Veredicto
dado pela maioria da Corte subordina o enquadramento de governadores e
prefeitos na lei à
aprovação por dois terços de assembleias e câmaras
Há
meandros da política e das interpretações jurídicas muito tortuosos. Quando se
conectam os dois, então, podem surgir situações preocupantes. Na política brasileira, a corrupção é, já há algum tempo, um inimigo a ser vencido. E
neste embate, a aprovação da Lei da Ficha Limpa, em 2011, a partir de um
movimento popular sustentado por centenas de milhares de assinaturas de
eleitores, foi uma vitória memorável.
Por meio
da nova lei, a Justiça eleitoral passou
a poder barrar a candidatura de condenados em segunda instância, não sendo
mais necessário aguardar o “transitado em
julgado”, ou seja, a validação do veredicto na
última instância. Muitos se valeram do
preceito constitucional da “presunção
de inocência” para driblar outra imposição da Carta
— que o candidato deve ser probo e de reputação ilibada. Com a
eternização de processos conseguida por meio de incontáveis recursos, gente com
prontuário e processo judicial confirmado em segundo julgamento se elegia e
passava a se proteger sob as imunidades concedidas aos representantes do povo.
Grande golpe.
A questão
parecia vencida, mas, há pouco, uma
interpretação surpreendente da maioria do Supremo desidratou parte da Ficha
Limpa. Entendeu a Corte, ao julgar um processo, que a condenação de
prefeitos e governadores por tribunais de contas, até agora suficiente para
enquadrá-los na legislação saneadora aprovada em 2011, precisará, para isso, ser sancionada por no mínimo dois terços das respectivas
casas legislativas.
Ora, na
prática, o STF torna impune boa parte dos prefeitos e governadores, os quais,
dada a prática usual do fisiologismo no relacionamento entre Executivo e
Legislativo, costumam controlar assembleias e câmaras. Há, no caso, uma
discussão de tecnicalidades sobre “contas
de gestão” — de responsabilidade direta do governador e prefeito — e “contas de
governo”, relacionadas à execução do orçamento, conforme planos e programas
do Executivo. Mas o que importa, para a sociedade, é que, como disse o ministro
da Corte Luiz Roberto Barroso, voto vencido neste julgamento, a responsabilidade de julgá-las seja dos
tribunais de contas.
Se
a Lei da Ficha Limpa não puder ser acionada contra políticos maus
administradores — de má-fé ou não —,
porque eles controlam câmaras e assembleias ou, tão grave quanto, sequer
deixam o parecer do tribunal ser apreciado por deputados e vereadores, parcela
ponderável da eficácia da legislação terá sido revogada pelo STF. No
entendimento acertado de Barroso, ninguém pode dizer: “Eu sou ladrão, mas tenho maioria da Câmara Municipal”. Pois poderá, caso o entendimento não seja revisto. Para
isso, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral deverá impetrar um “embargo de declaração” junto à Corte. É a chance de o Supremo recolocar em vigor
a Ficha Limpa, que ele próprio declarou constitucional em 2012.
Fonte: Editorial - O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário