Revista Oeste
O turista sem pressa de Lisboa vira velocista ao entrar na misteriosa selva tributária
Arthur Lira conversa com o ministro do Supremo, Gilmar Mendes, em jantar do grupo Esfera Brasil, no mês de março | Foto: Jefferson D. Modesto/Divulgação
A agenda do deputado federal Arthur Lira é um desfile de problemas a resolver e nós a desatar. O presidente da Câmara decide quando e como serão votados os incontáveis projetos de lei ou emendas à Constituição e administra as relações do Poder Legislativo com o Judiciário e o Executivo. O chefe político regional jamais afasta da mira os adversários comandados pelo senador Renan Calheiros.
O homem de negócios mantém sob estreita vigilância tanto o desempenho das empresas que controla em Alagoas quanto o andamento dos processos e inquéritos que o envolvem. Não é pouca coisa, mas não é tudo. Aos 54 anos,
ele encontra tempo para demonstrar que no peito de um político durão também bate um coração. Em 22 de junho, ele resolveu que a Câmara merecia uma folga de dez dias, recomendou aos deputados que aproveitassem a derradeira festa junina e embarcou para Portugal em companhia da namorada.
Fórum aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa | Foto: Divulgação
Para avisar que trabalha até quando descansa, Lira comunicou que participaria do seminário promovido anualmente pela instituição de ensino fundada em Brasília pelo ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal.
Como a discurseira com citações em latim e alemão só começou em 26 de junho, o casal teve três dias inteiros para passear por Lisboa.
Como o palavrório termina pontualmente às 6 da tarde, seja qual for o tema em debate, celebridades presentes à disputadíssima boca-livre festejaram já na noite de abertura o aniversário de Lira, e capricharam no Parabéns a Você puxado pela namorada do homenageado.
Nas noites seguintes, sem exibir quaisquer vestígios de pressa, o presidente da Câmara trocou figurinhas em templos da gastronomia com figurões do Executivo e do Judiciário. Juntaram-se numa mesma mesa, por exemplo, o vice-presidente Geraldo Alckmin, ex-carola juramentado convertido em militante socialista, e o ministro do STF André Mendonça, que esqueceu o currículo terrivelmente evangélico em poucos meses de convívio com colegas pouco tementes a Deus.
O que terá ouvido Arthur Lira para regressar ao Brasil com a pressa de quem precisa tirar o pai da forca?
O que terá dito para entrar em julho com a ansiedade de quem vai afastar a mãe do caminho que leva ao penhasco?
Que acordos terá feito para retomar os trabalhos na Câmara com a afoiteza de quem vê o filho a um passo da areia movediça?
A metamorfose segue sem explicações: o que aconteceu para que o turista com tempo de sobra reaparecesse em Brasília decidido a aprovar em algumas horas uma das propostas de reforma tributária que dormem no Congresso há muitos anos?
A menos que o Arthur Lira lisboeta fosse um sósia encarregado de distrair a plateia para que o verdadeiro Arthur Lira pudesse assimilar ensinamentos despejados 24 horas por dia por doutores no assunto, nosso Usain Bolt do Legislativo (a exemplo de 99 em cada cem integrantes do Congresso) entende de selvas tributárias tanto quanto sabe de física quântica.
Mas avisou, em 3 de julho,
que o amontoado de normas — várias delas confusas, algumas impenetráveis —
seria votado em regime de urgência. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), discursa antes da aprovação da PEC da reforma tributária, nesta quinta-feira, 6 | Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
Deputados federais são representantes do povo. Mas voto não é procuração para que o votado faça o que quiser com um sistema tributário que sangra os pagadores de impostos enquanto sustenta a mastodôntica máquina pública.
Por que impor ao eleitorado mudanças tão relevantes sem debates no plenário, sem esclarecimentos indispensáveis, sem que os brasileiros que bancam todas as despesas possam descobrir o que ajuda e o que atrapalha?
Esses cuidados elementares garantiram o apoio da imensa maioria da população, traduzido até em manifestações de rua, à reforma da Previdência. Por que ignorar a fórmula que deu certo?
Como engolir sem engasgos a liberação por atacado do dinheiro requerido por emendas parlamentares?
É muita pergunta sem resposta. É muita conversa em voz baixa na Praça dos Três Poderes.
Neste 6 de julho, o ministro Gilmar Mendes presenteou Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa
Se essa suspeitíssima velocidade for reprisada no Senado, o Congresso conseguirá o aparentemente impossível: superar o recorde estabelecido em 1961 para impedir que o caminho da normalidade democrática fosse obstruído pela renúncia do presidente da República. Sete meses depois da posse, Jânio Quadros resolveu cair fora do Palácio do Planalto, em 25 de agosto.
Como o vice-presidente João Goulart estava na China em missão oficial, o gabinete vago foi ocupado interinamente pelo deputado paulista Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara.
Também inesperadamente, o general Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grün Moss comunicaram que as Forças Armadas não admitiriam a substituição de Jânio por Jango.
Imediatamente, o governador gaúcho Leonel Brizola entrincheirou-se no Palácio Piratini e, com o apoio das tropas aquarteladas no Rio Grande do Sul, exigiu que fosse respeitado o processo sucessório determinado pela Constituição.
Uma semana depois de voltarem do Gilmarpalooza em Lisboa, o anfitrião do evento suspende a investigação do keynote speaker.
Por @aguirretalento 👇https://t.co/fRRg6p7o4z— Malu Gaspar (@malugaspar) July 6, 2023
O general Ernesto Geisel convenceu a trinca no poder de que uma encrenca daquele tamanho requeria interlocutores de fina linhagem. Era coisa para um Tancredo Neves. Autorizado a falar em nome das Forças Armadas, Geisel telefonou para o casarão em São João del-Rei onde o velho domador de tempestades convalescia desde outubro do ano anterior da derrota na disputa do governo de Minas Gerais.
Examinava com carinho a ideia de encerrar a carreira política quando aceitou a missão, proposta por Geisel, que tornaria a depositá-lo no olho do furacão: costurar um acordo com Jango. Treze dias depois da renúncia, o Brasil livrou-se da insônia com a entrada em vigor do delicado arranjo esculpido por Tancredo, aceito pelas partes antagônicas e aprovado pelo Congresso. Jango assumiu a Presidência da República, mas com poderes reduzidos pela adoção do regime parlamentarista.
Tancredo Neves | Foto: Wikimedia Commons
A escolha do nome do primeiro-ministro foi feita sem disputas, debates ou dúvidas. Só podia ser Tancredo Neves. Ele ficaria pouco tempo no cargo e, em 1963, um plebiscito restabeleceria o presidencialismo à brasileira que apressou a queda de Jango. Mas a sensatez do conciliador vocacional afastou, em agosto de 1961, o fantasma da guerra civil. Um acordo entre contrários tem de basear-se em princípios e exige concessões recíprocas, ensinava Tancredo. Passados 62 anos, o país é assombrado por acertos sussurrados nas catacumbas de Brasília, ditados por interesses que ignoram princípios e por coincidências perturbadoras. Neste 6 de julho, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes presenteou Arthur Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa.
A linha que separa a relação amistosa da amizade íntima não pode ser cruzada por jornalistas e suas fontes de informação.
Nem por chefes de distintos poderes da República.
Sempre que isso acontece, o convívio harmonioso vira ligação incestuosa. Tancredo Neves, que sempre soube disso, morreu sem saber que reuniões da elite política ficariam parecidas com forrós no clube dos cafajestes. Melhor para o sábio mineiro.
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