As manifestações do general Mourão mudam
o cenário. Pode ser
sintoma do surgimento do único perigo para nossas instituições, o envolvimento
político das Forças Armadas
UMA
VEZ PE SEMPRE PE
Era consenso entre os
analistas que a crise política brasileira atual trazia uma característica
positiva: o silêncio das Forças Armadas. De fato, a
ausência de manifestações de chefes militares da ativa era garantia de que não
haveria abalos constitucionais. Poderia
haver até impeachment da presidente, mas não golpe.
Impeachment, como o de Collor, é, por
definição, medida legal prevista na
Constituição.
Para haver golpe, seria necessário que interviesse força
extraconstitucional que só poderia vir das Forças Armadas. A
marca positiva já não existe desde 25 de agosto deste ano, Dia do Soldado.
Nesse dia, o general
de exército Mourão, comandante do Comando Militar do Sul, complementou o texto da ordem do dia do
comandante do Exército, general Enzo Peri, declarando,
diante da tropa, em Porto Alegre, que ainda tínhamos muitos inimigos internos,
mas que eles se enganavam achando que
os militares estavam desprevenidos. E desafiou: “Eles que venham!”.
BATALHÃO DE POLICIA DO EXERCITO
O general Mourão, um gaúcho de 61
anos, comanda, desde
28 de abril de 2014, 54 mil soldados, um
quarto das forças do Exército brasileiro. Falante, o general expressa com
frequência suas opiniões políticas, encontráveis na internet. De um lado, admite
abertamente ter havido tortura e mortes durante o período autoritário (em sua terminologia) e que os
documentos da época devem ser abertos à consulta pública por ser parte da
história. De outro, parece ainda muito marcado pelos
acontecimentos de 1964, embora tivesse à época 11 anos e só viesse a se tornar
aspirante em 1975.
Longe de
serem história, os acontecimentos de 50 anos atrás parece
ser para ele memória viva, talvez
graças à influência do pai, um general muito ativo no golpe civil-militar. Ele ainda vê, em pleno século XXI, como real a ameaça comunista no país. Nas celebrações deste ano do 31 de março
de 1964, diante de oficiais da reserva, celebrou os que impediram que o país
caísse “nas mãos
da escória moral que, anos depois, o povo brasileiro resolveu por bem colocar
no poder”. Que eu saiba, não
houve até agora qualquer reação de seus superiores militares, do ministro da
Defesa ou da chefe suprema das Forças Armadas (artigo 142 da Constituição), a presidente da República. A
repercussão na mídia não fez justiça à importância do tema.
O comportamento das Forças
Armadas após 1985 em relação à vida política do país, à exceção da recusa em abrir a
documentação do período militar, tinha
sido até agora quase modelar. Minha impressão pessoal, derivada de contatos
com oficiais-alunos da Escola de Guerra Naval, era a de que estavam todos
convictamente voltados para suas atividades profissionais, vendo 1964, de fato,
como história.
As manifestações públicas do
general Mourão mudam o cenário. Pode ser sintoma do surgimento do único perigo real para
nossas instituições, o envolvimento político das Forças Armadas, um
retrocesso de 30 anos. E o general ainda
tinha que ter o mesmo nome daquele outro que, em 31 de março de 1964, colocou suas tropas nas ruas, em Juiz de Fora, deslanchando o
golpe civil-militar de 1964.
Está acesa a luz amarela.
Fonte: José Murilo de Carvalho – O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário