O crime está em guerra: as maiores facções brasileiras romperam
As rebeliões em presídios são um aviso. A selvageria está à solta
Há um mês, o detento Waldiney de Alencar Sousa procurou a direção da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo,
em Boa Vista, Roraima, com um pedido de ajuda. Estava jurado de morte
por outros presos. Queria, portanto, ser transferido para longe dali.
Sua solicitação foi acatada, mas esbarrou nos burocráticos sistemas
prisional e judiciário. Enquanto era feita uma varredura pelas unidades
prisionais em busca de uma vaga, seus algozes agiram. Na tarde do
domingo, dia 16, dia de visita, Waldiney se despediu da mulher no
portão. Voltava para o interior do presídio quando foi atacado pelos
inimigos. Chegaram até ali, a ala dos adversários, depois de quebrar
cadeados e escavar buracos nos muros que dividem o espaço entre as
organizações criminosas dentro da cadeia. A cabeça de Waldiney foi
quebrada com pedras. Seu crânio terminou esfacelado.
Como
quase sempre acontece, os presos foram mais rápidos que o Estado, e
Waldiney – ou Vida Loka, no batismo do crime – morreu logo depois de
completar 33 anos. Na mesma cadeia, outros nove detentos foram
assassinados num espetáculo de selvageria e demonstração de poder.
Alguns corpos foram decapitados; outros, queimados numa fogueira. Horas
mais tarde, a 1.700 quilômetros de distância, algo muito parecido
assombrou Porto Velho, em Rondônia. Oito presos morreram asfixiados pela
fumaça na Penitenciária Ênio dos Santos Pinheiro. Não se tratava de uma coincidência infeliz. Era um surto coordenado.
A ordem para a matança
foi dada em setembro deste ano, dias antes de Waldiney revelar as
ameaças. Partiu da penitenciária de segurança máxima de Presidente
Venceslau, no interior de São Paulo, onde está detida a cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC),
a maior organização criminosa do Brasil, que domina os presídios
paulistas. Numa carta escrita à mão, assinada pela “sintonia final”, os
chefes do bando paulista mandaram um “salve” nacional declarando guerra à
facção carioca Comando Vermelho (CV), sua antiga
aliada, parceira comercial e hoje maior concorrente. A mensagem,
possivelmente transposta para fora da prisão por advogados ou
familiares, foi digitalizada e distribuída via WhatsApp aos presídios
que estão “no ar”, na gíria da bandidagem – aqueles que não contam com
bloqueadores de sinal para telefones celulares. Alastrou-se rapidamente
até a Região Norte do Brasil.
ÉPOCA
teve acesso ao conteúdo desse informe. Nele, a organização explica os
motivos da briga. Os tropeços no português apenas ressaltam a selvageria
que está por vir. “Este Salve tem como finalidade esclarecer o que vem
acontecendo nas prisões espalhadas pelo país. Há muito tempo Estamos
procurando a liderança do Cv para mantermos a harmonia entre nossos
integrantes e corrigir de ambos os lados, situações que fogem do bom
convívio e até da ética do crime. (...) não tivemos atenção e tão pouco
recebemos respeito. A partir do momento que o CV iniciou uma expansão
pelos Estados, se aliando aos nossos inimigos (FDN, pgc, sindicato,
Bonde dos 40 ) e respondendo Pelas atitudes desses, já se tornou um
desrespeito a nós. Nosso lema é o crime fortalecer o crime, nunca
buscamos esses conflitos, porém não vamos ficar quietos se formos
atacados por quem quer que seja (...) Deixamos claro que estamos prontos
para a guerra uma guerra esta sendo criada pelo Cv. Estamos prontos
para reagir de imediato a qualquer ataque que viemos sofrer, não
concordamos com essa guerra que beneficiará somente a polícia, mas não
iremos nos omitir.”
A rixa local que culminou na execução brutal de Waldiney é um reflexo da
guerra entre as duas maiores organizações criminosas do país
recém-declarada pelos informes. Trata-se de uma disputa de mercado. De
uma briga por um naco dos bilhões movimentados ilegalmente, todo ano,
pelo tráfico de drogas no Brasil.
Assim como empresas, facções
criminosas têm uma hierarquia rígida e responsabilidades atribuídas a
cada posto. Assim como no mundo corporativo, seus integrantes competem
por cargos e salários melhores.
Mudar de companhia, ou de organização
criminosa, é uma das mais eficazes maneiras de subir na carreira.
Waldiney foi um dos três responsáveis por levar o PCC a Roraima.
Batizou-se como integrante da facção paulista com direito a padrinho,
número de matrícula e apelido. Cumpria pena por roubo, homicídio e
tráfico. Mais tarde, ao perceber que estava estagnado, decidiu sair em
busca de novos desafios profissionais. “Como não alcançou um posto de
maior representatividade no PCC, ele se rebelou e começou a desenvolver
uma célula do Comando Vermelho aqui em Roraima”, afirma o promotor Marco
Antônio Bordin, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao
Crime Organizado (Gaeco) de Roraima. A oportunidade que vislumbrou
estava na organização carioca.
(...)
PCC e CV estiveram juntos numa operação complexa, vantajosa e barulhenta
em 15 de junho deste ano na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero,
que faz fronteira com a brasileira Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. O
vídeo de uma câmera de segurança marcava 18h44 quando um Toyota Hilux
prata parou no cruzamento. O veículo esperou ser alcançado,
propositalmente, por um Hummer preto escoltado por três carros. De
repente, a porta traseira do Hilux se abriu e disparou uma rajada de
balas. A rua se iluminou com os tiros.
O alvo, dentro do Hummer, era o
brasileiro de origem libanesa Jorge Rafaat Toumani, de
56 anos. Seus capangas, armados com pistolas automáticas de fuzis, não
tiveram nenhuma chance diante dos mais de 100 tiros disparados contra
ele. Até uma metralhadora antiaérea foi usada para perfurar a grossa
blindagem do Hummer, em um procedimento digno de ataques perpetrados em
zonas de conflito armado como Iraque e Afeganistão.
Conhecido como Rei da Fronteira, Rafaat era o último obstáculo para que a
organização paulista dominasse o caminho das armas e drogas vindas do
Paraguai. Procurado no Brasil, Rafaat cometia seus crimes com certa paz
no Paraguai. Operava independente das duas organizações e tinha um
mercado cativo. Sem chance de cooptá-lo, as facções recorreram ao
extermínio.
Apesar de ter sido um sucesso do ponto de vista dos
criminosos, a operação pode ter contribuído para estremecer a relação
entre as organizações paulista e carioca. “Juntas, elas estruturaram o Narcossul,
o primeiro cartel internacional de drogas com sede no Brasil”, afirma o
procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino. “Mas agora o
Comando Vermelho percebeu que o PCC tomou aquele trecho e que não terá
mais o acesso que imaginava. Então se estranharam.”
A relação harmônica começou a ser minada há três anos por
conflitos pontuais, envolvendo facções menores que atuam em presídios de
estados fora do eixo Rio-São Paulo.
A organização paulista tem uma
política agressiva de expansão de territórios, não raro contida pelas
idiossincrasias de cada lugar. Esses pequenos grupos locais, com regras e
códigos de condutas próprios, muitas vezes não aceitam a imposição das
normas rígidas dos forasteiros.
“Existe um receio de que o PCC se torne
hegemônico no tráfico”, afirma o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco de
Presidente Prudente. Assim começam os conflitos. O Comando Vermelho se
aproveitou do mal-estar entre essas pequenas facções e os paulistas para
formar alianças regionais com Família do Norte (FDN), do Amazonas;
Primeiro Grupo Catarinense (PGC), de Santa Catarina; Sindicato do Crime
(SDC), do Rio Grande do Norte; Bonde dos 40, do Maranhão; e Okaida, da
Paraíba. Em troca, esses bandos ganham abrangência nacional e se
fortalecem na oposição ao PCC.
Desde os primeiros sinais
de racha, os presídios entraram em ebulição. No Rio de Janeiro, quase
100 presos da facção oriunda de São Paulo foram realocados antes da
matança no Norte, no final de semana.
Em Porto Velho, 96 detentos foram
transferidos para diferentes unidades de Rondônia depois dos
assassinatos. Um início de motim em Pacatuba, no Ceará, terminou com
grades quebradas e detentos soltos no pátio. Em Rio Branco, no Acre, 25
membros de uma organização invadiram a cadeia e deixaram quatro feridos.
Um dos criminosos acabou preso. Em Manaus, no Amazonas, os bandidos
foram mais longe: falaram em “espalhar o terror” dentro e fora das
penitenciárias e ameaçaram de morte promotores, juízes e o secretário de
Segurança. Reivindicam que os chefes da facção local, a FDN, sejam
mandados de volta a Manaus, para presídios mais seguros.
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