De Rodrigues.Alves@com para Bolsonaro - Elio Gaspari
Folha de S. Paulo - O Globo
A varíola foi extinta, mas a ambição dos homens é mal incurável
É o presidente quem desafia as autoridades
sanitárias, buscando fortalecer-se politicamente pelo menoscabo de uma pandemia
Senhor presidente,
No domingo esteve aqui o Oswaldo Cruz,
assombrado. Ele viu como o senhor vem se comportando diante da pandemia
do coronavírus. Repito o que ouvi dele: “Coisa de pajé, de benzedeira”. O
Oswaldo, com sua formação alemã, é um homem de palavras duras, mas
creio que ele não exagera.
Escrevo-lhe com autoridade. Vosmecê está na cadeira em que estive de
1902 a 1906. Eu deveria ter voltado à Presidência em 1918, mas peguei a
Gripe Espanhola e morri. Durante meu governo, com a ajuda do Oswaldo,
instituí a vacina obrigatória contra a varíola e livrei o Rio de Janeiro
dessa moléstia. Hoje isso pode lhe parecer coisa trivial. Havendo
uma doença, vacina-se o povo, e está tudo resolvido. Vosmecê não tem
ideia do que enfrentamos. Misturaram-se pajés de segunda, médicos
renomados, políticos oportunistas e até mesmo militares indisciplinados,
formando aquilo que veio a ser chamado de a “Revolta da Vacina”.
Atente, capitão, em 1904 nosso Brasil teve uma revolta popular contra
uma vacina.
Seria razoável supor que a plebe não entendesse a
importância da medida, mas lembro-lhe que jornalistas de prestígio e até
mesmo Rui Barbosa combateram a iniciativa. Faziam-no porque tinham
interesses políticos. Queriam enfraquecer, ou até mesmo derrubar o
presidente. Planejaram dinamitar meu trem, e chegaram a recrutar um
cadete para o atentado. Em novembro eles tentaram um golpe, e duas
colunas de soldados aproximaram-se do palácio. Houve quem me propusesse
abandoná-lo. Dispensei meus familiares e mandei atirar. Morreram 30
pessoas, e a revolta esvaiu-se.
Para Vosmecê, que não gosta de ativismos populares, vale a memória de
que a maior revolta popular ocorrida no Rio de Janeiro derivou de uma
articulação oportunista que manipulou a ignorância. A vacina era um
pretexto. O que eles queriam era o poder. A varíola foi extinta, mas a
ambição dos homens é mal incurável. Agora, pelo que me mostrou o
Oswaldo, estamos numa situação inversa, é o presidente quem desafia as
autoridades sanitárias, buscando fortalecer-se politicamente pelo
menoscabo de uma pandemia. Regredimos, capitão. Duvido que o senhor
tenha tomado suas atitudes por conhecimentos médicos. O senhor deve
entender de vírus tanto quanto os pajés entendiam de vacina.
O
Oswaldo era um homem de ideias modernas. Eu não, nunca fui abolicionista
nem republicano, mas isso não significava que fosse um ignorante. Tinha
perdido duas filhas, uma para o tifo e outra para a febre. Muitos anos
antes, o tifo matara o Marquês de Paraná, e a febre levara Bernardo
Pereira de Vasconcelos, dois brasileiros maiores que nós. Quis o
Padre Eterno que eu morresse numa epidemia. Logo eu, que dei mão forte
ao Oswaldo para sanear o Rio de Janeiro. A vacina abateu a varíola. Os
mata-mosquitos, autorizados a entrar nas casas, controlaram a febre
amarela. Em um ano o número de vítimas caiu de 548 para 54.
É verdade que, aos 70 anos, eu era um velhinho e vivia resfriado. No
seu Brasil, gente como eu precisa de orientação e isolamento. Pelo que
me contam, os governadores e seu ministro da Saúde estão agindo direito.
A única voz dissonante tem sido a sua.
Despeço-me respeitosamente, do seu
Francisco de Paula Rodrigues Alves.
Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, jornalista
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