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sábado, 8 de julho de 2023

A metamorfose de Lira - Augusto Nunes

Revista Oeste

O turista sem pressa de Lisboa vira velocista ao entrar na misteriosa selva tributária



Arthur Lira conversa com o ministro do Supremo, Gilmar Mendes, em jantar do grupo Esfera Brasil, no mês de março | Foto: Jefferson D. Modesto/Divulgação

A agenda do deputado federal Arthur Lira é um desfile de problemas a resolver e nós a desatar. O presidente da Câmara decide quando e como serão votados os incontáveis projetos de lei ou emendas à Constituição e administra as relações do Poder Legislativo com o Judiciário e o Executivo. O chefe político regional jamais afasta da mira os adversários comandados pelo senador Renan Calheiros. 
O homem de negócios mantém sob estreita vigilância tanto o desempenho das empresas que controla em Alagoas quanto o andamento dos processos e inquéritos que o envolvem. Não é pouca coisa, mas não é tudo. Aos 54 anos, ele encontra tempo para demonstrar que no peito de um político durão também bate um coração. Em 22 de junho, ele resolveu que a Câmara merecia uma folga de dez dias, recomendou aos deputados que aproveitassem a derradeira festa junina e embarcou para Portugal em companhia da namorada. Fórum aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa | Foto: Divulgação
 
Para avisar que trabalha até quando descansa, Lira comunicou que participaria do seminário promovido anualmente pela instituição de ensino fundada em Brasília pelo ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal. 
Como a discurseira com citações em latim e alemão só começou em 26 de junho, o casal teve três dias inteiros para passear por Lisboa. 
Como o palavrório termina pontualmente às 6 da tarde, seja qual for o tema em debate, celebridades presentes à disputadíssima boca-livre festejaram já na noite de abertura o aniversário de Lira, e capricharam no Parabéns a Você puxado pela namorada do homenageado. 
Nas noites seguintes, sem exibir quaisquer vestígios de pressa, o presidente da Câmara trocou figurinhas em templos da gastronomia com figurões do Executivo e do Judiciário. Juntaram-se numa mesma mesa, por exemplo, o vice-presidente Geraldo Alckmin, ex-carola juramentado convertido em militante socialista, e o ministro do STF André Mendonça, que esqueceu o currículo terrivelmente evangélico em poucos meses de convívio com colegas pouco tementes a Deus.
 
O que terá ouvido Arthur Lira para regressar ao Brasil com a pressa de quem precisa tirar o pai da forca? 
O que terá dito para entrar em julho com a ansiedade de quem vai afastar a mãe do caminho que leva ao penhasco? 
Que acordos terá feito para retomar os trabalhos na Câmara com a afoiteza de quem vê o filho a um passo da areia movediça? 
A metamorfose segue sem explicações: o que aconteceu para que o turista com tempo de sobra reaparecesse em Brasília decidido a aprovar em algumas horas uma das propostas de reforma tributária que dormem no Congresso há muitos anos? 
A menos que o Arthur Lira lisboeta fosse um sósia encarregado de distrair a plateia para que o verdadeiro Arthur Lira pudesse assimilar ensinamentos despejados 24 horas por dia por doutores no assunto, nosso Usain Bolt do Legislativo (a exemplo de 99 em cada cem integrantes do Congresso) entende de selvas tributárias tanto quanto sabe de física quântica.  
Mas avisou, em 3 de julho, que o amontoado de normas — várias delas confusas, algumas impenetráveis — seria votado em regime de urgência. 

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), discursa antes da aprovação da PEC da reforma tributária, nesta quinta-feira, 6 | Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Deputados federais são representantes do povo. Mas voto não é procuração para que o votado faça o que quiser com um sistema tributário que sangra os pagadores de impostos enquanto sustenta a mastodôntica máquina pública
Por que impor ao eleitorado mudanças tão relevantes sem debates no plenário, sem esclarecimentos indispensáveis, sem que os brasileiros que bancam todas as despesas possam descobrir o que ajuda e o que atrapalha? 
Esses cuidados elementares garantiram o apoio da imensa maioria da população, traduzido até em manifestações de rua, à reforma da Previdência. Por que ignorar a fórmula que deu certo? 
Como engolir sem engasgos a liberação por atacado do dinheiro requerido por emendas parlamentares? 
É muita pergunta sem resposta. É muita conversa em voz baixa na Praça dos Três Poderes.

Neste 6 de julho, o ministro Gilmar Mendes presenteou Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa

Se essa suspeitíssima velocidade for reprisada no Senado, o Congresso conseguirá o aparentemente impossível: superar o recorde estabelecido em 1961 para impedir que o caminho da normalidade democrática fosse obstruído pela renúncia do presidente da República. Sete meses depois da posse, Jânio Quadros resolveu cair fora do Palácio do Planalto, em 25 de agosto
Como o vice-presidente João Goulart estava na China em missão oficial, o gabinete vago foi ocupado interinamente pelo deputado paulista Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. 
Também inesperadamente, o general Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grün Moss comunicaram que as Forças Armadas não admitiriam a substituição de Jânio por Jango. 
Imediatamente, o governador gaúcho Leonel Brizola entrincheirou-se no Palácio Piratini e, com o apoio das tropas aquarteladas no Rio Grande do Sul, exigiu que fosse respeitado o processo sucessório determinado pela Constituição.

Uma semana depois de voltarem do Gilmarpalooza em Lisboa, o anfitrião do evento suspende a investigação do keynote speaker.

Por @aguirretalento 👇https://t.co/fRRg6p7o4z— Malu Gaspar (@malugaspar) July 6, 2023


O general Ernesto Geisel convenceu a trinca no poder de que uma encrenca daquele tamanho requeria interlocutores de fina linhagem. Era coisa para um Tancredo Neves. Autorizado a falar em nome das Forças Armadas, Geisel telefonou para o casarão em São João del-Rei onde o velho domador de tempestades convalescia desde outubro do ano anterior da derrota na disputa do governo de Minas Gerais.  
Examinava com carinho a ideia de encerrar a carreira política quando aceitou a missão, proposta por Geisel, que tornaria a depositá-lo no olho do furacão: costurar um acordo com Jango. Treze dias depois da renúncia, o Brasil livrou-se da insônia com a entrada em vigor do delicado arranjo esculpido por Tancredo, aceito pelas partes antagônicas e aprovado pelo Congresso. Jango assumiu a Presidência da República, mas com poderes reduzidos pela adoção do regime parlamentarista.

 

Tancredo Neves | Foto: Wikimedia Commons

A escolha do nome do primeiro-ministro foi feita sem disputas, debates ou dúvidas. Só podia ser Tancredo Neves.
Ele ficaria pouco tempo no cargo e, em 1963, um plebiscito restabeleceria o presidencialismo à brasileira que apressou a queda de Jango. Mas a sensatez do conciliador vocacional afastou, em agosto de 1961, o fantasma da guerra civil. Um acordo entre contrários tem de basear-se em princípios e exige concessões recíprocas, ensinava Tancredo. Passados 62 anos, o país é assombrado por acertos sussurrados nas catacumbas de Brasília, ditados por interesses que ignoram princípios e por coincidências perturbadoras. Neste 6 de julho, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes presenteou Arthur Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa.

A linha que separa a relação amistosa da amizade íntima não pode ser cruzada por jornalistas e suas fontes de informação. 
Nem por chefes de distintos poderes da República. 
Sempre que isso acontece, o convívio harmonioso vira ligação incestuosa. Tancredo Neves, que sempre soube disso, morreu sem saber que reuniões da elite política ficariam parecidas com forrós no clube dos cafajestes. Melhor para o sábio mineiro.


Leia também “Amorim é o passarinho de Lula”

 

 

sábado, 12 de junho de 2021

Renan Calheiros desperta em mim os instintos mais primitivos. E isso não é bom - Paulo Polzonoff Jr.

VOZES - Gazeta do Povo

Assisto, mais uma vez, a uma sessão da CPI da Covid. E, quando percebo, estou soltando um palavrão daqueles bem impublicáveis para o apartamento semivazio.Vai, Queiroga, bate na mesa. Chama o Renan do que ele é! Por que um tipo como esse vive?”, pergunto, na esperança de que o ministro da Saúde incorpore um Alborghetti e ponha os pingos nos devidos is e, por que não?

 

 O prazer do diabo está em fazer com que lutemos contra ele usando suas armas diabólicas.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Confesso envergonhado: a CPI, expressão mais evidente e ruidosa da política brasileira atual, desperta o que há de pior em mim. Fico indignado e, nessa indignação, sinto quaisquer resquícios de inteligência, prudência e parcimônia se esvaírem de mim. Torno-me, ainda que por apenas uns minutinhos, moralmente oco.

E é desse vazio moral, ainda que circunstancial e, no meu caso, graças a Deus restrito aos momentos que passo diante da televisão para acompanhar a Turma do Renanzinho, que se aproveitam os políticos para nos escravizar. Quando dou por mim, isto é, quando saio desse transe, percebo que Renan ou Aziz ou aquele outro de voz fina estão usando minha própria indignação para controlar meus sentimentos, eliminando os de alta estirpe e fomentando meus instintos mais primitivos, para usar a expressão imortalizada por Roberto Jefferson.

Porque, a rigor, e por mais abjetos que sejam os políticos alvos de nossa ira, somos nós, envenenados pela indignação, pelo senso de justiça e pela impotência, que acabamos dando poder a essas figuras nefastas, sejam elas de esquerda, direita, centro ou uma diagonal qualquer. Não fosse nosso desejo de ver a chamada moralidade pública imposta meio que à força, eles seriam apenas o que são: uns fantoches de Leviatã que não valem nem um tostão furado.

Mas não se engane. Os políticos sabem como nos manter nessa coleira. Tanto sabem que vivem justamente de nos oferecer mais e mais motivos para nos deixar indignados. Os escândalos a conta-gotas, as falas enviesadas, a desonestidade intelectual escancarada – tudo isso é ingrediente para uma poção que nos hipnotiza e aprisiona.

Tentação
Resistir à indignação, é preciso. Mas é mais fácil falar do que fazer. Outro dia mesmo, esbravejando em silêncio (!) diante de mais uma estupidez qualquer do relator da CPI (ou talvez do presidente ou ainda do cara de voz fina),me vi quase transformado num desses consequencialistas que, despudorados, andaram ocupando as páginas dos jornais para desejar a morte de seus inimigos políticos.

Quase. O que me impediu a metamorfose completa nesse monstrengo revolto foi justamente a constatação de que o Mal não está somente nos feitos tortos dos políticos que despertam minha indignação, mas também no meu próprio desejo de consertar o mundo por meio da violência verbal estéril e de uma visão de mundo (passageira) bastante próxima de um fatalismo ultrapessimista. Aquela coisa de dizer que o mundo está todo errado ou que o Brasil não tem jeito mesmo, sabe?

Consertar a política
, essa política pequena, eleitoreira, feita de interesses insuportavelmente mesquinhos, de discursos cínicos, de mentiras ao cubo e da estupidez perversa dos que não têm compromisso com a Eternidade, é uma tentação. Sim, aquela mesma na qual não desejamos cair ao rezarmos o Pai Nosso. É como se o diabo sussurrasse em nossos ouvidos, nos seduzindo com a promessa de que seremos capazes de mudar o mundo ou acabar com esse estado de coisas por ele próprio criado.

Parece um fim nobre, não? Até divino – diria alguém dado a heresias. O problema é que, ao nos oferecer isso, o diabo abre sua maletinha 007 e nos mostra todo o um arsenal de argumentação e ação pautadas por ardis, intrigas e, novamente, fomento à indignação – aquela mesma indignação dos primeiros parágrafos, que nos torna ocos e suscetíveis ao controle do Mal.  É aí que está a tentação à qual temos que resistir. Porque o prazer do diabo está em fazer com que lutemos contra ele usando suas armas diabólicas.

Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O acordão do capitão - O Globo

 Bernardo Mello Franco 

Num domingo de abril, o presidente Jair Bolsonaro foi à porta do Quartel-General do Exército, subiu na caçamba de uma caminhonete e estimulou seguidores que bradavam por “intervenção militar” e AI-5. “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!”, vociferou.

[Pessoal! um comentário, talvez uma sugestão ou mesmo um alerta: A nefasta indicação efetuada pelo presidente Bolsonaro para o cargo de ministro do STF, desagradou a muitos, talvez milhões, especialmente os bolsonaristas de raiz - entre quais, com orgulho nos incluímos, tanto na condição de bolsonarista raiz quanto no desagrado pela indicação.

Não sentimos necessidade de radicalização - o presidente ao indicar Kassio Marques exerceu uma legítima competência constitucional do seu cargo, nos cabendo apenas alertá-lo. Optamos por expressar as inconveniências da indicação e esperar que o presidente mude de pensamento (algo pouco provável, porém, possível) e anule a indicação. Só que é necessário se ter presente que milhões podem ter votado no CAPITÃO  na expectativa de um comportamento mais coerente com sua condição anterior ao seu ingresso na política - oficial do Exército Brasileiro. A carreira militar exige além dos dois pilares, insubstituíveis, Disciplina e Hierarquia, mais firmeza nas decisões (firmeza, que não é substituível por teimosia) menos flexibilidade e mais fundamentação nos recuos e ter  condutas típicas de um militar, de um oficial do glorioso Exército Brasileiro.  

Acontece que muitos esqueceram, ou não atentaram, que estavam votando em um CAPITÃO para exercer um CARGO POLÍTICO - Presidente da República Federativa do Brasil, condição que exige um comportamento muito diferente do que é comum a um militar. Não queremos dizer que seja um comportamento não digno, não firme, mas que precisa ter flexibilidade, jogo de cintura e o CAPITÃO está adaptado a se portar, agir, como político, o que muitas vezes o deixa desprestigiado junto aos seus eleitores. Mas, votamos em um militar para exercer um cargo político e temos que ser flexíveis, nos adaptando a certas posturas, certas negociações (atenção! negociatas não serão aceitas) certos acordos que o cargo exercido exige.

Devemos considerar que o presidente Bolsonaro tem sofrido uma oposição cerrada, um boicote, no limite uma sabotagem, que exige 'jogo de cintura'. Os próprios inimigos do presidente   = inimigos do Brasil, turma do mecanismo, e assemelhados - sabem dessa limitação presidencial e vão tentar forçar a barra = vale tudo para derrubar o capitão. NÃO CONSEGUIRÃO].

Menos de seis meses depois, Bolsonaro toma café com Rodrigo Maia, almoça com o centrão e janta com Gilmar Mendes. No último domingo, ele foi à casa de Dias Toffoli comer pizza e assistir a um jogo do Palmeiras. A imagem dos dois abraçados, como amigos que se reencontram para torcer pelo mesmo time, é um retrato dos novos tempos em Brasília. O extremista que prometia romper com o establishment passou a dançar conforme a velha música. A indicação de Kassio Marques ao Supremo faz parte da metamorfose. O presidente consultou Gilmar e Toffoli, inimigos jurados da Lava-Jato, antes de oficializar a escolha do futuro ministro.

Eles não são os únicos a festejar o indicado. “Para além das diferenças que nós temos, ele (Bolsonaro) pode deixar um grande legado para o Brasil, que é o desmonte desse estado policialesco que tomou conta do nosso país”, celebrou o senador Renan Calheiros. À CNN Brasil, ele listou outras medidas que agradaram à classe política: o desmantelamento do Coaf, a demissão de Sergio Moro, a nomeação de Augusto Aras.

Os elogios de Renan produziram um curto-circuito no bolsonarismo raiz. Chamado de traidor, o capitão tenta contornar as críticas. “Eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”, gracejou ontem, no Planalto.

É ilusão pensar que o exercício do poder moderou Bolsonaro. Estamos diante de um acordão, que o uniu a políticos que demonizava. A turma quer blindagem e sossego, mercadorias que Gilmar sempre soube entregar. A fantasia da conciliação pode ser rasgada a qualquer momento: basta que o capitão se sinta seguro para chutar os aliados de conveniência. Enquanto essa hora não chega, todos celebram a paz com brindes de tubaína.

Bernardo Mello Franco, jornalista - O Globo



domingo, 10 de maio de 2020

Melancolia - O Globo

 Dorrit Harazim
Haverá quem indague onde esteve a oposição a Jair Bolsonaro este tempo todo
O ensaísta radicado na Califórnia Dustin Illingworth acerta em cheio quando observa que melancolia é uma condição incompatível com o coronavírus. A realidade crua do nosso planeta infectado, com cadáveres que se empilham entre os vivos, não dá espaço ao que o britânico Robert Burton, em seu clássico do século 17 sobre o tema, definiu como “um tipo de loucura sem febre, tendo como companheiros o temor e a tristeza sem nenhuma razão aparente”. Com a Covid-19 em marcha pelo mundo, a melancolia foi deslocada por variantes menos românticas, como a ansiedade, o pânico, a depressão. É possível que no futuro venhamos a ter saudade do tempo em que foi possível sofrer só de melancolia, esse fundamento da condição humana.

Por ora não dá. Pelo menos não no Brasil, que encerra uma semana particularmente disfuncional, caótica e desconcertante. A hora, agora, é de grita, mesmo que seja apenas para se sentir vivo e humano. A semana começou com o Brasil órfão, também, de Flávio Migliaccio. Em terna carta aberta aos tantos que choraram o suicídio do ator de 85 anos, o filho Marcelo escreveu: “Meu pai fez o que fez à nossa revelia. Pegou um táxi e foi para o sítio enquanto eu cuidava da minha mãe. Sem nos avisar, sem se despedir. Ele sempre me dizia que não aguentava mais viver num mundo como esse e sentir seu corpo deteriorar-se rápida e irreversivelmente... Daqui para a frente só vai piorar, dizia...”. Mas nem em seu mais agudo desassossego Flávio Migliaccio imaginaria que dois dos policiais militares chamados à ocorrência fotografariam a cena e a postariam em redes sociais. Ambos envergavam a bandeira do estado em suas fardas. É a infâmia e covardia extremas destes tempos de apagão da decência.

Como se permitir ser melancólico quando a realidade nacional trata a Covid-19 com voracidade de caixa registradora? Arredondando, já são10 mil mortos e 150 mil casos confirmados, com o pico do contágio apontando para mais calamidade à frente. A nação desassistida nunca teve o luxo existencial de mergulhar no spleen literário, ela precisa fazer fila ao relento para tentar receber os R$ 600 de ajuda emergencial enquanto Jair Bolsonaro faz da presidência um reality show de programação livre — pode ser tanto uma Marcha na Praça dos Três Poderes, com lobistas/empresários no papel de extras, ou um churrasco de celebração à insânia. Enquanto só no Rio de Janeiro mais de mil pessoas aguardavam a vacância de um leito de UTI adequadamente equipado, Gabriell Neves Franco, que até o mês passado era ainda subsecretário de Saúde do mesmo estado, foi preso sob suspeita de integrar uma quadrilha de mercadores de ventiladores mecânicos. Só muito mais adiante, quando for possível estudar os desdobramentos desse período, se saberá a amplitude da rapina ocorrida nos subterrâneos dos contratos emergenciais em nome do combate à Covid-19.

Até aí nada de muito novo. Haverá quem indague onde esteve a oposição a Jair Bolsonaro este tempo todo, como ela evaporou, por que não conseguiu apresentar um mísero plano de contraponto a um governante tão desarticulado, se foi verdade que existiu um ministro da Saúde invisível de nome Nelson Teich. Na semana em que se comemora o 75º aniversário do final da Segunda Guerra na Europa, olhar para o passado adquire valor redobrado.

Ou então é fazer como Regina Duarte, cuja sombria e estarrecedora entrevista concedida à CNN Brasil regada a sorrisos mecânicos mereceria um estudo frase a frase. Somaram-se rasantes de despreparo, afagos à ditadura e viagens ao mundo da fantasia.

Difícil saber se quem as pronunciava era a atriz no papel de secretária executiva de Cultura, ou vice-versa, ou ainda, a fusão dessas duas entidades. Algum hippie dos anos 60 talvez definisse a entrevista como uma “transformação em metamorfose”. Já para a também veterana de palcos Camila Amado, ainda incrédula com o que assistiu, o diagnóstico é dolorido: “Acabou -se a imagem da ingênua usada e sem noção. Vi a pessoa mais feia e de uma loucura assustadora, exposta e sem controle de imagem, agora sim revelada pela televisão — ela, a Regina Duarte”, escreveu em rede social. A repulsa de Camila é explicável — a ditadura roubou-lhe o pai, Gilson Amado, e torturou sua mãe, a educadora Henriette de Hollanda Amado.

Na visão de Regina Duarte, “tem que olhar pra frente, tem que amar o país, parar de ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80... Se eu ficar olhando pelo retrovisor, vou levar trombada, vou cair no precipício ali na frente...”

Já caiu. O precipício é aqui. Para a respeitada revista britânica “Lancet”, que vai completar seu bicentenário em 2023, Jair Bolsonaro representa a maior ameaça mundial à Covid-19. [sic] Não é uma afirmação ligeira. A revista não analisa novelas, trata de ciência.

 Dorrit Harazim, jornalista - O Globo


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Bolsonaro retira do túmulo ideia de recriar a CPMF - Blog do Josias



Quando se imaginava que a hipótese de criação de um tributo nos moldes da velha CPMF estivesse morta e enterrada, Jair Bolsonaro ressuscitou a ideia. "Todas as alternativas estão na mesa", disse o presidente em entrevista. Ele alegou que admitiria o novo tributo desde que fosse para substituir outros. A queda de Marcos Cintra da chefia da Receita Federal e o aparente sepultamento da nova CPMF tinham livrado Bolsonaro de um incômodo. O ministro Paulo Guedes, da Economia, já havia encampado em público a proposta da volta da CPMF, rebatizada de imposto sobre transações financeiras.

Em termos econômicos, a novidade renderia uma arrecadação de R$ 150 bilhões por ano. Do ponto de vista político, a mágica produziria uma metamorfose. Jair Bolsonaro seria transformado num ex-Bolsonaro. Como deputado, Bolsonaro desancou a CPMF. Sob FHC, chamou-a de "desgraça". Sob Lula, disse que era coisa de "cara de pau". Votou contra a criação do tributo e a favor de sua extinção. Como presidenciável, Bolsonaro assegurou que, eleito, jamais admitiria a volta da encrenca.

Paulo Guedes se afeiçoou à ideia de criar um tributo nos moldes da CPMF, sob o argumento de que a novidade viria em benefício da criação de empregos, pois a folha salarial seria desonerada. Nessa versão, o governo ofereceria um sacrifício à vista —a mordida no bolso dos brasileiros — e um benefício a prazo — a hipotética criação de empregos.

A conversão de Bolsonaro em ex-Bolsonaro talvez fizesse sentido se existisse no Congresso disposição para aprovar a aventura. Como a chance de o novo tributo emplacar no Legislativo é inexistente, a volta do debate se converteu numa tolice.
[as jogadas 'liberais' do liberal Guedes, motiva a pergunta: que tal ejetar o Guedes? - a presença dele no governo do senhor, prejudica sua candidatura 2022.]

Blog do Josias - Josias de Souza, jornalista

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O julgamento que nunca termina - Folha de S. Paulo

Vinicius Mota 

Segunda instância, o julgamento que nunca termina

Desapreço pela estabilidade das regras do jogo no STF sugere novas reviravoltas

Rosa Weber tornou-se o modelo a que todo magistrado deveria aspirar. Só fala nos autos, respeita e aplica a jurisprudência assentada, mesmo contra a sua convicção, e não alimenta guerras de vaidades no supremo tribunal dos narcisos. Foi divertido ver quem a criticou por negar o habeas corpus do ex-presidente Lula, em abril de 2018, agora soltar fogos pelo seu voto nas ações diretas de constitucionalidade que pleiteiam o cumprimento da pena de prisão só após o fim dos recursos.

Rosa foi exemplo de coerência no supremo tribunal dos inconstantes. Disse em 2018 que aquela ação de habeas corpus não era própria para rever a orientação de fundo do STF. li só cabia aplicar a jurisprudência vigente, que validava a prisão após condenaçãoem segundo grau, sob pena de colocar em risco a estabilidade e a credibilidade das orientações proferidas pelo próprio Supremo para as instâncias inferiores.

Já nesta quinta (24), quando se questionava a constitucionalidade abstrata de um dispositivo do Código de Processo Penal, então estava dada a ocasião para reavaliar a jurisprudência ela mesma. Rosa Weber, votando de acordo com seu entendimento da Carta, rechaçou a possibilidade de execução da pena antes do chamado trânsito em julgado. Mas no Supremo há apenas uma Rosa preocupada de fato com a estabilização das regras do jogo, e por isso a questão da segunda instância não há de ser encerrada tão cedo.

Como Dias Toffoli achou normal pautar o tema pela sexta vez (!) desde 2009, seu sucessor na presidência a partir de setembro de 2020, Luiz Fux, dificilmente hesitará em organizar a sétima votação. Logo depois, em novembro, aposenta-se o ministro Celso de Mello, da ala “garantista”, e o provável posicionamento de seu substituto será o oposto. Os adeptos da execução da pena após a segunda condenação terão o controle da pauta, com Fux, e retomarão a maioria na corte. A suprema metamorfose ambulante vai atacar novamente. Rosa nos acuda. [Em suma: a Suprema Corte decide conforme a conveniência do seu presidente.
Vale lembrar que nada garante que as supremas excelências nada decidirão este ano, especialmente sob a presidência do ministro Dias Toffoli.]
 
Vinicius Mota, colunista - Folha de S. Paulo 


sábado, 8 de setembro de 2018

Como o PT pretende transformar Haddad em Lula

Prestes a virar candidato oficial do PT ao Planalto, o ex-prefeito de São Paulo se ocupa agora de um processo de metamorfose: como virar um Lula sem barba

Com Lula afinal e oficialmente fora do páreo, apesar dos recursos e recursos e recursos, sobrou para o PT um bom abacaxi para descascar. A um mês do primeiro turno, o partido tem de convencer o segmento menos ideologizado de seus eleitores de que o ex-prefeito Fernando Haddad (ou “Andrade”, conforme o registro que se disseminou em parte do Nordeste) é praticamente um Lula sem barba. A empreitada já seria difícil se a afirmação fosse verdadeira. E fica ainda mais complicada quando se sabe que nada poderia ser mais falso.

E não é falso apenas porque Haddad professor universitário, bacharel em direito, mestre em economia, doutor em filosofia considera adequado abrir um comício dizendo para as multidões que sua campanha “representa a antítese do status quo”. Mas é falso também porque, considerado pelo próprio partido o mais tucano dos petistas, o ex-prefeito de São Paulo, que deve sagrar-se cabeça de chapa de seu partido na próxima semana, é conhecido na sigla por sua pouca afinidade com movimentos sociais e uma queda por ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem já elogiou publicamente mais de uma vez. Mas isso está mudando. Desde que abraçou a ideia de suceder o ex-presidente Lula na campanha, Fernando Haddad está se deixando transformar.

No último dia 20, em reunião do conselho político do PT, formado por dirigentes e intelectuais alinhados ao partido, em São Paulo, o ex-prefeito foi instado e aceitou – assumir o compromisso de, caso eleito, fazer um “governo coletivo”. Na prática, isso significa “comprar” com a porteira fechada o programa do partido. Estavam presentes ao encontro a cúpula do PT e os chamados ideólogos da sigla, como o ex-chanceler Celso Amorim e o escritor Fernando Morais. Haddad também foi aconselhado por eles a buscar aproximação com os movimentos sociais, centrais sindicais e representantes religiosos – gestos fundamentais para ganhar o apoio da base petista, sem a qual ele não teria condições de prosperar na campanha. A mensagem, nas entrelinhas, era que, como estreante no pleito e segunda opção de Lula (a primeira era o ex-­governador da Bahia Jaques Wagner, que declinou da oferta), ele deveria ter a humildade de se deixar instruir pelo partido. Ficou claro que o menor sinal de empenho em um projeto pessoal seria interpretado como uma traição.

No fim de agosto, Haddad concordou em deixar a cargo do partido a elaboração de seu plano de governo, que previa um rosário de reformas que remetem ao PT pré-governo Lula. Incluídas aí a regulamentação da mídia e do sistema judiciário (com a revisão da lei anticorrupção e da delação premiada) e a revogação da reforma trabalhista, aprovada pelo governo Temer. A despeito da fama de ser pouco afeito á diplomacia partidária, Haddad disse amém ao que ouviu.

Algumas mudanças no futuro candidato oficial do PT já são mais visíveis. A dicção acadêmica está sumindo aos poucos e frases que eram recorrentes no início da eleição começam a vir traduzidas (aquela em que prometia ser a “antítese” do “status quo” virou que ele é “contra o projeto de Temer, que ameaça o Bolsa Família e afeta os mais pobres”).
Se a estratégia principal de campanha é a fusão da imagem de Haddad com a de Lula, a secundária é reavivar o antigo confronto PT versus PSDB. Ainda que Geraldo Alckmin esteja em quarto lugar nas pesquisas, o PT quer minar as chances de subida do tucano porque prefere disputar o segundo turno com Jair Bolsonaro (PSL), que apresenta um elevadíssimo índice de rejeição de 44%. Essa porcentagem, no entender do PT, aumentaria a probabilidade de o pleito se tornar um plebiscito sobre a vitória do ex-capitão do Exército. A amigos, Haddad tem dito estar satisfeito por Alckmin não ter, até momento, conseguido angariar votos do PT, mesmo dispondo de mais tempo de TV e uma estratégia direcionada a desconstruir Bolsonaro – hoje, o maior antagonista do partido.

Na última semana, Haddad trilhou lugares históricos percorridos feito por Lula. No sábado, visitou Guaranhuns (PE), terra natal do ex-presidente, onde vestiu chapéu de cangaceiro e andou de cavalo. Na última quarta-feira, ele madrugou na porta da fábrica da Mercedes Benz e da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, rememorando o roteiro da campanha salarial liderada pelo ex-presidente, em 1978.  Em seguida, fez uma caminhada pelo centro de Diadema. Ele se apresentava às pessoas na rua, contando os seus feitos como ministro da Educação de Lula. “Vocês conhecem o Sisu, o Prouni?”, perguntou ele a um grupo de três estudantes, que fizeram um não com a cabeça, acanhados. “Não conhecem mesmo?”, questionou novamente Haddad, deixando para lá o assunto e prosseguindo a caminhada. Depois, entrou em um açougue, de onde ouviu de um funcionário que “ele ainda precisa correr muito para alcançar Lula”. 

Enquanto Haddad se esforça em seu processo de metamorfose, a defesa de Lula tenta suas últimas cartadas. Na quinta-feira, a principal aposta dos advogados fracassou. O ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin negou o pedido de liminar feito pela defesa do petista, que se baseava na recomendação de um conselho consultivo da ONU que defende a manutenção dos direitos políticos de Lula. Fachin, que dias antes havia sido o único ministro a votar favoravelmente a Lula no julgamento do TSE, desta vez decidiu contra o petista. Alegou que a recomendação da ONU era válida na esfera eleitoral, e não na penal. Em seguida, foi a vez do ministro do STF Celso de Mello rejeitar um pedido de liminar que visava manter a sua campanha enquanto outro recurso ainda não era apreciado no TSE.

Apesar de o recurso ainda estar pendente, os advogados de Lula já reconhecem que não deve haver tempo para serem julgados antes do próximo dia 11, data-limite determinada pela Justiça Eleitoral para a substituição da chapa petista. Antes de ser declarado inelegível, o ex-presidente marcava 39% de intenções de voto no Datafolha, enquanto Haddad, quando posicionado como seu candidato, pontuava apenas 4%. Na primeira pesquisa sem Lula, feita pelo Ibope nos três primeiros dias do horário eleitoral na TV, ele sobe para 6%. Está ainda muito longe de parecer capaz de herdar o legado de seu padrinho. Mas, como mostra sua metamorfose, está decidido a conseguir isso.

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