De paz e amor a jararaca
A crise
brasileira é tão asfixiante que às vezes preciso de uma pausa, ouvir música,
ler algumas páginas de romance. Em síntese, recuperar o fôlego. As crises
assumem ritmos mais rápidos no seu final. A reação de
Lula na entrevista coletiva, ao sair da PF, não me pareceu a de um candidato.
Em 2002 foi difícil vencer com o “Lulinha paz e
amor”.
Em 2018 será impossível vencer como jararaca. Um
candidato não se identifica com uma cobra peçonhenta. Nem se considera a
alma mais honesta do Brasil. Verdade que seu marqueteiro está na cadeia. Mas
onde está a intuição política que sempre lhe atribuem?
Ele perdeu a cabeça e, com ela, a chance de
representar a serenidade do inocente. Seu
marqueteiro representou. Não evitou a cadeia, mas, pelo menos, era um
script mais elaborado. Lula queria ser algemado. O marqueteiro e a
mulher, também. Eles colocaram as mãos para trás,
incomoda menos que as algemas reais, mas não tem o mesmo efeito. No
fundo, um tremendo esforço para se fazer de vítima, conquistar pela emoção a
simpatia que os fatos liquidaram.
Na Justiça, a decisão vai
trabalhar com os fatos. Se alguém, realmente, quer contestar sua provas, precisa argumentar
também com evidências. Nem sempre as decisões na esfera do crime são bem
recebidas. Em muitos pontos do Rio, prisões resultam em
protestos, queima de pneus e bloqueios. Alguns líderes religiosos,
quando presos, também emocionam seu rebanho.
No campo da política, há sempre o cuidado com os conflitos sociais.
Para
quem viu conflitos sociais, o que aconteceu na sexta passada foi apenas uma
briga de torcidas e, na verdade, mais pacíficas que as de futebol. Leio num
jornal brasileiro que iriam buscar, entre outros, um gesto de solidariedade de
Nicolas Sarkozy. Leio num jornal francês
que Sarkozy também está às voltas com a polícia. Apesar de seu ritmo, os
últimos dias têm trazido uma ponta de otimismo, mesmo nos mercados, que são tão
voláteis.
Esse otimismo está baseado na queda de Dilma,
mas deve ser estendido também a Eduardo Cunha. Os dois são rejeitados
pela maioria. Não se trata apenas de festejar uma queda, desfazer-se de uma
pedra no caminho. É criar uma chance de, superando o impasse político,
recuperar a economia.
O que move as pessoas no domingo
não é só a unânime luta contra a corrupção, mas também a clareza sobre as dificuldades
cotidianas. Elas podem não ter uma noção clara do que deva ser feito. Mas sabem que algo precisa ser feito. E urgente. Sempre que
foi preciso, a sociedade brasileira manifestou-se claramente. Será assim no
domingo e, para dizer a verdade, não acredito em conflitos, como algumas vozes
do PT sugerem e Dilma confirma, a seu modo, pedindo paz.
As coisas vão se resolver de
forma tranquila e o bicho-papão não tem como amedrontar ninguém. Escaramuças pode haver, mas
seriam mais um caso de polícia: mais gente presa e
neutralizada. É ingênuo supor que as pessoas, dando-se
conta de que o país está à deriva, com um governo
que se elegeu com grana da Petrobras, numa enorme crise econômica, vão ficar em casa só porque uns caras de camisa vermelha fazem cara feia ou gestos
obscenos com o dedo.
Quando as pessoas denunciam a
corrupção estão baseadas em fatos reais, documentados, investigados com rigor. Sabem que a Petrobras foi
saqueada, sabem dos milhões de dólares que foram repatriados. Não adianta cara
feia. Se isso fosse uma saída histórica, bastava saquear o país e dizer: não me
prendam porque senão vamos para as ruas gritar; não apareçam para protestar
porque estou bravo, viro uma jararaca.
Outro
dia, o bispo auxiliar de Aparecida
recomendou aos seus fiéis pisarem na cabeça da jararaca. E um juiz condenou um adversário do PT a pagar multa de R$
1,00 por ter criticado o partido. E
ironizou que é um partido que tem a pessoa mais honesta de todas. O bispo via a luta
contra a jararaca como a luta entre o bem e o mal. Quem se colocou como cobra venenosa foi o
próprio Lula. E o fez num recado para a Justiça. É uma declaração
subconsciente de culpa: jararaca eu sou, acontece que vocês não atingiram minhas
funções vitais, sigo sendo uma cobra venenosa.
Dilma reclamou de injustiça, mas
até hoje não defendeu Lula no mérito. Colaborou na forma: protestou pelo fato de a Lava
Jato tê-lo levado a depor debaixo de vara.
Inconscientemente, Lula pediu para ser destruído. O bispo
levou-o ao pé da letra. A Lava Jato certamente entendeu de outra forma. E
optou pela pesquisa. São os fatos que já existem e os que ainda não foram
divulgados que vão definir o destino do governo e de Lula.
Tanto parlamentares como juízes
precisam saber claramente o que a sociedade pensa. Não trabalham com pesquisa e,
de qualquer forma, não se antecipam nunca. São viciados no único estímulo: um sopro na nuca, de preferência um vento bem forte, 100 km
por hora. Em outras palavras, a manifestação de domingo pode ser o sopro
que falta para romper o impasse político. Mas, de qualquer maneira, a vaca já foi pro brejo. Não há horizonte com
o governo Dilma, exceto empobrecer mais, enquanto ela luta por se agarrar no
cargo.
No
domingo há, ainda, a chance de uma
aproximação maior de todos os que querem mudança. É fundamental que estejam
próximos durante a travessia até 2018. Esta, sim, já me preocupa mais que as bravatas de Lula. Precisa de um mapa do caminho para recomeçar em 2018
com a economia recuperada e um grau de consciência nacional que não deixe
jamais o Brasil chegar ao ponto a que chegou.Essa é
minha esperança. Por ela vou às ruas. Não para me expressar, pois isso posso
fazê-lo com liberdade na imprensa. Nem para flertar com a política,
interesses partidários ou eleitorais. Vou
para a rua porque acho que é o lugar onde devem estar todos os que queiram
tirar o Brasil do buraco e encerrar este triste episódio histórico.
Fonte: Estadão – Fernando Gabeira
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