, os países desta região só se comparam aos do Oriente
Médio quanto ao número de seus habitantes que declaram ter vontade de
seguir a vida em outro lugar (no Brasil, alcança a faixa dos 30%; fonte é
o Gallup). São os países nos quais existe a mais aguda percepção no
planeta de que seus regimes políticos são tomados pela corrupção. E os
de mais baixo desempenho econômico na comparação com todas as outras
regiões.
Tomados individualmente, cada um desses países teria razões próprias,
locais, culturais e históricas para os períodos de crise econômica,
turbulência e instabilidade políticas. Mas há algo comum a todos: um
sentimento difuso de frustração trazido pela demora em romper a
perceptível estagnação que caracteriza um conjunto de nações preso à
armadilha da renda média, e cuja distância em relação aos países mais
avançados continua praticamente a mesma de uma geração atrás.
A punição a quem está no poder é quase imediata, não importa se de
esquerda ou direita. Na Argentina, no Chile ou no Brasil, recentes
resultados eleitorais dividem um mesmo pano de fundo: um acentuado
desejo de mudança trazido menos pela esperança num futuro melhor e muito
mais pela indignação com a corrupção, medo com a criminalidade e
profunda desconfiança na capacidade do “sistema” de resolver problemas
agudos – “sistema” passa a ser tudo, da administração pública à
imprensa, passando (claro) pelo Judiciário. Ganha quem prometer derrotar
o “sistema”.
Acabam sendo literalmente catapultados para o centro de decisões figuras
de políticos de personalidades e biografias bastante diversas (como são
Bolsonaro, Macri e Piñera, para ficar apenas nos casos de Brasil,
Argentina e Chile), mas todos herdeiros de contextos políticos
caracterizados, de um lado, por ausência de claras maiorias
parlamentares. E pela presença, por outro lado, de bem constituídos
grupos de interesses e corporações dentro da máquina do Estado (Brasil e
Argentina), por delicadas situações fiscais que obrigam os governos a
reduzir ou acabar com subsídios em setores como combustíveis ou
transporte (Chile), no que acaba sendo entendido como afronta a uma
população já atravessando graves dificuldades.
Todos apresentam um quadro muito semelhante de desequilíbrio,
concentração e desigualdade de renda. É consideravelmente distinto o
apego de faixas da população a postulados ideológicos quando se compara o
Chile (onde há um espectro clássico de “social-democracia” versus
“democracia cristã”), Argentina (e seu peronismo, que dificilmente
encontra comparações) e o Brasil (no qual impera uma maçaroca
ideológica). Em geral, porém, parcelas significativas da população,
embora não detenham conhecimento exato das respectivas taxas de
crescimento de suas economias, têm uma noção clara do fato do prometido
futuro tardar tanto a chegar.
A questão, portanto, não é a do “contágio” ao qual vozes do governo
brasileiro se referiram quando, finalmente, perceberam a gravidade do
que acontece em vizinhos como Argentina e Chile. Muito menos se trata de
alguma “conspiração” (o “esquerdista” Evo Morales está sendo contestado
assim como os “direitistas” no Chile e Argentina). A questão é levar
adiante reformas amplas e profundas que rompam um ciclo de estagnação. Que, ao se transformar em ciclo de frustração, cobra altíssimo preço político.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo
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