A figura oculta que comanda o exército extremista do EI e o front digital do califado do Estado Islâmico
Enquanto muitos de seus seguidores não se importam de postar selfies
para propagar a mensagem do Estado Islâmico, o líder do grupo aparece o
mínimo possível, por questões de segurança e para aumentar a mística em
torno daquele que se diz o sucessor de Maomé. Abu Bakr al-Baghdadi
anunciou a criação do califado em julho de 2014, instaurando um regime
que promove execuções em massa, estupros e escravidão. Só foi visto em
vídeo uma vez, durante um sermão em Mossul (Iraque). Para espalhar sua
biografia, como parte da propaganda do EI, ele conta com um exército de
mídia montado por Ahmed Abousamra, um sírio que se formou em Tecnologia
da Informação em Boston (EUA) e teria sido morto em julho, durante um
bombardeio.
Baghdadi: califa só foi visto em vídeo uma vez, em missa no Iraque,
- AP / 5-7-2014
A máquina que Abousamra formou também dissemina o culto à
personalidade de Baghdadi. Sites jihadistas examinados pelo jornalista
Abdel Bari Atwan informam que o “califa Ibrahim”, como o líder quer ser
chamado, vem de uma família iraquiana com vários imãs e teria mestrado e
doutorado em História e Cultura Islâmica pela Universidade de Bagdá.
São informações que visam a legitimar suas credenciais religiosas para
que não seja visto apenas como um líder militar.
Em seu livro, Atwan narra as impressões de um aliado que passou dois
anos ao lado de Baghdadi numa prisão militar americana no Iraque, a
partir de 2004. Segundo essa fonte, o líder do EI é um homem carismático
e controlado, que carregava um permanente sorriso no rosto. Ao ser
libertado, ameaçou o soldado americano que guardava os portões de saída:
“Nós vamos encontrá-lo de novo nas ruas, em algum lugar, algum dia.”
Grupo jihadista expande uso das redes sociais para recrutar e disseminar terror
Uma britânica que vive no território ocupado pelo Estado Islâmico
(EI) postou há alguns meses em sua conta no Twitter a foto de uma
sobremesa de creme com pedaços de chocolate feita em casa, repetindo o
que milhões de pessoas fazem o tempo todo nas redes sociais. A diferença
é que poucas horas depois, com o mesmo tom banal, ela usou o microblog
para dizer que a “alma” de seu marido acabara de fazer a melhor
“transição” possível e pediu que os céus o recebessem como mártir,
sugerindo que ele morrera numa missão suicida. Não há como saber a
verdadeira história da internauta identificada como Al-Britaniya e cujos
posts, assim como muitos outros, foram examinados pelo jornalista
palestino Abdel Bari Atwan numa investigação sobre a ascensão do EI.
O
que Atwan pode afirmar com certeza é que nenhum outro grupo terrorista
jamais soube explorar a tecnologia com tanta eficácia quanto os
jihadistas que levaram o horror a Paris no último dia 13. Nas redes,
eles não apenas recrutam integrantes e divulgam sua barbárie, como
também vendem a imagem ilusória da guerra santa como se fosse um estilo
de vida.
Para Atwan — um editor que ficou conhecido por ter entrevistado Osama
bin Laden duas vezes na década de 1990 e que teve acesso a lideranças
do EI —, a arma mais poderosa do grupo que ocupa parte da Síria e do
Iraque é sua máquina de tecnologia da informação. É um arsenal que
mescla o discurso fanático com a linguagem e a estética das redes
sociais, como imagens no Instagram de extremistas islâmicos ao lado de
gatinhos ou de mães com crianças armadas com Kalashnikov. No
recém-lançado livro “Islamic State: the Digital Caliphate” (“O Estado
Islâmico: o califado digital”, ainda sem tradução para o português), o
jornalista descreve uma impressionante estrutura que inclui jovens
programadores, hackers, videomakers, jornalistas, editores e
desenvolvedores de aplicativos.
A missão é pintar assassinos como heróis
e recrutar mais integrantes, paradoxalmente usando os instrumentos do
século XXI para pregar a volta ao modo de vida adotado pela primeira
geração de muçulmanos no século VII, de acordo com sua visão totalitária
do Islã.
‘Jihadista cool’
Nessa batalha virtual, eles
já criaram uma versão própria e fechada do Facebook; lançaram games em
que a meta é massacrar soldados americanos; editam a revista digital
“Dabiq”; e compartilham vídeos feitos com câmeras GoPro, portáteis e de
alta resolução, que permitem a produção de diários visuais. “O fluxo
incessante de informações dos extremistas também é usado para construir a
imagem de um lugar emocionalmente atraente ao qual as pessoas acreditam
‘pertencer’, onde todo mundo é ‘irmão’ ou ‘irmã’. Uma espécie de gíria,
fundindo adaptações ou abreviações de termos islâmicos com a linguagem
de rua, está em evolução entre a fraternidade de língua inglesa nas
plataformas de mídia social, em uma tentativa de criar um ‘jihadista cool’”,
escreve Atwan. Baseado em Londres, ele é o editor do site de notícias
árabe Ray al-Youm.
Para escrever o livro, entrevistou centenas de
pessoas na fronteira entre a Turquia e a Síria e se comunicou com
informantes do EI. — Eles estão ganhando a guerra digital. Agentes do mundo todo estão
trabalhando contra os extremistas e, ainda assim, eles conseguem postar
milhares de tuítes diariamente. Manipulam a jihad cibernética com ajuda
de especialistas. Para essas pessoas não se trata de um emprego, mas de
uma missão — explica Atwan.
Os atentados em Paris voltaram a mostrar como os terroristas estão
deixando as agências de inteligência para trás. Eles usaram o aplicativo
Telegram, que permite a troca instantânea de vídeos, textos e mensagens
de voz, para reivindicar os ataques, já que o Twitter e outras
plataformas mais populares vêm redobrando os esforços para bloquear
extremistas. O principal apelo do serviço, criado há dois anos por dois
exilados russos que se opõem ao governo de Vladimir Putin, é o envio
gratuito de mensagens criptografadas.
As contas usadas pelos radicais em
diferentes plataformas acabam sendo bloqueadas, como aconteceu nos
últimos dias com o Telegram, que anunciou ter suspendido 78 canais
ligados ao EI. Segundo Atwan, em 2014 o governo americano removeu 45 mil
sites ou contas em redes sociais relacionados ao EI, enquanto a polícia
britânica deleta 1.100 itens por semana. Porém, na vertiginosa rotina
digital de uma geração que não sabe o que é a vida sem internet, as
mensagens sempre encontram um caminho virtual para atingir seu público.
Propaganda viral
Pesquisas feitas pelo Centro
Internacional para Estudos da Radicalização, da universidade King’s
College de Londres, indicam que não são apenas os combatentes que se
dedicam a viralizar a propaganda do terror. A guerra virtual conta com o
que os especialistas definem como uma crucial comunidade de
disseminadores: internautas que não estão nos campos de batalha na Síria
ou no Iraque e se dedicam a agregar uma imensa quantidade de
informações vindas de diferentes fontes para distribuir o brutal
discurso do EI, alimentando o conflito à distância.
Assim, imagens de
operações militares no Oriente Médio e de execuções, que são prática
comum entre as brigadas fanáticas, acabam nas telas de smartphones do
mundo inteiro em tempo real. Uma parte dos simpatizantes vai muito além
do apoio virtual, deixando suas casas em cidades como Londres e Paris
para se juntar aos fundamentalistas.
Prometendo o paraíso e a salvação,
com a ajuda de um conteúdo cuidadosamente produzido para influenciar os
jovens, os extremistas seduzem os que não se identificam com os valores
ocidentais, manipulando as mensagens do Alcorão. — Os terroristas exploram narrativas que todos os muçulmanos
conhecem, como a da invasão das Cruzadas. Para piorar a situação,
governos árabes autoritários, para desviar a atenção de sua própria
responsabilidade para com os desafios de seus países, fazem propaganda
contra o Ocidente dia e noite, acusando países ocidentais por toda a
humilhação e alienação que alguns muçulmanos sentem — analisa Nadia
Oweidat, PhD em Estudos Orientais pela Universidade de Oxford, que
pesquisa o uso da internet pela juventude árabe.
Especialista em terrorismo islâmico, Atwan passou três dias em 1996
nas cavernas afegãs de Tora Bora, onde Bin Laden, que cinco anos depois
comandaria os atentados de 11 de Setembro, se escondia. Uma das
diferenças entre a al-Qaeda e o EI, diz ele, é que o grupo comandado
pelo terrorista saudita enfatizava a vingança contra os EUA e seus
aliados, enquanto a nova geração de terroristas, que se fortaleceu com o
vácuo de poder na Síria, acredita que pode espalhar o caos entre a
maior quantidade possível de “infiéis” para expandir o Islã sob sua
ótica radical. Para isso, contam com a tecnologia.
— Eles têm especialistas que serviam ao ditador Saddam Hussein e,
além disso, recrutam militantes no Ocidente que têm um alto nível de
instrução e dominam as mídias sociais. Não estamos falando de amadores —
diz Atwan, lembrando que, se Bin Laden dependia de veículos como a TV
Al-Jazeera para divulgar suas mensagens, o EI explora o imediatismo de
canais como o YouTube com muito mais liberdade.
A capacidade tecnológica do EI também facilita a manipulação de
fundos. A imprensa britânica informou que o grupo já teria juntado uma
fortuna em bitcoins, moeda virtual que pode ser negociada sem
instituições financeiras. O próximo passo dessa guerra on-line, teme
Atwan, poderia ser um ataque cibernético para atingir alvos como o
Pentágono.
— Eu não ficaria surpreso — resume.
Fonte: O Globo
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